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IDH de negros e brancos no Brasil em 2001: e a desigualdade continua!

Marcelo Paixão

O Relatório do Desenvolvimento Humano, editado anualmente pelo Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento (PNUD) trouxe novidades acerca da posição do Brasil em termos do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Conforme é sabido, o IDH mede a qualidade de vida de uma população combinando três tipos de indicadores: rendimento per capita, escolaridade (taxa de escolaridade e de alfabetização) e esperança de vida ao nascer.

No Relatório do Desenvolvimento Humano do ano passado (2002, contendo indicadores para o ano 2000), o Brasil aparecia ocupando a 73ª colocação. Este ano, o país melhorou 8 posições no ranking, passando a posicionar-se na 65ª colocação. Essa evolução positiva do país, entretanto, não foi gerada somente pela melhoria dos indicadores sociais da população. Na verdade, desde o ano passado, o PNUD, ao invés de calcular o índice combinado de escolaridade bruta da população, passou a aceitar os dados produzidos pelos governos.

O índice de escolaridade bruta, um dos índices usados para os cálculos que resultam no IDH, é obtido através da divisão do total de matrículas, nos três níveis fundamentais de ensino (1º, 2º e 3º grau), pela população total entre 7 e 22 anos A recente mudança do índice combinado de escolaridade bruta, fundamentalmente, residiu na alteração da base de dados usada para sua elaboração. Isto é, na forma anterior eram usadas informações produzidas pela Unesco. Neste ano, se passou a adotar os números do MEC. Deste modo, não se tratou de uma mudança de metodologia de cálculo mas, sim, de uso de fonte de dados. Isto fez com que o nosso país tivesse experimentado um crescimento tão expressivo em termos do IDH em um espaço tão curto de tempo. Vale frisar que, caso utilizasse os dados da PNAD/IBGE, para a geração do indicador do índice escolaridade bruta, o Brasil passaria a ocupar a 72ª posição, isto é, haveria o avanço de apenas uma posição.

Com base nos microdados da PNAD/IBGE de 2001, para o cálculo do indicador da taxa combinada de escolaridade bruta, verificamos que, em 2003, a taxa combinada de escolaridade do Brasil foi de 86,3%, razoavelmente distante dos 95% encontrados pelo governo brasileiro. Tal como pode ser visto no quadro sintético abaixo:


População matriculada e população freqüentando
a escola, Brasil 2001

  Primeiro
Grau
Segundo
Grau
Terceiro
Grau
População entre
7 e 22 Anos (*)
Taxa Combinada
de Escolarização
População freqüentando
a escola (*)
33.504.918 8.983.866 3.732.225 53.546.374 86,3%
População
matriculada (**)
35.621.488 12.175.997 3.030.754 53.546.374 94,9%

(*) Fonte: microdados da PNAD 2001.
(**) Fonte: Ministério da Educação. A taxa de escolaridade combinada pelo governo foi de 95,1%, o hiato entre os indicadores é derivado de diferenças nos arredondamentos dos cálculos.


O grande problema do uso da taxa de matrícula para o cálculo da taxa combinada de escolaridade bruta, ao contrário da taxa de freqüência à escola, reside no fato de que o primeiro indicador acaba captando, no mínimo, as seguintes situações: i) alunos/as que abandonaram (ou trancaram a matrícula) os estudos, não estando mais freqüentando as salas de aulas apesar de matriculados; ii) alunos/as que têm mais de uma matrícula, mas, que freqüentam somente um estabelecimento de ensino; iii) as fraudes cometidas por algumas (diversas?) prefeituras que, visando aumentar as receitas do governo federal para educação (que depende do número de alunos matriculados), "inflacionam" o número de estudantes efetivamente matriculados nos seus municípios. Conforme se pode ver, em todos estes casos é factível que ocorra uma superestimativa nas taxas de escolarização e, o que é pior, sem que isto se expresse nas reais condições de vida da população.

Outro problema, com o novo sistema é que o PNUD não deixou evidente quais foram as fontes dos dados de escolaridade para os demais países, o que levanta a suspeita de que, em alguns casos, o órgão da ONU prosseguiu baseando-se nas antigas bases de informação. Assim, no Relatório do Desenvolvimento Humano de 1999, a taxa combinada de escolaridade bruta do Brasil era de 80% e a da Espanha era de 92%. No ano de 2003, o Brasil apresenta uma taxa combinada de escolaridade bruta de 95% e a Espanha, segue apresentando um percentual de 92%. Aliás, com o novo sistema de obtenção de dados, a taxa combinada de escolaridade bruta do Brasil ficou maior que o da Islândia (2ª no ranking PNUD; taxa bruta combinada de ensino 91%), Estados Unidos (94%), Canadá (94%), Japão (83%), Suíça (88%), Irlanda (91%), Luxemburgo (73%), Áustria (92%), França (91%), Itália (82%), Israel (90%), Portugal (93%), Grécia (81%), entre outros países de IDH alto (acima de 0,800).

Por outro lado, quando da desagregação do IDH por raça, a mudança também não foi positiva posto dificultar a decomposição deste indicador (escolaridade) por esta variável, posto não existir, nos registros do MEC, a cor/raça dos alunos e alunas matriculados. Neste sentido, enquanto o PNUD continuar aceitando os dados do governo, baseado no número total de matrículas, a comparabilidade da desagregação do IDH entre as cores/raças de nossa população, com os dados produzidos por aquele organismo internacional, tenderá a ficar comprometida.

Finalmente cabe salientar que embora o IDH do Brasil acabe progredindo artificialmente com a nova forma de coleta das informações, não convém exagerar-se no sentido dessas críticas. Por exemplo, no caso do levantamento do indicador de longevidade, curiosamente, o PNUD realiza estes cálculos, deixando de usar as informações geradas pelo IBGE. Assim, em 2001, se para o IBGE a esperança de vida ao nascer dos brasileiros era de 68,9 anos, de acordo com o cálculo do próprio PNUD este indicador era mais de um ano inferior, ou seja, 67,8 anos. Caso o PNUD adotasse os cálculos do IBGE, mantendo as alterações que foram feitas no cálculo do indicador de escolaridade, a posição brasileira seria igual a 0,783, o que equivaleria a 61ª posição.

De todo modo, não deixa de ser razoável questionar o sentido das mudanças efetivadas, dado os fatos relatados. Ou seja, o cálculo do índice educacional, necessário à totalização do IDH, baseado nas taxas de matrícula, uma vez computando pessoas que apesar de matriculadas não estão efetivamente freqüentando as salas de aula, tende a mascarar a realidade efetivamente existente. Assim, não consideramos absurda a proposta de que o PNUD e o governo brasileiro baseiem-se nas taxas de freqüência à escola (dado que é coletado pela PNAD, de realização anual), favorecendo a comparabilidade temporal e espacial dos indicadores e, fazendo com que o importante índice sintético que vem a ser o IDH se aproxime com mais precisão dos cenários efetivamente encontrados em cada país.

Em tempo, no cálculo do IDH por raça no Brasil, que efetivamos, para o ano de 2001, foram usadas exclusivamente as fontes de dados da PNAD/IBGE.

Índice de Desenvolvimento Humano de Brancos e Negros no Brasil (2001)
De acordo com as bases de dados da PNAD/IBGE 2001 e com a metodologia de cálculo do IDH do PNUD e da Fundação João Pinheiro, o IDH da população negra, entre 1999 e 2001, apresentou uma evolução de 0,691 para 0,712, tendo passado de um IDH médio-baixo para um IDH médio. Entre os brancos, no mesmo período, também foram observadas evoluções positivas, tendo este contingente evoluído de 0,805 para 0,820. Deste modo, os brancos brasileiros, que já apresentavam um índice compatível aos países mais desenvolvidos, seguiram mantendo um IDH alto.

O IDH dos negros é equivalente ao IDH que fica entre El Salvador e China, na 107ª posição (em 175 nações). Cabe frisar que em 1999, os negros ocupavam a 101ª posição, tendo esta queda no ranking ocorrido devido à evolução dos indicadores entre os demais países, posto terem os indicadores dos negros (com exceção do nível de rendimento) melhorado. Já os brancos brasileiros apresentaram um IDH equivalente ao Kuwait, 46ª posição em 175 nações.

Em relação à posição alcançada pelo Brasil no último Relatório do Desenvolvimento Humano o Brasil como um todo ficou na 65ª posição. Deste modo, os brancos ficaram 19 posições acima da posição brasileira no ranking do PNUD e os negros ficaram 42 posições abaixo. Comparativamente à África do Sul (111ª colocada no ranking do PNUD) os brancos brasileiros ficaram 65 posições acima e os negros brasileiros ficaram somente 4 posições mais bem colocados que aquele país da África Austral.

Nas cinco grandes regiões brasileiras, os negros apresentaram um IDH médio, sendo a melhor posição a encontrada entre os negros do Centro-Oeste (0,759, 82ª colocação, equivalente ao IDH que fica entre a Jamaica e o Suriname). Em segundo lugar vieram os negros do Sul (0,753, 82ª colocação, equivalente ao IDH que fica entre o Peru e Fidji); em terceiro os negros do Sudeste (0,748, equivalente ao IDH do Turcomenistão); em quarto os negros do Norte-urbano (0,741, 91ª colocação, equivalente ao IDH que fica entre a Tunísia e a Jordânia). Em último vinha o IDH dos negros do Nordeste (0,704, 107ª colocação, equivalente ao IDH da Argélia).

Nas cinco grandes regiões brasileiras, os brancos apareciam com IDH alto em quatro: Norte-urbano (0,807, 51ª colocação, equivalente ao IDH entre Cuba e São Cristovam e Nevis); Sudeste (0,840, 36ª colocação, equivalente ao IDH de Seycheles); Sul (0,837, 38ª colocação, equivalente ao IDH da Hungria) e Centro-Oeste (0,842, 35ª posição, equivalente ao IDH entre a Polônia e a Argentina). Já na região Nordeste, os brancos apresentaram um IDH médio (0,739, 93ª posição, equivalente ao IDH que fica entre Granada e Guiana).

Segundo informações da PNAD/2001, o rendimento médio familiar per capita dos negros, de todo o Brasil, foi de 1,15 salários mínimos, ao passo que o mesmo índice entre os brancos foi de 2,64 salários mínimos, perfazendo uma diferença de quase 196% favorável a este grupo de raça/cor.

A taxa bruta de escolaridade entre os negros, de todo o Brasil, foi de 84% frente a 89% entre os brancos. A taxa de alfabetização das pessoas maiores de 15 anos também apresentou variação positiva para o contingente branco (92,3%), quase 10 pontos percentuais superior ao ocorrido entre os negros, cujo índice de alfabetização foi de 81,8%.

Finalmente no que tange ao indicador da esperança de vida ao nascer, o procedimento metodológico adotado atualizou dados anteriormente levantados, para o período 1990-1995, que indicavam uma esperança de vida ao nascer de 70 anos para os brancos e de 64 anos para os negros. Deste modo, esses indicadores foram atualizados de acordo com a evolução da esperança de vida da população brasileira como um todo entre 1995 e 2001 (de 67,2 anos para 68,9 anos). Assim, a esperança de vida dos brancos neste último ano foi de 72 anos e o dos negros 66 anos.

Esses indicadores denotam a persistência de profundas desigualdades raciais no Brasil, consoante ao longo período em que nosso país deixou de adotar políticas de integração social dos descendentes dos antigos escravos em nosso país. De todo modo, é preciso não naturalizar esses números, antes devendo, os mesmos, serem utilizados como uma forma de reflexão sobre o estágio das relações raciais no Brasil; de como estas relações foram determinantes na conformação do quadro dos profundos abismos sociais atualmente encontrados e na evidente impossibilidade de construção de uma nação fundadas no princípio da justiça e da eqüidade, independentemente da sorte (ou da má fortuna) dos afrodescendentes brasileiros.

Marcelo Paixão é professor do Instituto de Economia da UFRJ. Coordenador do Observatório Afrobrasileiro.


Bibliografia:

  • IBGE - Microdados da PNAD 2001 (programação Luis Marcelo Carvano)
  • MEC (2002) - Censo Escolar 2001. www.mec.gov.br
  • Paixão, Marcelo (2003) - Desenvolvimento Humano e Relações Raciais. Rio de Janeiro: DP&A.
  • PNUD (2000) - Relatório do Desenvolvimento Humano. www.undp.org
  • PNUD (2001) - Human Development Report. www.undp.org
  • PNUD (2002) - Human Development Report. www.undp.org
 
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Atualizado em 10/11/2003
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