Ações 
                afirmativas e políticas de afirmação do negro 
                no Brasil 
                 
              Carlos 
                Vogt 
             
            I 
               
             De 
              um modo geral, os estudos e as atitudes intelectuais e políticas 
              voltados positivamente à questão do negro no Brasil 
              só se desenvolvem, efetivamente, no século XX, embora 
              tenha havido, no século XIX, toda uma literatura abolicionista, 
              de Castro Alves a Joaquim Nabuco que, no entanto, tratou o negro 
              como um problema homogeneizado pela escravidão, enquanto 
              mácula. 
            É 
              verdade que Nina Rodrigues, apontado como pioneiro dos estudos africanos 
              no Brasil, vinha trabalhando sobre o tema desde o final do século 
              XIX e que já em 1900 havia publicado no Jornal do Comércio 
              o que viria a ser depois capítulo do livro póstumo 
              Os africanos no Brasil, de 1933. Dois outros capítulos 
              desse livro foram também publicados antes da morte do autor 
              em Paris, em 1906: "As sublevações de negros 
              no Brasil anteriores ao século XIX. Palmares", no Diário 
              da Bahia e "Sobrevivências totêmicas: festas populares 
              e folclore", novamente no Jornal do Comércio. 
            A advertência 
              que Silvio Romero fizera no mesmo ano da Abolição 
              da Escravatura, em 1888, sobre a urgência de se voltarem os 
              estudos no Brasil para a questão do negro aparece como epígrafe 
              no livro de Nina Rodrigues: 
             
              [...] 
                temos a África em nossas cozinhas, como a América 
                em nossas selvas, e a Europa em nossos salões [...] 
                Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiques, 
                benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçangas... vão 
                morrendo..." 
             
            A adoção 
              da advertência de Silvio Romero por Nina Rodrigues, como epígrafe, 
              resume bem as contradições de atitudes em relação 
              ao negro que marcaram a obra do médico e intelectual maranhense 
              na Bahia: Defensor dos valores culturais dos africanos no Brasil 
              e dos seus direitos à liberdade de suas práticas religiosas, 
              mesmo contra as autoridades policiais que as perseguiam, Nina Rodrigues 
              irmanava-se também com Silvio Romero na visão "científica" 
              da inferioridade racial do negro: 
             
              "O 
                critério científico da inferioridade da Raça 
                Negra nada tem de comum com a revoltante exploração 
                que dele fizeram os interesses escravistas dos norte-americanos. 
                Para a ciência não é esta inferioridade mais 
                do que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto 
                da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade 
                nas suas diversas divisões ou secções (...) 
                A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os 
                seus incontestáveis serviços à nossa civilização, 
                por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o 
                revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem 
                os generosos exageros dos seus turiferários, há 
                de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como 
                povo (...)." 
             
            II 
            Em 
              1941, M. Herskovits, autor, na mesma década e na seguinte, 
              de vários trabalhos sobre a cultura afro-brasileira, publica 
              o livro The myth of the negro past. Nele, logo no início 
              declara a intenção de, realizando pesquisas sobre 
              a cultura de origem africana no EUA, contribuir para "melhorar 
              a situação inter-racial" nesse país. 
            Constrói, 
              assim, livro para ajudar a compreender a história do negro, 
              história até então ignorada, por zelo e por 
              descuido, contrapondo-se a cinco "mitos" então 
              vigentes. Primeiro, que os negros, como crianças, reagem 
              pacificamente a "situações sociais não 
              satisfatórias"; segundo, que apenas os africanos mais 
              fracos foram capturados, tendo os mais inteligentes fugido com êxito; 
              terceiro, como os escravos provinham de todas as regiões 
              da África, falavam diversas línguas, vinham de culturas 
              bastante variadas e tendo sido dispersos por todo o país, 
              não conseguiram estabelecer um "denominador cultural" 
              comum; quarto, que, embora negros da mesma origem tribal conseguissem, 
              às vezes, manter-se juntos nos EUA, não conseguiam 
              manter a sua cultura porque esta era patentemente inferior à 
              dos seus senhores; quinto, que "o negro é assim um homem 
              sem um passado". 
            Ao 
              escrever o prefácio da 2ª edição de seu 
              livro, em 1958, Herskovits reconheceria que muitas coisas haviam 
              mudado, desde a primeira edição, em 1941 e que o número 
              de negros que rejeitavam seu passado estava diminuindo paulatinamente, 
              o mesmo acontecendo com as atitudes dos brancos em relação 
              aos pontos de vista anteriores, para, então, arrematar: 
             
              "E 
                o negro americano, ao descobrir que tem um passado, adquire uma 
                segurança maior de que terá um futuro." 
             
             A 
              oposição entre o otimismo culturalista de Herskovits 
              e o pessimismo cientifista de Nina Rodrigues explica-se, entre outras 
              coisas, pela própria mudança dos paradigmas teóricos 
              no tratamento dos africanismos na América e pelo descrédito 
              científico em que acabara caindo a frenologia lombrosiana 
              e que tanto marcava a postura intelectual de Nina Rodrigues e de 
              tantos outros no Brasil, inclusive Euclides da Cunha em Os sertões. 
               
            Mas, 
              como se viu, o racismo cientificista de Nina Rodrigues não 
              era a única vertente analítica de seus estudos sobre 
              o tema. A simpatia pela cultura dos povos africanos para cá 
              trazidos como escravos, os processos de suas adequações, 
              transformações e influências pela interação 
              com os outros elementos constitutivos dessa nova realidade - o branco 
              europeu e o indígena americano, em particular, como lembrava, 
              veemente e dramático, Silvio Romero - , essa simpatia, pois, 
              resultando em atitudes intelectuais positivas em relação 
              ao negro, foi o que sobreviveu ao modismo positivista do médico 
              Nina Rodrigues, fazendo do etnólogo, que nele também 
              convivia, a influência mais importante para o desenvolvimento 
              dos estudos do negro no Brasil no início do século 
              XX. 
            Nessa 
              linha, muitos foram os seus seguidores ou, ao menos, seus admiradores 
              nas décadas seguintes, caso, em particular, de Artur Ramos 
              e de Edison Carneiro, mesmo quando se contrapunham em diferenças 
              teóricas e metodológicas, ou quando se alinhavam nas 
              disputas regionais, Gilberto Freyre puxando, é claro, para 
              Pernambuco, pela primazia do autêntico das manifestações 
              culturais africanas no Brasil. 
            E o 
              que acontece, por exemplo, na avaliação que Edison 
              Carneiro faz no artigo "O Congresso Afro-Brasileiro da Bahia", 
              descrito em 1940, no qual ao tecer elogios a esse encontro realizado 
              em 1937, o contrapõe, ao mesmo tempo, ao Congresso do Recife, 
              de 1934, pelo critério da maior ou menor pureza das apresentações 
              dos ritos e cerimônias apresentados, num e noutro caso, aos 
              congressistas: 
            "Esta 
              ligação imediata como o povo negro, que foi a glória 
              maior do Congresso da Bahia, deu ao certame um colorido único", 
              como já previra Gilberto Freyre. Artur Ramos, em carta que 
              me escreveu sobre a entrevista ao Diário de Pernambuco, 
              dizia:  
             
              "O 
                material daí que [Gilberto Freyre] julga apenas pitoresco 
                constituirá justamente a parte de maior interesse científico. 
                O Congresso do Recife, levando os babalorixás, com sua 
                música, para o palco do Santa Isabel, pôs em xeque 
                a pureza dos ritos africanos. O Congresso da Bahia não 
                caiu nesse erro. Todas as ocasiões em que os congressistas 
                tomaram contato com as coisas do negro foi no seu próprio 
                meio de origem, nos candomblés, nas rodas de samba e de 
                capoeira." 
             
             
              III 
             Edison 
              Carneiro, no artigo "Nina Rodrigues", escrito em 1956 
              reconhece, apesar das críticas, os méritos do autor 
              de Africanos no Brasil, em especial, o de ter proposto um 
              método comparativo para o estudo dos comportamentos do negro 
              no Brasil e na África. Edison Carneiro e Artur Ramos são 
              herdeiros desse método, o que é explicitamente reconhecido 
              pelo primeiro quando escreve no mesmo artigo acima citado: 
             
              "Línguas, 
                religiões e folclore eram elementos dessa comparação 
                a que a história dava a perspectiva final. Deste modo ganhou 
                o negro a sua verdadeira importância em face da sociedade 
                brasileira." 
             
             Compare-se, 
              agora, o que vai dito nesse último período da citação 
              de Edison Carneiro com a observação de Herskovits, 
              transcrita mais atrás ("E o negro americano, ao descobrir 
              que tem um passado, adquire uma segurança maior de que terá 
              um futuro."), e ter-se-á uma medida objetiva de quanto 
              os propósitos político-intelectuais desses autores 
              eram coincidentes, levando-se em conta, é claro, as diferenças 
              entre a sociedade americana e a sociedade brasileira. 
            Mas, 
              num caso e noutro, tratava-se de reencontrar a história do 
              negro pela via da valorização de sua cultura, na África 
              e no país de destino, comparando-a nas duas situações, 
              fazendo-o, dessa vez chegar aos EUA ou no Brasil, onde quer que 
              fosse, pela porta da dignidade e da distinção que 
              o passaporte dos ritos, das línguas, da complexidade cultural 
              de suas origens lhe conferia. 
            É 
              a fase heróica dos estudos do negro no Brasil. Por volta 
              de 1950 encerra-se, segundo Edison Carneiro essa fase e tem início 
              a chamada fase sociológica desses estudos, conforme se pode 
              ler no seu artigo programático "Os estudos brasileiros 
              do negro", de 1953: 
             
              "Se 
                o negro com sua presença alterou certos traços do 
                branco e do indígena, sabemos que estes, por sua vez, transformaram 
                toda a vida material e espiritual do negro, que hoje representa 
                apenas 11% da população (1950), utiliza a língua 
                portuguesa e na prática esquecem as suas antigas vinculações 
                tribais para interessar-se pelos problemas nacionais como um brasileiro 
                de quatro costados. Tudo isso significa que devemos analisar o 
                particular sem perder de vista o geral, sem prescindir do geral, 
                tendo sempre presente a velha constatação científica 
                de que a modificação na parte implica em modificação 
                no todo, como qualquer modificação no todo importa 
                em modificações em suas partes." 
             
             Estava 
              encerrada a fase afro-brasileira dos estudos do negro no Brasil 
              e firmava-se, particularmente, com os trabalhos de Florestan Fernandes, 
              Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, na chamada Escola Sociológica 
              de São Paulo, uma nova tendência desses estudos agora 
              voltados para a análise da estrutura de classes no país 
              e, nela, para a história particular do negro, primeiro como 
              escravo, depois como trabalhador livre marcado pelo estigma do preconceito 
              de cor. 
            Como 
              escrevemos no livro Cafundó - A África no Brasil, 
              que publicamos em co-autoria com Peter Fry e com a colaboração 
              de Robert Slenes, ao romantismo da fase teórica substitui-se 
              um realismo de inspiração sociológica, de fundo 
              social e de aspiração socialista. 
            Resumindo, 
              o movimento desses estudos poderia ser caracterizado, em um primeiro 
              passo, por sua ênfase cientificista ou médico-legalista, 
              embora já com as sementes do culturalismo que dominaria o 
              panorama da segunda fase, havendo em um terceiro momento, a predominância 
              de uma visão sociológica da questão, como acabamos 
              de dizer.  
            IV 
            Essas 
              três fases dos estudos do negro no Brasil contribuem também, 
              de certa forma, para a compreensão das diferentes fases por 
              que passou o movimento negro no século XX, do ponto de vista 
              de suas lutas, de suas reivindicações, de suas bandeiras 
              e das explicações científicas, culturais e 
              sociológicas que fundamentam as ênfases de suas ações 
              políticas. 
            Assim, 
              nos anos 1920, as próprias organizações negras 
              refletiam a visão de que o principal problema da população 
              negra no Brasil estava nela mesma, dadas as condições 
              precárias de sua educação formal, a fraqueza 
              das organizações em si mesmas e a conseqüente 
              falta de habilidade para concorrer às disputas no mercado 
              de trabalho, tudo isso acrescido, é claro, do "preconceito 
              de cor" que dificultava e obstruía a integração 
              social e discriminava o negro, pela cor, na sociedade. 
            A democracia 
              racial, como ideal político e social programático, 
              concomitante à redemocratização do país 
              em 1945, coincidente também com o fim da Segunda Guerra Mundial 
              e com a vitória dos países aliados sobre o nazi-fascismo, 
              propicia o desenvolvimento de ações no campo educacional, 
              cultural e mesmo psicanalítico, como é o caso do Teatro 
              Experimental do Negro, no Rio de Janeiro, que, através de 
              diferentes organizações, visam à reforçar, 
              quando não despertar, o sentimento de orgulho e de distinção 
              por ser negro, desse modo, contribuir para capacitá-lo a 
              enfrentar o seu pior inimigo na sociedade, o preconceito racial, 
              agente também perturbador do progresso integrado do país 
              na comunhão das raças, dos credos, das diferenças. 
            Vê-se 
              por aí o quanto esse movimento reflete características 
              próprias da segunda fase dos estudos do negro no país, 
              e o quanto os seus objetivos lembram os propósitos enunciados 
              por Herskovits, no EUA e por Artur Ramos ou Edison Carneiro, entre 
              nós. 
            A transformação 
              da democracia social de ideário político em mito e 
              em ideologia e, portanto, em expediente de ilusionismo social vai 
              se dar, de maneira consistente, a partir dos anos 1970 e, talvez, 
              um dos fatos mais importantes dessa nova tendência e postura 
              seja a fundação em 1978, em São Paulo, do Movimento 
              Negro Unificado. 
            Não 
              será difícil identificar nesse momento aspectos coincidentes 
              com os que se encontram na linha sociológica dos estudos 
              do negro e caracterizam, de um modo geral, a terceira fase desses 
              trabalhos, porquanto a grande responsável pela situação 
              de exclusão do negro está na verdade, na estrutura 
              de dominação da sociedade pelo establishement 
              branco, consolidado no governo e difundido na sociedade civil. Passa-se, 
              pois, da democracia racial, integradora e geradora de plenos direitos 
              para a denúncia de uma dominação real assentada 
              sobre a base de um racismo difuso e poderoso. 
            V 
             O 
              que se segue, até hoje, na história dos estudos e 
              dos movimentos negros no Brasil, tem, grosso modo, a ver 
              com as características acima apontadas para as diferentes 
              fases de sua evolução e transformação 
              nos campos teórico e prático das ações 
              que lhes são próprias. 
            Em 
              1988, no ano do centenário da Abolição da Escravatura, 
              foi promulgada a nova Constituição da República 
              Federativa do Brasil. Nela, em decorrência da lutas pelos 
              direitos civis dos negros, ficou consagrado, no Título II 
              - Dos direitos e garantias fundamentais -, Capítulo 
              I - Dos direitos e deveres individuais e coletivos -, Artigo 
              5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção 
              de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros 
              residentes no País a inviolabilidade do direito à 
              vida, à liberdade, à igualdade, à segurança 
              e à propriedade, nos termos seguintes: 
             
              Artigo 
                XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável 
                e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, 
                nos termos da lei. 
             
             A 
              regulamentação desse parágrafo veio em seguida 
              pela Lei nº 7716, de 5 de janeiro de 1989, modificada pela 
              Lei 008882 de 3 de junho de 1994 e novamente modificada em 13 de 
              maio de 1997, pela Lei nº 9459, que acrescentou também 
              ao Artigo 140 do Código Penal relativo ao crime de injúria 
              por utilização de "elementos referentes a raça, 
              cor, etnia, religião ou origem", estabelecendo pena 
              de "reclusão de um a três anos e multa". 
            O passo 
              seguinte seria o das ações afirmativas, cujo modelo 
              podia ser buscado nos EUA dos anos 1960, e, mais recentemente, no 
              governo de Nelson Mandela, na África do Sul. 
            Aqui, 
              sim, numa quarta fase, opera-se uma mudança importante no 
              paradigma clássico dos estudos e dos movimentos negros no 
              Brasil, embora ela própria seja decorrente também 
              das grandes transformações que na economia, na política, 
              e na cultura o mundo contemporâneo passa a conhecer, sobretudo 
              a partir de 1989, com a queda do muro de Berlim e a consolidação 
              do fenômeno da globalização em todos os setores 
              da vida social. Deixa-se de lado o ideal do Brasil mestiço 
              para proceder às ações pelo reconhecimento 
              étnico-racial dos negros. 
            Leia-se, 
              nesse sentido, o que escreve Antonio Sérgio Alfredo Guimarães 
              no artigo "Acesso de negros às universidades públicas", 
              de 2002: 
             
              Nos 
                primeiros tempos, de 1995 até bem recentemente, a reação 
                da sociedade civil, representada pelos seus intelectuais e meios 
                de comunicação de massa, foi largamente contrária 
                à adoção de políticas de cunho racialista. 
                O movimento negro, assim como os poucos intelectuais brancos que 
                defendiam tais políticas, viram-se politicamente isolados, 
                por mais de uma vez sob a acusação de vocalizar 
                e deixar-se colonizar culturalmente pelos valores norte-americanos. 
                De fato, nada mais contrário à identidade nacional 
                brasileira, tal como foi formada historicamente - como identidade 
                autocolonial, culturalmente híbrida e racialmente mestiça 
                -, que o reconhecimento étnico-racial dos negros. Assim, 
                os que por ventura tinham sólidos interesses na manutenção 
                das desigualdades encontraram aliados cujos motivos eram puramente 
                ideológicos, pessoas que viam nas políticas dirigidas 
                preferencialmente aos negros a penetração no Brasil 
                do 'multiculturalismo' e do 'multirracionalismo' de extração 
                anglo-saxônica".  
             
            
             
              VI 
             Do 
              ponto de vista das ações afirmativas, o país 
              caminhou bastante nesses últimos anos no que diz respeito 
              aos cenários mais positivos para a mobilidade social, o desenvolvimento 
              pessoal, a formação profissional e as chances de concorrência 
              e competição do homem e da mulher negra no mercado 
              de trabalho. 
            Mas 
              há ainda, muito o que avançar e muitas resistências 
              a serem quebradas entre os intelectuais e a sociedade civil se se 
              considerar, por exemplo, os dados de 2001 da pesquisa direta do 
              programa "A cor da Bahia/UFBA" e do I Censo Étnico 
              Racial da USP e IBGE, também apresentados no artigo acima 
              referido. 
            Segundo 
              esses dados, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o 
              número de alunos brancos é de 76,8%, o de negros 20,3% 
              para uma população negra no estado de 44, 63%; na 
              Universidade Federal do Paraná (UFPR) os brancos são 
              86,6%, os negros, 8,6%, para uma população negra no 
              estado de 20,27%; na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), 
              brancos são 47%, negros 42,8% e a população 
              negra no estado, 73,36%; na Universidade Federal da Bahia (UFBA), 
              50,8% são brancos, 42,6% negros e 74,95% a população 
              negra do estado; na Universidade de Brasília (UnB), são 
              brancos 63,74%, são negros 32,3%, tendo o Distrito Federal 
              uma população negra de 47,98%; na Universidade de 
              São Paulo (USP), os alunos brancos somam 78,2%, os negros, 
              8,3% e o percentual da população negra no estado é 
              de 27,4%. 
            Vê-se, 
              assim, que o déficit produzido por essas diferenças 
              é bastante desfavorável ao negro nos estados onde 
              se encontram essas universidades: 24,33% na UFRJ, 11,67% na UFPR, 
              30,56% na UFMA, 32,35% na UFBA, 15,68% na UnB e 19,1% na USP. 
            Como 
              disse, há, contudo, avanços, sobretudo por parte do 
              governo quanto à adoção de ações 
              afirmativas relativamente à população negra 
              do país, entre elas o abandono oficial da doutrina da "democracia 
              racial" desde a Conferência Mundial Contra a Discriminação 
              Racial, realizada em Durban, na África do Sul, acompanhada 
              de instituição de cotas de emprego em vários 
              ministérios e serviços, além da criação 
              de programas voltados para os direitos humanos, para a formação 
              profissional e para o reconhecimento do direito à titulação 
              de propriedade de terras remanescentes de quilombos, entre outros. 
             
              VII 
             As 
              cotas nas universidades, como já tive oportunidade de defender, 
              tem um papel estratégico nessa luta por igualdade de oportunidades 
              e são parte de um conjunto maior de ações afirmativas 
              que tendem, felizmente, a crescer cada vez em nossa sociedade. 
            No 
              artigo "O 
              repto da proteção", a propósito do 
              tema das políticas públicas de proteção 
              e de emancipação, visito algumas páginas de 
              romances e crônicas de Machado de Assis em que se apresentam 
              situações que desenham, em traços de atenta 
              observação crítica, as relações 
              sociais entre brancos senhores e negros escravos, ou libertos, e 
              mostram, com leveza de estilo e sensibilidade, a natureza complexa 
              e o peso dos problemas que essa sociedade escravocrata legaria para 
              as gerações futuras no Brasil. 
            Retomo 
              aqui as duas crônicas do livro Bons dias, ambas de 
              1888, uma do dia 19 de maio e outra do dia 26 de junho, que registraram, 
              com a fina ironia que é própria do autor e com o cinismo 
              oportunista característico de muitos de seus personagens, 
              duas situações reveladoras do ethos dos senhores 
              no day after do ato legal da abolição. 
            Na 
              primeira, do dia 19 de maio, seis depois da promulgação 
              pela princesa Isabel da Lei Áurea, o cronista nela representado, 
              apresenta-se como um profeta post factum e vangloria-se, 
              para efeito de suas aspirações políticas, de 
              ter-se antecipado ao 13 de maio alforriando "um molecote que 
              tinha, pessoa de seus dezoito anos mais ou menos." 
            De 
              maneira sinceramente hipócrita relata ainda, explicando seu 
              gesto pela causa final de seus interesses pessoais e estes, pelas 
              razões eficientes da classe social a que pertence: 
             
              "O 
                meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular 
                que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes 
                da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia 
                da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda 
                a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido 
                a ler, escrever e contar, (simples suposição) é 
                então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os 
                homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não 
                são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam 
                a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que os 
                poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos 
                e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação 
                do céu." 
             
             
              Na outra, a do dia 26 de junho transcorridos mais de um mês 
              da Abolição, o nosso cronista fictício arquiteta 
              agora maneiras de tirar proveito econômico e não apenas 
              político da nova situação. 
            Como 
              um Tchitchikof dos trópicos trata de comprar, tal qual no 
              romance de Gogol, Almas mortas, no caso, escravos libertos, 
              com documentos datados de antes do 13 de maio e, assim, poder "vendê-los" 
              ao poder público para recuperação das "perdas" 
              sofridas com a abolição. 
             
              "Suponha 
                o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio, 
                e que os perdeu com a lei de 13 de maio. Chegava eu ao seu estabelecimento, 
                e perguntava-lhe: 
                - Os seus libertos ficaram todos? 
                - Metade só; ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se; 
                consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua. 
                - Quer o senhor vender-mos? 
                Espanto do leitor; eu, explicando: 
                - Vender-mos todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram. 
                O leitor assombrado: 
                - Mas, senhor, que interesse pode ter o senhor... 
                - Não lhe importe isso. Vende-mos? 
                - Libertos não se vendem. 
                - É verdade, mas a escritura de venda terá a data 
                de 29 de abril; nesse caso, não foi o senhor que perdeu 
                os escravos, fui eu. Os preços marcados na escritura serão 
                os da tabela da lei de 1885; mas eu realmente não dou mais 
                de dez mil-réis por cada um." 
             
            VIII 
            Machado 
              de Assis, que o crítico americano Harold Bloom considera 
              o "maior literato negro surgido até o presente" 
              deixou-nos um legado artístico ímpar no Brasil e na 
              literatura universal de todos os tempos. Por ele pudemos conhecer 
              melhor a sociedade imperial brasileira e com ele, entrarmos no átrio 
              dos conflitos da sociedade republicana que se anunciava, sem historicismo, 
              sem sociologismo, sem programatismo panfletário. Falando 
              de homens e mulheres de seu tempo na provinciana capital federal, 
              o Rio de Janeiro que os navios estrangeiros procuravam evitar com 
              medo das contaminações epidêmicas da região, 
              o autor fixou, como nenhum outro, em imagens de poética sobriedade, 
              não apenas as cores locais de quadros sociais inesquecíveis, 
              mas também as finas incertezas e ásperas decisões 
              da alma humana, suas silenciosas perversidades, seus levianos conflitos 
              morais, a profundeza das dores reparáveis, a exlusividade 
              substituível dos amores, a densidade dos vazios feita de 
              presenças impositivas e de imposições de ausências 
              plenas, a religiosidade desconfiada de um narrador que desconfia, 
              como num meta-Eclesiastes de seu ceticismo e de sua própria 
              desconfiança. 
            Não 
              há em Machado de Assis a tentação do fácil 
              nem tampouco a tipificação do difícil. Por 
              isso, falando de seu tempo e de seu espaço local como não 
              poderia deixar de fazer, fala-nos de uma atemporalidade, contudo 
              histórica, do homem prisioneiro de sua eterna finitude. É 
              como pensar Shakespeare e não ser levado à sociedade 
              elizabetana, contexto necessário do texto que se lê 
              ou da peça a que se assiste. Impossível fazê-lo, 
              como impossível é também não desgarrar-se, 
              pela leitura, das circunstâncias históricas e que dão 
              vida às suas personagens e mergulhar na universalidade cômica 
              e trágica de seus dramas, de nossos conflitos. 
            O legado 
              literáro de Machado de Assis também é assim. 
              Põe-nos na sala senhorial da casa do Engenho Novo e atira-nos, 
              casmurros, à frustração anunciada da impossibilidade 
              ontológica de nos reencontrarmos conosco mesmo, no tempo, 
              em Mata Cavalos, ou vice-versa. 
            Com 
              o legado estético, o legado ético. E é parte 
              dele, com a mesma discreta perspicácia, o registro de situações 
              de puro exercício de dominação senhorial de 
              brancos em relação aos negros, ou de debochada esperteza 
              negocial dos que se habituram a procurar tirar vantagem em tudo, 
              como acontece nas duas crônicas aqui referidas. 
            É 
              uma situação historicamente datada. Não deixa, 
              contudo, de remeter-nos, pela própria historicidade, que 
              lhe dá concretude, à força explicativa do paradigma 
              social que apresenta. 
            É 
              contra a permanência desse modelo de relações 
              sociais constituído na tradição patriarcal 
              branca da sociedade brasileira que se fez o esforço intelectual 
              e político, caracterizado nas diferentes fases de sua evolução 
              e transformação, tal como as apresentamos, para com 
              ele romper e para definitivamente superá-lo. 
            As 
              ações afirmativas do movimento negro e as políticas 
              públicas de sua afirmação no Brasil são 
              uma etapa contemporânea desse longo processo histórico. 
              As cotas nas universidades públicas, uma parte estratégica 
              desse movimento. 
              
             
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