Reportagens






 
A construção histórica do patrimônio público

As comemorações dos 450 anos da cidade de São Paulo, no último mês, incluíram uma série de reformas de pontos importantes da cidade como a Estação da Luz, a Biblioteca Mário de Andrade, a Casa da Marquesa de Santos, além da reurbanização das praças da Sé e da República. Esses lugares fazem parte da história da cidade, são monumentos. Pela Estação da Luz, por exemplo, que foi inaugurada em 1901, passava toda produção de café da cidade de São Paulo, em direção ao porto de Santos, de onde seguia para Europa. A estação conta parte da história econômica da cidade de São Paulo, da história do Brasil, é um elemento que comprova essa história. Seus trilhos sinuosos nos ajudam a entender como chegamos até aqui.



Fachada da Estação da Luz antes e depois da reforma
Fotos de Homero de Moura e Juan Guerra

Monumentos são parte do patrimônio cultural de um povo ou de uma nação, eles servem como um elo entre presente e passado dando um sentido de continuidade. A preservação do patrimônio pressupõe um projeto de construção do presente, e por isso vale a pena na medida em que este patrimônio esteja vivo no presente, vivo para que as pessoas que o cercam possam de algum modo usufruir dele. Esta reintegração pode unir o corpo e a alma da cidade, fazendo com que um prédio ou uma praça faça sentido para nossos olhos modernos. Mas, a quem cabe decidir o que faz parte do patrimônio de uma cidade, estado ou país? Como determinar o que deve ser preservado e - em consequência - o que será esquecido?

A arquiteta Lia Motta, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), explica que os espaços urbanos são produções culturais sujeitas a diferentes apropriações. O uso do material do passado é a essência da cultura e é aquilo que, por sua vez, transforma o material cultural em patrimônio. Potencialmente todos os produtos e espaços podem se tornar patrimônio. "Entretanto, selecionam-se áreas e prédios que devem ser tratados de maneira especial, que devem ganhar novo significado, que devem representar ou simbolizar o ponto de vista e os interesses de um determinado governo", diz ela.

O patrimônio cultural, as cidades e os monumentos históricos passaram a ocupar lugar de destaque na vida cotidiana e na economia da sociedade moderna. O Estado participa ativamente deste movimento de valorização porque a ele cabe, na maioria das vezes, a decisão sobre o que será preservado através das ações de tombamento conduzidas em nível federal, estadual ou municipal. "Não é jamais por um mero valor intrínseco que um bem é preservado, mas por um valor que lhe é atribuído. Não é um discurso da sociedade mas para ela e que revela os pensamentos do grupo que classificou, inventou e inventariou bens", fala a antropóloga Silvana Rubino, professora da PUC de Campinas e da Unicamp. Em sua pesquisa sobre o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que foi criado na década de 1930, e depois se tornou o Iphan, ela concluiu que, ao longo dos anos o Instituto construiu, de diversas formas, algo que hoje chamamos de memória nacional. Segundo Rubino, durante muito tempo o Iphan relacionou a idéia de patrimônio exclusivamente a cidades como Ouro Preto, Diamantina, Recife ou Olinda, privilegiando o chamado patrimônio de pedra e cal.

Foram eleitos como patrimônio basicamente a arquitetura barroca de Minas Gerais com uma distribuição temporal que recai sobre o Brasil Colônia. O que se preservou prioritariamente foi o patrimônio religioso. Os tombamentos desenham um país que tem, de um lado, uma concretude, que tem raízes, que se prova pelos seus monumentos, suas marcas. De outro, é um país imaginado. A antropóloga enfatiza a necessidade de "desnaturalizar" o processo de identificação e institucionalização do que conhecemos como patrimônio histórico. Ela levanta questões como: por que a cidade de Ouro Preto se tornou patrimônio nacional? Segundo ela, algumas mudanças começam a ocorrer a partir da década de 1980, quando as próprias instituições de preservação passam a entender que há outros patrimônios, outros saberes e outras populações. Exemplo disso é o pedido de tombamento de um terreiro de candomblé na Bahia. Ao mesmo tempo, essa mudança traz questões difíceis no sentido de delimitar o que é patrimônio, na medida em que seu novo sentido abrange muito mais possibilidades.


Casario colorido do Pelourinho

Feita a escolha, há também que se considerar as formas de intervenção. Motta critica os modelos de valorização do patrimônio cultural praticados atualmente. Para ela, essa nova visão está sujeita exclusivamente aos interesses do mercado de consumo, oferecendo o patrimônio cultural como mercadoria, igualando o bem coletivo aos produtos de consumo. Ela utiliza como exemplo os projetos desenvolvidos no Pelourinho, na Bahia, e na Praça 15, na cidade do Rio de Janeiro. "São projetos que apresentam forte caráter cenográfico, são feitos trabalhos nas fachadas, instalação de focos de iluminação nos monumentos, demolição de prédios novos ou 'feios' e o incentivo ao uso comercial ligado ao turismo. Ao invés do poder público cumprir seu dever de garantir ao cidadão o acesso à cultura, investimento no patrimônio como fonte de conhecimento, ele colabora para a construção de valores que interessam ao capital especulativo", diz. Segundo ela, o tempo de execução desses projetos é o tempo do capital, do incentivo ao consumo, da Disney, do McDonald's, do shopping center. Nessa visão desconsideram-se os significados históricos e as relações sociais presentes nesses espaços.

Nesses projetos de revitalização, ocorrem desapropriações ou expulsão da população local, modificações nas estruturas internas dos prédios e uma intervenção na realidade local. "As intervenções não deveriam ocorrer sem considerar o valor que os lugares têm como referenciais para as pessoas, que lhes dá um sentido de pertencimento a um território, com base em sua cultura e em sua história. Esses referenciais vinculam o cidadão ao lugar e criam identidades variadas, não necessariamente uma identidade nacional", conclui a arquiteta. A participação social parece ser, portanto, um recurso-chave para se evitarem dois efeitos muito comuns nas cidades ou bairros antigos: a conversão em cidades-museu ou em cidades apropriadas apenas para uma elite de intelectuais, artistas e, sobretudo, especuladores que buscam acima de tudo valorizar a área para proveito próprio. O patrimônio cultural, parte da memória e se traduz, assim, num campo de lutas e disputas.

Os monumentos ou o patrimônio histórico devem ser meios de nos ligar ao nosso passado, devem, portanto, fazer sentido no nosso cotidiano. A historiadora da Unicamp Maria Clementina Cunha explica que ao aproximar o passado histórico dos homens e mulheres de hoje é possível resgatar uma importante noção de cidadania. "Trata-se de resgatar o passado como um patrimônio político que nos foi subtraído pela memória instituída", diz. Deste modo o que é eleito como patrimônio deve surgir também da demanda da população da cidade, do bairro. Na sua experiência na secretaria da cultura da cidade de São Paulo, entre 1989 e 1992, a historiadora pôde acompanhar um movimento de reconstrução da memória num bairro distante do centro da metrópole paulistana, em Perus. Uma pequena comunidade que vivia nos arredores de uma antiga fábrica de cimento já desativada entrou com pedido de tombamento do lugar quando os donos ameaçaram demolir o prédio para abrigar novos empreendimentos imobiliários. Eles alegaram que destruir o lugar seria destruir parte do seu passado. "Ao longo do projeto os historiadores se emocionavam constantemente no contato com aqueles velhos operários, que sofriam de doenças respiratórias causadas pelo cimento, e que estavam ali aprendendo técnicas para recriar seu passado. Com isso, alegremente, davam novo sentido ao presente e até conseguiam animar-se com a idéia de um futuro que já não poderiam assistir", conta Cunha. A nova gestão da prefeitura de São Paulo não continuou com o projeto e o tombamento foi negado, mas o exemplo serve para mostrar a importância da memória da vida daquela comunidade. Memória que, infelizmente, nesse caso foi apagada.

A palavra 'memória' nos remete necessariamente a outra, 'passado'. Ora, tudo que é memória o é porque está no passado. A memória é algo que se distingue do presente, mas que, ao mesmo tempo, o compõe. Assim como a memória, também o passado é entendido dentro do pensamento ocidental como um âmbito temporal distinto do presente. A memória é um dos caminhos para o conhecimento do passado, ela tem várias funções: toda nossa consciência do passado está fundada na memória; através das lembranças recuperamos acontecimentos anteriores, distinguimos o ontem de hoje e confirmamos que já vivemos um passado. Esta confirmação, por sua vez, nos confere um sentido de identidade, pois saber o que fomos, confirma o que somos. Ao conhecer o passado nos ligamos aos homens que viveram antes de nós, construindo uma noção de continuidade.

(PM)

 
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Atualizado em 10/03/2004
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