Entrevistas
A malária no Brasil e no mundo
Erney Camargo
Jeca Tatu mostra um Monteiro Lobato preocupado
com a saúde pública
Marisa Lajolo
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Jeca Tatu
mostra um Monteiro Lobato preocupado com a saúde pública
“Jeca Tatu
não é assim, ele está assim”. A
frase do escritor José Bento Monteiro Lobato sobre
um dos seus mais populares personagens, mostra que a sua obra
vai além das populares histórias infantis do
Sítio do Picapau Amarelo. O trabalho de Lobato olha
para várias questões sociais brasileiras, dentre
elas o problema de saúde pública no país.
Com Jeca Tatu, Lobato fala sobre uma doença tropical,
até então totalmente negligenciada: o amarelão.
Outras questões relacionadas à saúde
pública estiveram presentes na obra de Lobato, tais
como a tuberculose, que vitimou seus dois filhos. A riqueza
e a complexidade da obra do autor é pauta de admiração
e de estudos de lingüistas, historiadores, sociólogos
e antropólogos. Dentre eles, destaca-se a pesquisadora
Marisa Lajolo, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL),
da Unicamp, que afirma que Lobato envolveu-se em política
e na campanha sanitarista da década de 1920, denunciando
a precariedade da saúde das populações
rurais. Em entrevista à ComCiência, Marisa Lajolo
fala também sobre as questões de saúde
pública na literatura nacional.
ComCiência
- Alguns pesquisadores afirmam que Monteiro Lobato criou Jeca
Tatu a partir do contato com algumas pesquisas de Manguinhos.
A senhora confirma essa hipótese?
Marisa Lajolo -
Não tenho tanta certeza dessa influência. O personagem
nasceu em 1914 e, de acordo com Cassiano Nunes, professor
do Departamento de Letras da Universidade de Brasília
entre 1966 e 1991, as correspondências entre Monteiro
Lobato e Artur Neiva (pesquisador de Manguinhos que se engajou
fortemente no combate a doenças tropicais) começaram
a partir de 1918. A história do Jeca Tatu relaciona-se
com a biografia de Lobato. Segundo seus biógrafos,
em 1911 ele herda uma fazenda de seu avô – a fazenda
Buquira, no Vale do Paraíba (SP) – tornando-se
fazendeiro. Pelo que se sabe, um fazendeiro cheio de idéias
modernas, disposto a modernizar agricultura e pecuária.
Tropeça, no entanto, em práticas muito arraigadas
do camponês brasileiro. Desentende-se com o capataz,
fica bravo, despede empregados. E, em uma carta ao jornal
O Estado de S. Paulo, cria uma figura desqualificada
(que viria a ser o Jeca Tatu) para representar o caipira.
Essas cartas foram publicadas com tanto destaque no jornal,
que ganharam status de artigo, ambos publicados em
1914: Velha Praga em 12 de novembro e Urupês
em 23 de dezembro. O sucesso foi tão grande que, quando
Lobato publica seu primeiro livro de contos, em 1918, dá
a ele o nome Urupês.
ComCiência
- O Jeca Tatu pode ser considerado uma expressão do
nacionalismo presente na obra de Lobato?
Marisa Lajolo - Acompanhar a trajetória do
Jeca Tatu na obra lobatiana é uma chance muito boa
de observarmos as diferentes perspectivas pelas quais a questão
agrária brasileira e a correlata situação
da saúde pública se fazem presentes na obra
do criador do Sítio do Picapau Amarelo. Num primeiro
momento, Monteiro Lobato responsabiliza o Jeca – o camponês,
o trabalhador rural, o “sem terra”, na linguagem
de hoje – pelos problemas da agricultura. Considera-o
preguiçoso demais para promover as necessárias
mudanças na agricultura e no seu (dele, Jeca) modus
vivendi. Nesse momento, Lobato é implacável
na desqualificação de toda a cultura caipira,
de suas manifestações artísticas à
sua linguagem e às suas práticas econômicas.
Um pouco depois, no final dos anos 1910 e no bojo das campanhas
sanitaristas, Lobato muda sua análise do problema:
o Jeca não é mais réu, porém vítima,
é a precariedade da saúde pública brasileira
– da qual sofre as conseqüências, representadas,
por exemplo, pelo impaludismo e pela verminose. É nesse
momento que Lobato se envolve em campanhas de saúde
pública. E finalmente, vinte anos depois, nos anos
40, no livreto Zé Brasil, Lobato aproxima-se
mais uma vez da cultura caipira, articulando-a a questões
econômicas: o Jeca – agora rebatizado de Zé
Brasil, numa renomeação bastante sugestiva
– é pouco produtivo porque não é
dono da terra em que trabalha. Ou seja, o Jeca não
é preguiçoso, nem doente, mas sim vítima
do latifúndio brasileiro. Vale a pena assinalar que
essa última versão do Jeca coincide com a aproximação
do escritor com o Partido Comunista Brasileiro (PCB). O sentido
de autocrítica, nessa terceira versão do caboclo
é evidente: entre as parcas posses de Zé Brasil,
Lobato inclui “aquele livrinho do Fontoura com a história
do Jeca Tatu”. E o diálogo entre a velha e a
nova versão do Jeca prossegue: “Coitado deste
Jeca! dizia Zé Brasil olhando para aquelas figuras.
Tal qual eu. Tudo que ele tinha, eu também tenho. A
mesma opilação, a mesma maleita, a mesma miséria
e até o mesmo cachorrinho. Pois não é
que meu cachorro também se chama Joli?” (trecho
de Monteiro Lobato. Zé Brasil. Editoria Vitória.
1947 p.5 e 6)
ComCiência
- Como foi esse envolvimento de Lobato em campanhas pela saúde
pública?
Marisa Lajolo - Foi na esteira do sucesso e da polêmica
de seu livro Urupês, e da obra Saneamento
do Brasil, de Belisário Pena, que Lobato adere
à campanha sanitarista e escreve uma série de
artigos para o jornal O Estado de S. Paulo nos quais
denuncia a precariedade da saúde das populações
rurais. A transcrição a seguir ilustra o tom
dos artigos: “De par com três flagelos endêmicos,
a opilação, a malária e a moléstia
de Chagas, uma só das quais bastava para derrancar
o país, a lepra campeia infrene, a sífilis alarga
os seus domínios, a tuberculose avulta cada vez mais
e a leishmaniose, essa horrenda úlcera de Bauru ou
ferida brava, deforma milhares de criaturas” (O
problema vital. Ed. Brasiliense. 1956, p.253). No mesmo
ano de 1918, um conjunto destes artigos foi publicado como
livro sob patrocínio da Sociedade de Eugenia de S.Paulo
e da Liga Pró-Saneamento do Brasil. (Veja carta
de Monteiro Lobato à Liga Sanitária)
ComCiência
- Pode-se dizer que a obra de Lobato contribuiu para a campanha
sanitarista do início do século XX?
Marisa Lajolo - As “questões de saúde
pública” constituem uma dentre inúmeras
campanhas nas quais Lobato se envolveu. Sua vida e obra marcam
sua adesão a várias campanhas, nem sempre compatíveis
umas com as outras. Num primeiro momento de seu envolvimento
com questões de saúde pública, por exemplo,
ele escreve Jeca Tatuzinho, uma espécie de
“cartilha” para disseminar hábitos mais
saudáveis, como andar calçado e lavar as mãos.
Nesse texto, Lobato faz apologia da erva-de-santa-maria como
vermífugo eficiente no combate à ancilostomose.
Pode-se dizer que aqui encontramos um Lobato convertido à
medicina popular das ervas. Depois, esse Lobato da medicina
caseira e popular passa para a indústria farmacêutica.
Lobato era amigo do farmacêutico Cândido Fontoura
– de quem, aliás, escreveu uma biografia- e a
mesma história de Jeca Tatuzinho é adaptada
para transformar-se em almanaque da indústria Fontoura,
onde a figura do Jeca Tatuzinho vende o Biotônico, Maleitosan
e Ankilostomina. Esse almanaque, talvez tanto quanto as histórias
infantis do Sítio do Picapau Amarelo, tornou a imagem
de Lobato tão marcada no imaginário brasileiro.
ComCiência
- Que outros autores, assim como Lobato, abordam problemas
da saúde pública em sua obra?
Marisa Lajolo - Guimarães Rosa em Sagarana
tem um conto magistral – Sarapalha – onde as personagens
sofrem de malária. Também em Grande sertão:
veredas há cenas de hanseníase bastante
impressionantes. Mas creio que a doença, em Rosa, tem
menos a função de revelar problemas de saúde
pública e mais de compor tipos verossímeis do
interior brasileiro. Ou seja, os jecas continuam existindo
na segunda metade do século XX.
ComCiência
- Quando assuntos como a saúde pública começaram
a ser abordados na literatura nacional?
Marisa Lajolo - Não conheço trabalhos
que façam um levantamento sistemático das relações
da literatura com a saúde pública. Eis aí
um bom projeto para uma pesquisa interdisciplinar! É
muito recente a percepção da importância
da literatura para um conhecimento mais matizado de diferentes
aspectos da cultura e da civilização. Essa percepção
vem da recente aliança de pesquisadores de literatura
e historiadores, voltados para a história das mentalidades,
história da vida privada, história oral. É
bastante conhecida, por exemplo, nos estudos literários
brasileiros, a incidência alta de tuberculose (seus
derivados e desdobramentos) entre nossos românticos.
Seria interessante estudar-se a repercussão disso na
criação de personagens, na formulação
de padrões de beleza. A presença da tuberculose
na literatura brasileira ultrapassa o século XIX: o
poema “Pneumotórax” de Manuel Bandeira
refere-se à doença, o romance Floradas na
serra (Dinah Silveira de Queiroz) passa-se em Campos
de Jordão – cidade paulista cujo clima era (e
ainda é) considerado um aliado poderoso para a cura
de moléstias pulmonares. Navios iluminados
(de Ranulfo Prata) tem belíssimas cenas de um trabalhador
do cais de Santos devastado pela doença. A tuberculose
é também muito presente na vida familiar de
Lobato: seus dois filhos morreram tuberculosos e algumas cartas
de Lobato são impressionantes na descrição
dos sintomas da doença e do sofrimento emocional de
ter um parente tuberculoso. Lobato demonstra uma aguda percepção
no conto.
ComCiência
- Algum texto de Lobato menciona outros problemas de saúde
pública?
Marisa Lajolo - O “Rapto” é um
conto muito interessante: conta a história de um velho,
portador de catarata que é “raptado” pelos
filhos para não ser submetido a uma operação.
A cirurgia, curando-o, possivelmente diminuiria o fluxo de
esmolas com que ele sustentava a família. O conto parece
captar com muita sensibilidade diferentes pontos de vista
face à doença. O biógrafo Edgard Cavalheiro
registra que o conto foi inspirado na vida real, citando uma
carta de Lobato para Godofredo Rangel, seu amigo, em que ele
relata que se inspirou na imagem de um homem aleijado, chefe
de família, que viu pedindo esmolas da estação
de Pindamonhangaba, para escrever o conto. Se foi mesmo inspirado
no episódio que o escritor relata, observamos uma sutileza
da criação literária. Lobato “muda”
o problema da personagem: no conto, a questão não
é ser aleijado, porém ser cego – e cego
por uma doença muito comum ainda hoje. Cada vez que
leio sobre “mutirões” de catarata me lembro
do conto, que está publicado em Cidades mortas.
ComCiência-
Lobato, em sua obra, relacionou a questão sanitária
com a situação do sertão do Brasil. Nesse
sentido, de que maneira Lobato dialoga com Euclides da Cunha,
que também aborda a condição de isolamento
e atraso do sertanejo em sua obra?
Marisa Lajolo - Lobato era admirador confesso de
Euclides da Cunha. Em vários momentos de sua correspondência
alude à Os sertões como uma obra decisiva
e definidora de rumos para a literatura brasileira. Em 23
de outubro de 1909, por exemplo, comenta com seu amigo Godofredo
Rangel que “o grande triunfo de Euclides foi meter um
pouco de ciência na literatura”.
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