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Ciência
na Índia multireligiosa
Ranjit Nair
As pontes entre ciência e religião
Eduardo Cruz
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Ciência na
Índia multireligiosa
A milenar Índia compartilha com o Brasil a
posição de país emergente e dos
contrastes. Destaca-se como
11ª economia mundial, enquanto abriga mais de um quarto da
população mais pobre do mundo. Nos últimos 5 anos
atraiu mais de 100 empresas globais que lá instalaram seus
núcleos de Pesquisa & Desenvolvimento graças à
disponibilidade de mão-de-obra e de recursos humanos
qualificados. É verdade que forma apenas cerca de cinco mil
doutores por ano, em uma população que ultrapassa um
bilhão de pessoas, enquanto 39% dos adultos não sabem ler
ou escrever. Mas há um enorme esforço em impulsionar o
desenvolvimento de C&T. Não é todo país que
anuncia o investimento de US$3,8 bilhões para pesquisas
científicas a serem consumidos até 2006. Tantos
avanços parecem ser um enorme contraste em um país
fortemente religioso, onde as três principais religiões
são o hinduísmo, o islamismo e o budismo. Ranjit Nair,
diretor do Centro de Filosofia e Fundações da
Ciência (CPFS), conversou por e-mail com a ComCiência
e falou sobre uma ciência à serviço do bem estar
humano que não vai de encontro aos princípios religiosos
indianos. "As tradições religiosas que se originaram na
Índia, viam o conhecimento como uma forma de
libertação, não de aprisionamento", afirma. Nair,
que se considera um estudante de cosmologia, “um assunto que é
infinitamente fascinante”, acredita que já é hora de
haver uma reparação na relação
“tradicionalmente tensa” entre religião e ciência.
ComCiência
– Fala-se sobre os desafios que o novo Papa terá de enfrentar em
relação à ciência. Qual é o papel de
líderes religiosos em relação ao desenvolvimento
científico?
Ranjit Nair - O novo Papa é, claramente, um homem de
considerável aprendizado e experiência, imerso nas
tradições da Igreja. Sua ascensão causou
controvérsias. Seus detratores alegam que ele protegia as
dioceses onde os padres caíram em tentação. Talvez
isso mostre uma aceitação de que os padres são
afinal humanos e seria injusto estabelecer padrões extremamente
elevados de proibição.
Por outro lado, as
relações entre a ciência e a igreja têm sido
tradicionalmente tensas e deve-se esperar que uma
reparação seja feita por este ou pelo próximo
Papa. A Igreja reabilitou oficialmente Galileu séculos
após sua morte, o que foi algo bom e que deveria ser estendido a
outros mártires da causa científica.
O melhor que os
líderes religiosos podem fazer é pensar sobre o lugar do
dogma santificado em uma era em que a ciência é a moeda do
conhecimento e a tecnologia a moeda do poder. Desde a Reforma, as
igrejas tentaram tornar-se menos frias e autoritárias e mais
envolvidas com o bem estar de seus seguidores.
O Papa João Paulo
II apoiou o esforço heróico de Lech Walesa [líder
metalúrgico, anti-comunista polonês, ganhador do Nobel da
Paz de 1983 e eleito presidente da Polônia em 1990] e do
Solidariedade [Comitê Sindical fundado por Walesa para organizar
o movimento social] contra um regime tirano, mas decepcionou a muitos
quando adotou atitudes desgastantes contra questões como o
controle da natalidade e a prevenção da aids. A
história o perdoará, já que ninguém pode
ser totalmente bom e mesmo aqueles que fizeram pouca bondade merecem
gratidão.
ComCiência
– Como está a situação na Índia em
relação a essa questão?
Nair - A situação na Índia é muito
diferente e não é fácil compreendê-la quando
se olha de fora. A Índia abriga todas as religiões, tanto
as nativas quanto as naturalizadas. As tradições
religiosas que se originaram no país viam o conhecimento como
uma forma de libertação, não de aprisionamento. A
evidência perceptiva foi aceita por todas as escolas
filosóficas; como Shankara [cerca de 788 – 820, teólogo e
filósofo que reformou o hinduísmo com uma
interpretação monística, onde toda realidade seria
remetida a uma única fonte] disse no século VIII, 'mesmo
que cem textos escriturais afirmem que o fogo é fresco e
não radiante, isso não o tornaria assim'. As
tradições espirituais da Índia receberam bem o
conhecimento. O ritualista Mimamsa, uma das seis escolas chamadas de
filosofia védica, acreditava que as escrituras tratavam do
desempenho do ritual e tinham uma metafísica sobre como os
rituais conduziam aos resultados desejados. Mas, curiosamente, eles
não reservaram um lugar para um Deus. O único argumento
filosófico para um Deus aparece no século X em um texto
da escola de Nyaya [outra escola dentro da filosofia védica].
Isto não significa que os intelectuais desaprovaram as
religiões populares – elas foram aceitas como caminhos à
verdade de forma acessível para seus seguidores. O visitante
árabe Alberuni, no século X, viu claramente que o monismo
dos intelectuais não contradizia o monoteísmo. Quando o
islamismo entrou na Índia, não foi através de
conquistas, mas através dos homens sagrados chamados de sufi
[responsáveis por falar diretamente com Deus e compreender os
mistérios espirituais], que pertenciam a uma ordem considerada
herética dentro do islamismo ortodoxo.
ComCiência
- Como a sociedade indiana, principalmente os grupos religiosos nela
contidos, lida com temas científicos ligados à
questão da geração e destruição da
vida – como a clonagem, o uso de células-tronco e a
eutanásia?
Nair - Na Índia não há, à primeira
vista, qualquer oposição a novas tecnologias que possam
aliviar o sofrimento humano. No século XIX, os intelectuais
religiosos não se sentiram ameaçados pela teoria da
evolução de Darwin. A eutanásia foi aceita dentro
das tradições religiosas. O imperador Chandragupta de
Maurya [321 a. C. - 232 a.C] tirou a própria vida em um templo
em Jaina, apressando sua morte. Os problemas enfrentados pela sociedade
indiana são os mesmos enfrentados pelas sociedades consumistas
mundiais, com um agravante. O equilíbrio de gênero,
particularmente nas regiões do norte da Índia onde
há um atraso social, está longe de ter a
preponderância feminina natural, indicando uma difusão do
infanticídio feminino. O mau uso de tecnologias como a
amniocentesis [exame do líquido amniótico que envolve o
feto], para a seleção de gênero, apesar de ser
oficialmente proibido, ocorre com a conivência daqueles que
dão suporte à lei. Na sociedade consumista em que
vivemos, dinheiro é uma marca de sucesso, não importando
o quão patológico isso tenha se tornado.
ComCiência
- O governo indiano financia a pesquisa em áreas
biotecnológicas?
Nair - O governo vê uma oportunidade aqui, porque as
nações ocidentais são prisioneiras da
história e, portanto, vacilam na hora de permitir pesquisas,
mesmo no campo da clonagem terapêutica. O sucesso das terapias de
cultivo de células-tronco para situações onde
não há cura ou de fatalidade aliviaria bastante o
sofrimento humano. Se Jesus Cristo fosse vivo, ele não tentaria
todos os recursos que estivessem ao seu alcance para ajudar os doentes
e os que estão morrendo? Seus milagres, os quais os
céticos podem considerar como lembranças
nostálgicas, podem ser potencialmente alcançados com o
auxílio da ciência. Na Índia, a pesquisa sobre o
bioética é quase inexistente e na melhor das
hipóteses é derivativa, uma vez que os tecnocratas
não têm tempo para tais frivolidades. É uma
questão de tempo, espera-se, até que os tecnocratas
possam desenvolver antenas éticas.
ComCiência
- Como o governo deve agir em relação a
superstições populares para promover inclusão
social através da ciência?
Nair - Eu não estou certo sobre quais
superstições está se falando aqui, porque a
crença popular existe em toda parte. Os ingleses não
comem cachorros, enquanto os coreanos comem. Os hindus tradicionais
não comem carne, mas os ingleses comem. Poderíamos dizer
que os ingleses são supersticiosos em relação aos
cães? Os melhores críticos de uma sociedade são
seus próprios críticos que compreendem as crenças
de forma contextualizada e são conscientes de suas
inadequações. Todas as sociedades do mundo têm
alguma forma de superstição: o detrito acumulado da
história.
ComCiência
– É possível que cientistas sejam religiosos?Quando
ciência e religião se sobrepõem?
Nair - Sempre houve e ainda há cientistas que
são religiosos, então isso é claramente
possível. O problema surge somente quando suas
inclinações religiosas interferem na ciência que
praticam – o que é um caminho para a perdição. A
comunidade científica mundial não recebe bem as
tentativas de legitimar opiniões pessoais através da
ciência. A ciência é feita por povos de diferentes
países e com diversas crenças religiosas, homens e
mulheres, altos e baixos, brancos e negros. Nenhuma dessas
diferenças extra-científicas importa na busca pela
verdade.
ComCiência
- Como lidar com necessidades locais em um mundo globalizado?
Nair - A liderança da Índia livre era
também multiétnica e comprometida com o desenvolvimento
da ciência, por exempl, como na época da liderança
de valentes como Jawaharlal Nehru [1889-1964, líder
político indiano que lutou para a independência de seu
país]. O desenvolvimento da ciência e da tecnologia para
promover as capacidades produtivas de seus cidadãos foi o
objetivo principal da Índia livre. Em situação
internacional adversa, a democracia indiana, que era secular,
republicana e comprometida em melhorar os povos, encontrou apenas
hostilidade e condescendência de seus exploradores. Agora os
grandes países asiáticos, China e Índia, têm
as economias que mais crescem e sustentam a demanda do mundo, prevendo
um retorno do centro de gravidade da economia mundial para a
Ásia, depois da aberração provisória da
Revolução Industrial. De qualquer forma, são os
tecnocratas, que estão ansiosos sobre a capacidade
tecnológica emergente desses países, que precisam
aprender com esses povos sobre os problemas criados por mega projetos,
como as grandes represas que têm conseqüências
ecológicas e sociais desastrosas. A suposição
implícita de que os mandarins necessitam controlar as
superstições populares é uma infeliz
conseqüência do colonialismo.
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