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Ciro Gomes garante que transposição é medida mais apropriada
Ciro Gomes

Diretor do Ippur critica mercantilização da água
Carlos Bernardo Vainer

 

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Diretor do Ippur critica mercantilização da água

Diretor do Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carlos Vainer critica ambientalistas que apóiam a mercantilização da água como o melhor meio de gestão dos recursos hídricos. Para ele, inserir a água nas “leis do mercado” é inseri-la na lógica do mais forte e afirma: “o mercado não entende nada de valores morais, apenas de valores monetários”. O pesquisador critica também a idéia de que o esgotamento de recursos e a poluição são conseqüências da ausência do mercado no controle e uso dos recursos ambientais. Quanto ao fato do Banco Mundial condicionar empréstimos aos países que adotem uma política de privatização das águas, o professor explica que o Banco exerce um poder de ordem ideológica e não econômico-financeira e que a decisão da privatização é soberana e parte do governo. Porém, segundo ele, o presidente Lula tem obedecido às “orientações” do Banco Mundial. Quanto à questão do modelo energético adotado pelo Brasil, o pesquisador acredita que a construção das barragens impõe a centenas de milhares de pessoas a perda de patrimônio material e imaterial acumulado ao longo de gerações, tema que deverá ser discutido durante o I Encontro de Ciências Sociais e Barragens, organizado por ele.

ComCiência - A cobrança pelo uso da água, cuja adoção está em discussão em vários estados brasileiros, poderia ser uma boa fonte de recursos para que os Comitês de Bacias e o Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro) possam investir na preservação e revitalização das bacias. Por outro lado, essa cobrança poderia abrir precedentes para a privatização dos recursos hídricos, que poderia acarretar uma impossibilidade de acesso a esse recurso. Quais seriam as principais implicações de uma cobrança direta pelo uso da água?
Carlos Bernardo Vainer - O argumento de que a cobrança pelo uso da água constitui o “ovo de Colombo” para gerar recursos que permitam uma adequada gestão da água e o fortalecimento dos comitês de bacia, constitui, a meu ver, uma grande falácia. Na verdade, a proposta de “cobrança da água” está fundada na idéia de que somente a mercantilização da água poderá conduzir a uma adequada gestão dos recursos hídricos. Seu fundamento filosófico-ideológico é de que o mercado constitui o mais adequado mecanismo para uma eficiente alocação (gestão) dos recursos. Esta é a proposta difundida urbi e orbi pelos ideólogos neoliberais e pelo Banco Mundial. É verdade que muitos ambientalistas defenderam e defendem esta proposta. Alguns, por serem claramente defensores de políticas ambientais orientadas pelo e para o mercado – market oriented environmental policies –, outros, por ingenuidade ou falta de informação do verdadeiro significado da “mercantilização” da água.

ComCiência – E quais seriam a alternativas?
Vainer - A alternativa é que a água seja tratada como bem público, e não como mercadoria. Isso significa entender que as decisões relativas à apropriação, controle e uso da água não deve se resolver e consumar no mercado, através da compra e venda, oferta e procura, regulando e sendo reguladas pelos preços, num jogo supostamente racional e equilibrado. Ao invés de delegar aos preços e mercados, assumir que ela é um bem público, o que significa que o controle e uso devem ser discutidos e definidos na esfera da política – entendida como espaço público, do debate público e da constituição do interesse público – e não na esfera da economia.

ComCiência - Quanto à economia, quais os possíveis impactos da cobrança pela água (cogita-se em R$ 0,01 a R$ 0,02 por metro cúbico) considerando que os principais “atingidos” serão os agricultores e as empresas que passariam a pagar pela água que hoje retiram de graça dos rios?
Vainer - Uma vez estabelecido que a água é uma mercadoria, com um preço, o mercado passa a operar, com suas leis, isto é, as leis do mais forte. O mercado é o espaço social e econômico preferencial do agronegócio. O modelo estabelecido pela legislação de recursos hídricos aprovada no governo FHC lançou o que se costuma chamar de bases institucionais para a “gestão dos recursos hídricos” num modelo “orientado para e pelo mercado”. Essa pergunta está fundada em uma ingenuidade paradoxal. De um lado, aceitam, e até mesmo vêem, virtudes “na cobrança pela água”, e depois se preocupam com as conseqüências da mercantilização da água. É como aceitar as condições que entronizam o mercado da água, mas não que este mercado fosse perverso. Querem o “bom mercado”, mas isso não existe: o mercado não entende nada de valores morais, apenas de valores monetários. Ao invés de regular um “mercado da água”, caberia ao poder público, de maneira política, na esfera pública e no debate público, determinar quem e quanto vai ser usado por esse ou aquele ator social, para tal ou qual objetivo. Ao invés de gestão de recursos hídricos, mercado de água e hidronegócio, devemos lutar pela instauração da “política” de águas, arbitramento político dos controles e usos, e afirmação da água como bem público, não mercantil e, portanto, fora da esfera de valorização do capital – isto é, do negócio.

ComCiência - Existem exemplos de países onde a cobrança pela água foi adotada com sucesso? Na sua opinião, a cobrança é uma boa medida para reduzir os impactos nos recursos hídricos nacionais?
Vainer - Precisamos ter claro o que se entende por sucesso e por fracasso. Na França, citada como modelo de gestão da água, as grandes empresas privadas foram constituídas nesse modelo, e hoje disputam a privatização da água – abastecimento e esgoto. O modelo francês (europeu, de modo mais amplo) é a cabeça de ponte da privatização no Brasil, e, de modo mais geral, em toda a América Latina. O sucesso francês pode ser medido pela agressividade do Grupo Suez, entre outros.

ComCiência - Parece haver um outro tipo de ameaça de privatização dos recursos hídricos pela compra de fontes minerais por empresas estrangeiras. Grandes empresas mundiais como a Vivendi e a Suez Lyonnaise del Eaux compraram várias fontes de água. No Brasil, por exemplo, a Nestlé encerrou, em novembro, a produção da água Pure Life no Parque das Águas, em São Lourenço (MG), onde há quatro anos vinha se arrastando uma questão jurídico-ambiental devido à suspeita de superexploração e deteriorização das fontes. Tendo em vista esses exemplos e o cenário de escassez de água doce previsto para as próximas décadas, quais as perspectivas para a América Latina?
Vainer - Uma empresa privada não tem qualquer problema com o esgotamento de um recurso, pois seu cálculo econômico opera sob a ótica da valorização de seu capital particular. O postulado neoliberal segundo o qual a ação individualmente interessada de cada agente no mercado conduz ao máximo interesse público claramente é incapaz de fundar uma explicação para a deterioração dos recursos ambientais. A resposta que eles encontraram foi de que os problemas – esgotamento de recursos, poluição – resultam de que o mercado (ainda) não está implantado em certas esferas – entre as quais, o controle e uso dos recursos ambientais. Por isso propõem a “extensão da fronteira” do mercado. O que eles propõem, e estão fazendo, é submeter ao mercado e sua lógica bens que antes estavam fora dessa esfera. Assim como a terra virou mercadoria lá pelos idos do século XVIII, com a revolução agrícola e a revolução burguesa (até então a maior parte das terras agrícolas na Europa estava submetida a um regime de direitos múltiplos e não ao regime de propriedade privada tal como o conhecemos hoje), agora tratam de estender o império do mercado à água. O nobre feudal tinha direitos sobre a terra e sobre os camponeses (servos) de seus domínios, mas não podia vender esses domínios.

ComCiência - E como isso ocorre no Brasil?
Vainer - No Brasil, até 1934, o proprietário da terra tinha a propriedade plena da água que corria em sua terra – da mesma forma que tinha a propriedade do sub-solo. Assim como o Código de Minas retirou do proprietário do solo a propriedade e domínio do sub-solo, o Código de Águas – também de 1934 – retirou do proprietário fundiário a plena propriedade da água que nasce, se acumula e corre em sua propriedade. Dependendo dos casos, poderia virar água municipal, estadual ou federal. E no que concerne ao potencial hidrelétrico, também foi todo transformado em patrimônio público. Somente uma clara oposição a todos os elementos do projeto de mercantilização da água – inclusive a legislação de recursos hídricos de FHC – poderá conduzir a uma recuperação do domínio público da água. Água como bem público, e não como mercadoria, este é o eixo central, e inicial, de qualquer projeto que, de fato, se contraponha ao modelo dominante.

ComCiência - Há informações de que o Banco Mundial teria exigido que alguns países privatizassem seus recursos hídricos se quisessem ter acesso a empréstimos. Como o Brasil é um país com uma das maiores reservas de água doce do mundo, quais os interesses e qual o poder real que esse organismo exerce sobre os recursos hídricos brasileiros?
Vainer - O Banco Mundial não detém qualquer poder – formal ou informal – para exigir seja o que for. O que o Banco pode fazer é estabelecer condicionalidades para fazer empréstimos. Ele tem feito isso e tem tido papel decisivo na elaboração e difusão de modelos e políticas – no caso que nos interessa aqui, modelos e políticas do que eles chamam de “gestão de recursos hídricos”. Se o governo brasileiro adota os modelos e políticas elaboradas e difundidas pelo Banco Mundial, se aceita as condicionalidades impostas, é porque adere ao projeto global de entrega da água e demais recursos aos grandes grupos privados, nacionais e internacionais. O poder que o Banco Mundial exerce, a meu ver, é menos de natureza estritamente econômico-financeira que de ordem ideológica, cultural, política e operacional. O Banco não tem qualquer poder efetivo de pressão. Tanto é assim que, em vários países, suas propostas e modelos têm sido rejeitados. No Uruguai, para citar um exemplo, recente plebiscito, por mais de 65% dos votos, estabeleceu claramente que a água é um bem público e proibiu toda e qualquer privatização da água.

ComCiência - Nesse sentido, como o Banco Mundial ameaça a soberania brasileira?
Vainer - É precisa ficar claro que trata-se de uma decisão “soberana” do governo brasileiro a adoção do modelo de privatização. O Governo FHC adotou e o Governo Lula mantém a mesma orientação de adesão ao modelo de privatização proposto pelo Banco Mundial. É possível que aqui ou ali, em alguns segmentos do governo, ainda sobrevivam resistências ou escrúpulos, mas a orientação dominante é prosseguir no processo deflagrado com FHC. E não devemos esquecer, no que se refere ao Banco Mundial, que além do governo federal e governos estaduais e, muitas vezes, prefeituras que contratam empréstimos, também o Senado Federal tem responsabilidades diretas, uma vez que é de sua competência aprovar – ou não – os empréstimos e contratos contraídos com o Banco Mundial. E o Senado aprovou e aceitou, e continua aprovando e aceitando, todas as condicionalidades constantes desses contratos e empréstimos. A soberania brasileira está integralmente respeitada. O que acontece é que os grupos dominantes colocaram essa soberania a serviço dos interesses dos grandes grupos privados, nacionais e internacionais. É bom lembrar que no processo de privatização da água, que envolve a concessão do potencial hidrelétrico para geração de energia elétrica, grandes empresas privadas nacionais encontram-se entre os principais beneficiários. Nomes bem conhecidos dos brasileiros, como Camargo Corrêa, Odebrecht, Vale do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, Votorantim, estão entre os grandes beneficiários do processo de privatização do setor elétrico brasileiro. Não se trata de isentar o Banco Mundial de suas responsabilidades, mas de entender que o Banco Mundial, hoje, funciona como uma espécie de grande central de produção e difusão de conceitos, modelos, projetos e políticas. A adesão das elites dominantes – acadêmicas e intelectuais, tanto quanto econômicas e políticas, sindicais e partidárias – sinaliza o esgotamento dessas elites, sua abdicação de qualquer nacionalidade e sua capitulação diante do grande capital financeiro internacional e o capital nacional associado. Qualquer alternativa dependerá de uma verdadeira contra-hegemonia que deverá ser, necessariamente, cultural e ideológica, teórica e prática, política e econômica. A apropriação, controle e uso dos recursos ambientais, da água e energia em primeiro lugar, deve ocupar lugar de destaque nessa agenda contra-hegemônica.

ComCiência - Corremos o risco de ter que pagar a empresas estrangeiras para consumir nossa própria água?
Vainer - Corremos o risco? Não é risco, é certeza. Mantido o modelo atual e a legislação de recursos hídricos de FHC, a água vira mercadoria. E no mercado, vencerão os mais fortes, os grupos dominantes do hidronegócio. Não há como instalar o mercado e sonhar com uma repartição democrática do mercado entre pequenas empresas e comitês de bacias negociando. O ideal de um capitalismo em que o mercado é dominado por pequenos é tão ou mais utópico que o projeto de uma sociedade em que água seja um bem público, regulada por políticas democraticamente estabelecidas na esfera pública e sob a égide do interesse público. Utopia por utopia, prefiro esta última.

ComCiência - Além da utilização da água para consumo humano, agricultura e indústria; uma outra finalidade que acaba provocando grande impacto nos recursos hídricos e o meio ambiente de maneira geral é a construção de barragens para geração de energia. Qual tem sido o impacto do setor hidrelétrico nos recursos hídricos e conseqüentemente para as populações cuja forma de subsistência envolve a utilização direta dos rios?
Vainer - A apropriação e uso de recursos hídricos para a geração de energia elétrica é um dos vetores determinantes do padrão de desenvolvimento e do modo de inserção – periférica e subordinada – do capitalismo brasileiro. As megausinas e as grandes barragens, construídas nos últimos anos e previstas para o futuro próximo, ameaçam transformar imensas regiões e bacias em meras plataformas de exportação energética. A bacia do Uruguai, no Rio Grande do Sul e Santa Catarina e, sobretudo, a Amazônia serão colocadas a serviço da indústria eletro-intensiva, voltada para exportação. É para isso que apontam os complexos mínero-metalúrgicos-energéticos no Pará e Maranhão, voltados para a produção de alumínio; e a escalada da soja na Amazônia ocidental. É o que aparece também quando se observa que muitas das concessões nos últimos anos de FHC foram capturadas por empresas associadas à indústria eletro-intensiva: Grupo Votorantim/Companhia Brasileira de Alumínio, Alcoa, CVRD, CSN etc. Os países centrais dominantes, desde a primeira crise do petróleo, transferiram as indústrias eletro-intensivas para os países periféricos, porque têm consciência do alto custo social e ambiental da geração de energia em grande escala para alimentar indústrias energívoras.

ComCiência - E qual foi o impacto na indústria eletro-intensiva brasileira?
Vainer - Ao longo dos últimos 15 anos, a produção brasileira dos setores industriais eletro-intensivos praticamente dobrou, como consequência de uma política industrial de apoio e incentivo a essa forma de inserção no mercado internacional, baseada na produção para exportação de bens primários de baixo valor agregado. Estamos falando, sobretudo, de alumínio primário, aço e ferroligas, papel e celulose. Apesar da aparência de modernidade que se tem quando se olha uma usina de alumínio, exportar alumínio hoje é o equivalente a exportar café e açúcar no século XIX. Exportar alumínio é exportar água, território, florestas, populações deslocadas, grupos indígenas destruídos ou ameaçados. É a renovação e atualização de uma condição que muito se assemelha ao que foi a condição colonial de exportador de produtos primários. De outro lado, qualquer balanço sério desse modelo deve contabilizar os impactos dos megaempreendimentos hidrelétricos nas regiões de implantação. Aqui, o balanço não é apenas injusto e desigual, mas simplesmente dramático. Centenas de milhares de pessoas foram compulsoriamente deslocadas, perdendo terras, casas, e, muitas vezes, o patrimônio material e imaterial acumulado ao longo de gerações. As indenizações e reparações quase sempre foram insuficientes para que fossem asseguradas, pelo menos, condições equivalentes às prevalecentes anteriormente – sem falar que muitos dos atingidos, por não terem título de propriedade, por serem assalariados ou meeiros, nem mesmo foram considerados. Após a euforia do emprego gerado pelas obras civis, o resultado é o desemprego maciço, a migração para as periferias e favelas urbanas, a degradação das condições de vida, muitas vezes o desespero.

ComCiência - O senhor defende que existem novos regionalismos no Brasil que partem dos movimentos sociais como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), entre outros. Qual é a importância dos movimentos sociais para barrar o processo de privatização da água no Brasil?
Vainer - Os movimentos sociais territorializados, isto é, que acionam identidades territoriais – os atingidos por barragens, os seringueiros, o Movimento pelo Desenvolvimento do Tocantins e Xingu – constituem uma extraordinária inovação, já que, tradicionalmente, o regionalismo constitui elemento central da ideologia e da retórica das oligarquias tradicionais, que buscavam simultaneamente: a) de um lado, amenizar as contradições e conflitos no interior de “sua” região, criando um sentimento de unidade inter-classes; b) de outro lado, deslocar para o “inimigo externo” – o governo central, o Sudeste, São Paulo –, o foco do descontentamento e conflitos dos grupos dominados regionalmente. O surgimento do que tenho chamado de novos regionalismos de base popular criam uma nova perspectiva, uma vez que, agora, o território e a região passam a operar como elementos para a constituição e consolidação de movimentos e coalizões de base popular que, ao mesmo tempo, questionam o poder central e os grupos hegemônicos a nível nacional e o poder local/regional, isto é, os grupos dominantes com projeção local/regional. Notável nesses “novos movimentos regionais” tem sido a forma em que eles constróem a perspectiva da apropriação e controle dos recursos ambientais: a apropriação, controle e uso da água por grupos externos, para atender a interesses extra-regionais – nacionais ou internacionais – é claramente percebida como um processo de expropriação. Assim, esses movimentos têm sido um dos principais, provavelmente os principais atores na luta contra a entrega de nossos rios e águas, de modo geral, a grupos privados: seja para a produção privada de energia, seja para a irrigação associada ao agronegócio.

 

Atualizado em 10/02/2005

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