Reportagens






 
Tecnologias reprodutivas e racialização

Rosely Gomes Costa

Atualmente estou desenvolvendo uma pesquisa com médicos/as e usuários/as de clínicas privadas e de uma pública de reprodução assistida, e com médicos/as de dois bancos de sêmen, todos no estado de São Paulo. Entre outras questões, tenho investigado se as tecnologias reprodutivas estariam ou não sendo utilizadas para afirmar ou para negar características tidas como raciais. Refiro-me especificamente à técnica de doação de gametas (óvulos e espermatozóides), justamente por esta envolver a participação e a seleção de uma terceira pessoa no processo reprodutivo. A seleção do gameta a ser utilizado na inseminação artificial revela quais características são desejadas nos/as doadores/as.

O que a pesquisa vem mostrando é que, na maioria dos casos, não é o casal receptor que escolhe o/a doador/a, mas sim o médico/equipe médica da clínica ou do banco de sêmen. Essa escolha do/a doador/a por parte do médico/equipe médica tem como critério a semelhança imunológica (observada através de exames de sangue) e fenotípica entre doadores/as e receptores/as, independentemente do desejo expresso por cada casal em particular em relação a essa semelhança. Assim, ainda que houvesse um desejo por parte dos casais de branquear ou escurecer através do uso desse tipo de tecnologia, esse desejo seria barrado pelas instituições médicas que tomam para si a responsabilidade de garantir que a reprodução seja feita entre "semelhantes".

Em relação à doação de óvulos, há que se considerar que não existem bancos de óvulos, uma vez que estes podem ser congelados, mas se rompem ao serem descongelados. E como é garantido o sigilo da identidade de doadoras e receptoras (assim como de doadores e receptores), tanto na clínica pública quanto nas clínicas privadas é o médico/equipe médica que acaba por escolher a doadora. Essa escolha é feita entre outras pacientes, das próprias clínicas, que fazem outro tipo de tratamento para engravidar e que doam seus óvulos, usualmente em troca da divisão dos custos do tratamento ou da medicação com a receptora. No caso de doação de sêmen, na clínica pública, é o casal que compra o sêmen, sem interferência da clínica. Porém, a compra é feita em um banco de sêmen que fornece para a escolha do casal uma lista de possíveis doadores já selecionados previamente pelo próprio banco segundo sua semelhança imunológica e fenotípica com o casal receptor. Somente nos casos das clínicas privadas que recorrem ao outro banco de sêmen estudado, o casal pode escolher o doador que deseja. Mas, ainda nesses casos, as instituições médicas atuam novamente como mediadoras e reguladoras das relações referentes ao processo reprodutivo.

Este segundo nível de regulação das instituições médicas se refere ao fato de que, nos bancos de sêmen pesquisados, são os médicos/equipes médicas os responsáveis por categorizar os doadores segundo seus próprios critérios. Assim, apesar de haver toda uma discussão dentro e fora da academia sobre classificação racial no Brasil, as instituições médicas parecem não ser afligidas por esse problema, e classificam os candidatos a doadores que vão aos bancos de sêmen sem nenhum problema.

Sabemos que no Brasil, mais que uma definição fenotípica ou de origem, as definições de cor e de "raça" dependem do lugar social ocupado em relação a contextos específicos referidos à classe, gênero, prestígio, proximidade/intimidade; e relativos a quem pergunta e quem responde. A cor é um atributo a ser negociado nos diversos contextos e relações que se estabelecem entre pessoas, entidades, movimentos sociais, programas políticos, etc. [1]

Desta forma, a categorização das instituições médicas sobre cor e "raça" estão também informadas pela relação que se estabelece entre o/a médico/a que entrevista o candidato a doador e o candidato; entre a posição de status/poder do/a médico/a e a do candidato a doador, estabelecido pela sua idade, escolaridade, profissão etc. O mesmo pode ser dito em relação à escolha da doadora de óvulos, que depende da classificação fenotípica, tanto da doadora quanto da receptora, feita pelo médico/equipe médica.

Assim, a classificação de cor e "raça" dos bancos de sêmen já é um filtro realizado pelas instituições médicas que define quem é, e o que é ser branco, negro, mulato, mulato claro, mulato escuro; ter a pele branca clara ou média, etc.

Quando é o médico/equipe médica que realiza a escolha do/a doador/a, o que se observa é que institucionalmente já está prescrita a necessidade de semelhança tanto imunológica quanto fenotípica entre doadores/as e receptores/as. Ainda que o critério de semelhança imunológica se justifique por uma necessidade estritamente médica, e o critério de semelhança fenotípica vise evitar problemas familiares (segundo os médicos/as entrevistados/as), há que se considerar que a não mistura de "raças", a impossibilidade de branqueamento ou escurecimento, já se encontra prescrita e controlada pelas instituições médicas, independentemente do desejo dos casais.

Em relação às usuárias entrevistadas, as da clínica pública disseram ser brancas, morenas claras ou morenas escuras e, seus maridos, um pouco mais morenos que elas. As entrevistadas das clínicas privadas disseram ser brancas, ou brancas com a pele um pouco morena, assim como seus maridos.

Todas disseram desejar uma doadora semelhante a elas fenotipicamente. As justificativas dadas para isso foram: a manutenção do segredo sobre a doação de gametas e o desejo de crianças parecidas com a receptora. No primeiro caso, a pressão exercida pela família e amigos leva a que a procura pela doação de gametas seja feita em segredo. Assim, considera-se que o nascimento de uma criança semelhante à receptora permite que esse segredo seja mantido. No segundo caso, o desejo de filhos parecidos com a receptora aparece como uma prerrogativa da maternidade propiciada pelo uso de tecnologias reprodutivas, já que considera-se que, se não fosse para a criança ser parecida com a receptora, adotaria-se uma ao invés de recorrer à reprodução assistida.

Em resposta à questão de se as tecnologias reprodutivas estariam ou não sendo usadas para afirmar ou para negar características tidas como raciais, o que é possível constatar até o presente momento da pesquisa é que o desejo de semelhança fenotípica entre doadores/as e receptores/as é atribuído, na grande maioria dos casos, ao fato da semelhança permitir a manutenção do segredo da doação de gametas.

Porém, entre entrevistadas cujas famílias e amigos tinham conhecimento que elas esperavam por doação de óvulos, foi considerada como boa e bem-vinda a possibilidade da doadora ser "mais clara" que a receptora, podendo então nascer uma criança "loira e de olho azul". Mas não foi considerada uma boa possibilidade uma doadora "mais escura" que a receptora. No caso das demais entrevistadas - aquelas que queriam manter o segredo da doação -, embora o argumento para a semelhança fenotípica tenha sido o da manutenção do segredo, a referência a uma criança "mais escura" que elas próprias apareceu sempre associada aos problemas que essa criança geraria e aos preconceitos que ela sofreria. Assim, mesmo entre essas entrevistadas, a possibilidade de crianças com pele "mais escura" que a delas ou de seus maridos foi vista como um problema.

Durante as entrevistas com as usuárias, na grande maioria das vezes, o preconceito racial apareceu alocado no Outro: na sociedade, nos vizinhos, na escola, e não na própria entrevistada. O que confirma dados de uma pesquisa que aponta que, enquanto 89% dos entrevistados consideravam que o brasileiro é racista, apenas 10% disseram ser eles próprios racistas [2].

Segundo Appiah[3], em contextos socioculturais específicos, as características supostamente "raciais" podem ser altamente preditivas de traços sociais ou culturais. Porém, o autor associa essa predição a uma explicação histórica e sociocultural, e não a uma explicação biológica, genética.

É preciso dizer, para encerrar esse breve texto, que atualmente no Brasil os efeitos da discriminação racial podem ser verificados nos dados relativos ao menor acesso da população negra à educação, saúde, empregos bem remunerados, que concorrem para que "raça" seja fator determinante de exclusão social[4]. Há que se considerar, ainda, os problemas relativos à auto-estima dos negros, gerados por uma ideologia de branqueamento que propicia a construção de uma identidade negativa, no lugar de uma valorizada cultural e socialmente.

Rosely Gomes Costa é professora do Departamento de Antropologiado Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

Notas

  1. MAGGIE, Y. - 1991. A ilusão do concreto: análise do sistema de classificação racial no Brasil. Tese para professor titular de Antropologia do Departamento de Ciências Sociais da UFRJ.
    PISCITELLI, A. - 1996. "Sexo tropical": comentários sobre gênero e "raça" em alguns textos da mídia brasileira. Cadernos Pagu n. 6/7.
    KOFES, S. - 1996. Apresentação. Cadernos Pagu n. 6/7.
  2. TURRA, C. e VENTURI, G. - 1995. Racismo cordial: a mais completa análise sobre o preconceito de cor no Brasil. São Paulo, Ática.
  3. APPIAH, K.A. - 1997. Na casa de meu pai. A África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro, Contraponto.
  4. PERSPECTIVAS em Saúde e Direitos Reprodutivos, 2001, n. 4, Ano 2, Informativo Semestral da Fundação MacArthur.
 
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Atualizado em 10/11/2003
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