Arqueologia
da região do Parque Nacional Serra da Capivara - Sudeste
do Piauí
Niéde
Guidon
Em
1973, a equipe franco-brasileira do Piauí, sob minha direção,
iniciava as pesquisas na região de São Raimundo Nonato,
pequena cidade perdida no sertão, uma das mais pobres regiões
do Brasil.
Hoje,
trinta anos depois, podemos iniciar um balanço de tudo o
que foi feito e, principalmente, do que resta a fazer, sem dúvida
trabalho para mais uma geração!
Meu
interesse pela região havia sido despertado pelas pinturas
rupestres que ornam as paredes de alguns abrigos rochosos. Notícias
dessas pinturas me haviam sido transmitidas em 1963 e as fotografias
que vi imediatamente chamaram minha atenção pois era
algo completamente desconhecido. Procurei chegar à região
nas férias de dezembro do mesmo ano, mas os rios haviam transbordado
e derrubado pontes, o que me impediu de chegar ao destino. Em 1964
deixei o Brasil. Em 1970, já trabalhando na França,
vim ao Brasil em uma missão de pesquisas e, ao término
da mesma, decidi passar pelo Piauí para ver as pinturas.
O que vi me fez decidir a batalhar para criar uma missão
arqueológica com o objetivo único de estudar essa
região.
A região
sudeste do Piauí ocupa uma zona de fronteira entre duas grandes
formações geológicas, o escudo cristalino do
pré-cambriano e a bacia sedimentar Maranhão-Piauí,
do Siluriano-Permiano. Esse foi o ponto básico sobre o qual
apoiamos o nosso projeto de pesquisas: uma fronteira geológica
se caracteriza pela diversidade de seus ecossistemas e pela abundância
e diversidade dos produtos naturais. Nossa hipótese de base
foi que essa diversidade e riqueza seriam motivos para facilitar
o desenvolvimento cultural de povos que aí tenham se estabelecido,
o que resultaria em uma população relativamente numerosa,
com longa duração no tempo e com um padrão
social que permitisse a evolução das tecnologias,
tanto as de sobrevivência como as ligadas à vida espiritual.
Hoje,
trinta anos depois, podemos afirmar que nossa hipótese de
base foi demonstrada.
Nosso
interesse inicial eram a arte rupestre, pinturas e gravuras. Logo
na primeira missão de 1973, descobrimos 55 sítios,
a maior parte com pinturas. Alguns eram aldeias em cujo solo abundavam
cacos de cerâmica e objetos de pedra lascada e polida. Pensávamos,
então, que esses sítios eram recentes pois, como todos
os arqueólogos americanos, acreditávamos que a América
havia sido povoada tardiamente e que a América do Sul havia
sido a última parte da Terra a receber representantes do
gênero Homo.
Pintura
rupestre encontrada na Serra da Capivara
Fotos: Fumdham
Nas
primeiras missões nada mais fizemos do que documentar as
pinturas rupestres e buscar dados sobre a região. Essa pesquisa
bibliográfica demonstrou que nunca ninguém havia pesquisado
naquela região e que nada se sabia sobre a mesma, nem sobre
as bases físicas, nem sobre fauna e flora. Por esta razão,
em 1978, transformamos nossa equipe de pesquisas, que passou a integrar
especialistas de outras áreas, de modo a poder desenvolver
um trabalho interdisciplinar que possibilitasse a definição
do quadro atual, para que fosse possível fazer um estudo
da evolução do clima e da paisagem. No mesmo ano realizamos
as primeiras sondagens visando encontrar vestígios dos povos
que haviam realizado as pinturas. Nesse mesmo ano solicitamos ao
governo do Brasil a criação de um parque nacional
de modo a criar as condições de proteção
total para os sítios arqueológicos e para a natureza,
então exuberante. Em junho de 1979, era criado o Parque Nacional
Serra da Capivara.
Ao
fio dos anos os trabalhos interdisciplinares foram progredindo,
as pesquisas ampliando-se, muitos trabalhos de teses, de mestrado
e de doutorado foram preparados na região, proporcionando
assim uma quantidade de dados que nos permite traçar hoje
um esboço da pré-história regional. Esse esboço
irá sendo completado de modo a nos permitir, ao término
dos trabalhos, contar a história desde a chegada dos primeiros
grupos humanos até os dias atuais.
Nas
épocas pré-históricas as condições
ambientais eram muito diferentes. As escavações arqueológicas
demonstraram que, até cerca de 9.000/8.000 anos atrás,
existiam grandes rios e a região era coberta por florestas
tropicais úmidas. Escavações realizadas no
sítio Toca do Fundo do Baixão da Pedra Furada permitiram
a descoberta de vestígios de origem européia (uma
faca metálica) enterrada a 1,40 metros de profundidade, na
margem de um antigo rio. Carvões encontrados em uma fogueira
ao lado deram uma data carbono 14 (C-14)
entre os anos de 1.640 e 1.730 de nossa era (Beta 156408 e Beta
154636). Portanto, até essa data os rios corriam no vale
da Pedra Furada. Uma vegetação abundante, perenifólia,
assegurava a alimentação para a fauna, majoritariamente
herbívora e de grande porte. Durante milênios, espécies
da megafauna existiram na região e co-habitaram com os grupos
humanos que a povoavam. As espécies mais comuns da megafauna
eram a preguiça gigante (Catonyx cuvieri e Eremotherium
lundi), o tigre-de-dente-de-sabre (Smilodon populator),
o mastodonte (Haplomastodon waringi), o tatu gigante (Glyptodon
clavipes), as lhamas (Palaeolama major e Paleolama
niedae) e cavalos (Hippidion bonaerensis e Hippidion
sp.) (Guérin, 1991). Junto a esta fauna gigante, existiam
também as espécies de médio e pequeno porte,
que foram fontes de alimentação das populações
que aí viviam.
Trecho
de mata na Serra da Capivara
Nesta
região existem evidências de presença humana
que remontam a 60.000 anos. O sítio Toca do Boqueirão
da Pedra Furada, escavado entre 1978 e 1988, forneceu a mais completa
estratigrafia até hoje encontrada nas Américas (Parenti,
2002, Parenti et al, 1990, Guidon and Delibrias, 1986, Guidon et
al., 1994). Hoje podemos afirmar que a entrada de Homo sapiens
para o continente americano fez-se em vagas que, saindo de diferente
lugares, seguiram diferentes caminhos e que as primeiras devem ter
entrado na América entre 150.000 e 100.000 anos atrás.
A razão nos faz supor que um continente como o americano,
que vai do Pólo Norte ao Pólo Sul, deve ter sido ocupado
a partir de diversos pontos de penetração, que incluem
também a via marítima. Não devemos esquecer
que o nível do mar variou durante as diferentes épocas,
caracterizadas por avanços e recuos das glaciações
e que, em certos momentos, chegou até a 150 metros abaixo
do nível atual, o que significa que um maior número
de ilhas afloravam e a plataforma continental era bem mais ampla.
Dispomos,
para o sítio Toca do Boqueirão da Pedra Furada, de
63 datações por C-14, realizadas em laboratórios
da Europa, América e Austrália que permitiram o estabelecimento
de uma coluna crono-estratigráfica sem inversões,
que vai de 59.000 até 5.000 anos antes do presente (Parenti,
2002; Parenti et al., 1999; Santos et al., no prelo). Essas datações
antigas levantaram objeções entre certos colegas americanos
e a polêmica se instalou (Meltzer et al., 1994; Guidon et
al., 1996). Objetavam esses colegas que as peças líticas
podiam ser o resultado de lascamentos naturais, que os carvões
eram o resultado de fogos naturais e que os fogões encontrados
eram também formados por fenômenos naturais, diversos
blocos caídos perto um do outro. Essas objeções
foram destruídas por uma série de trabalhos feitos.
Gisele Daltrini Felice (Felice, 2002) realizou uma série
de sondagens, descendo a encosta do sítio, até o fundo
do vale, subindo a encosta oposta até o paredão da
cuesta. Se os carvões do sítio Toca do Boqueirão
da Pedra Furada tivessem sido originados por incêndios naturais,
a pesquisadora deveria ter encontrado as mesmas camadas de carvões
nas encostas, ou no vale. Fora do sítio não foram
encontradas camadas de carvões correspondentes às
encontradas dentro do abrigo, o que elimina a possibilidade de fogos
naturais. pois sabemos que o fogo sobe encostas e não é
lógico pensar que ele se declarou unicamente dentro do abrigo
que tem cerca de 70 metros de comprimento por 15 de largura. Análises
ao microscópio de varredura, realizadas na Texas A &
M University confirmam a origem antrópica dos lascamentos.
Machadinha
usada
para cortar e raspar
Os
vestígios da cultura material descobertos indicam a existência
de uma única primeira cultura, que atravessa os milênios
inovando tecnicamente e fazendo escolhas entre os muitos recursos
naturais disponíveis. Os instrumentos cortantes e pontiagudos,
dos tipos facas, raspadores, perfuradores, são feitos em
quartzo e quartzito. São peças líticas pouco
trabalhadas, talhadas segundo as necessidades do momento, utilizadas
e logo abandonadas. Os instrumentos são feitos de maneira
a serem utilizados em funções gerais tais como cortar
ou raspar sem que exista a procura da especialização.
Os artefatos foram achados nos solos arqueológicos junto
às estruturas de fogueiras. Dessas fogueiras foram extraídos
os carvões de lenha que, submetidos a análises de
C-14, forneceram as datações dos referidos solos arqueológicos
e dos vestígios que neles foram encontrados. Enormes oficinas
líticas, isto é locais onde os homens pré-históricos
obtinham a matéria prima e a lascavam para fabricar ferramentas,
foram descobertas, na região norte do Parque Nacional, em
2002. Eram locais junto a antigas quedas d'água, atualmente
secas, nos quais afloram blocos de metaquartzito, rocha excelente
para o lascamento. Em uma delas, milhares de vestígios líticos
coalhavam o solo sobre uma superfície de cerca de 25.000
metros quadrados. A qualidade técnica das peças dessas
oficinas é excelente, a mesma qualidade que é encontrada
no paleolítico europeu ou na África. Serão
realizadas escavações nesses locais buscando datar
esses sítios.
A técnica
de realização das ferramentas líticas também
se transforma lenta mas marcadamente. Apesar de prosseguirem utilizando
as matérias primas da indústria do Pleistoceno, passam
a empregar também uma nova rocha, mais adequada ao lascamento:
o sílex e a calcedônia, que devem procurar em certos
locais específicos. O número e a diversidade dos tipos
de ferramentas é maior. A manufatura dos instrumentos torna-se
mais especializada e adequada às suas funções,
esta procura da especificidade é uma das grandes diferenças
com a tecnologia pleistocênica. São comuns os raspadores,
facas, lascas retocadas, seixos lascados e percutores. Alguns artefatos
apresentam marcas de intensa utilização permitindo
observar o desgaste diferenciado. Neste período em que a
tecnologia lítica se torna mais complexa e precisa, aparecem
instrumentos novos, como as pontas de projétil. Junto à
tecnologia cada vez mais requintada de lascamento aparecem técnicas
de polimento em torno de 9.200 anos BP [Before present=antes
do presente], datação de um machado de pedra polida
descoberto nas escavações arqueológicas da
Toca do Sítio do Meio. A utilização da argila
para a realização de artefatos cerâmicos torna-se
mais complexa. A utilização da argila, apenas secada
ao sol, que devia caracterizar a tecnologia pleistocênica
é substituída pelo emprego de procedimentos de queima,
o que dá lugar ao aparecimento da cerâmica. A descoberta,
na Toca do Sítio do Meio, de cacos de cerâmicas datados
de 8.900 anos BP, situa cronologicamente essa técnica e envelhece
o aparecimento da cerâmica no continente americano.
Muitos
vestígios da cultura material do período mais antigo
se desintegraram pela fragilidade de seu suporte. A cestaria, o
trançado, tecnologias que devem ter existido, não
suportaram os efeitos do tempo e da umidade. O mesmo aconteceu com
os objetos feitos sobre matérias primas orgânicas.
Os
abrigos sob rocha da serra não eram utilizados como lugares
de habitação. Muitos deles tinham depressões
rochosas onde acumulava-se água da chuva. Essas depressões
são localmente denominadas caldeirões, sendo freqüentadas
para outros usos ou como pontos de caça, aproveitando a vinda
de animais para beber. Como locais de moradia foram escolhidos outros
espaços: locais mais abertos, na desembocadura de boqueirões,
de vales largos, alto da chapada, perto de fontes de água,
de rios ou córregos que eram abundantes nessa época
úmida.
A mais
importante característica cultural dos grupos étnicos
desta região é ter desenvolvido um sistema de comunicação
social através de um registro gráfico de caráter
narrativo. No período pleistocênico, as populações
já tinham atividades gráficas. Fragmentos de parede,
com traços de pintura, foram achados caídos sobre
solos arqueológicos. Neles as figuras desenhadas não
são identificáveis, mas confirmam a prática
dessa atividade. Sobre as paredes dos abrigos do Parque Nacional
existe uma densa quantidade de pinturas rupestres realizadas durante
milênios. As representações animais são
muito diversificadas, sendo possível reconhecer espécies
inexistentes hoje na região e outras totalmente extintas,
como camelídeos e preguiças gigantes. Existem também
reproduções de capivaras, veados galheiros, caranguejos,
jacarés e certas espécies de peixes, hoje desaparecidas
na área, extremamente árida para poder abrigá-las.
Até agora já foram descobertos 550 sítios de
arte rupestre, pinturas e gravuras, mais uma prova da antiguidade
da presença humana na região e da prática rupestre.
Podemos
seguir a evolução desta arte rupestre que, ao longo
de cerca de 30.000 anos, mesmo mantendo os mesmos temas, mostra
mudanças no que diz respeito às técnicas de
desenho e pintura e na forma como dispunham as figuras sobre o suporte
rochoso. Tivemos na região duas tradições,
Nordeste e Agreste. A primeira apresenta um estilo inicial, Serra
da Capivara, cuja característica é a eclosão
do movimento, do dinamismo e da encenação esfuziante
de alegria e ludismo. O estilo final, Serra Branca, se caracteriza
pelos componentes ornamentais, as vestimentas e os cocares, que
resulta em uma decoração gráfica muito particular
que persiste e que contrasta com as características do estilo
inicial. São adotadas formas de tipo retangular muito decoradas.
Os grupos do estilo Serra Branca escolhem o caráter ornamental
como seu traço de identificação étnica.
Entre esses dois estilos podemos observar um processo evolutivo
gradativo e lento, que forma o complexo Serra Talhada (Pessis, 1987,
1992, 1993, 1999).
Assim
que as chuvas diminuíram, o clima atual começa a se
instalar, a partir de 6.000 BP. A vegetação também
diminui, as fontes de alimentação se tornam escassas
e a megafauna desaparece totalmente da região, junto com
as espécies dos ecossistemas úmidos. As transformações
da vegetação e a extinção de uma parte
da fauna não afetou a sobrevivência dos grupos humanos,
que tinham como fonte de alimentação as espécies
de médio e pequeno porte e que sobreviveram às transformações
climáticas.
As
escavações arqueológicas permitiram provar
que os rios corriam na região até a chegada do colonizador
que, cortando as florestas-galeria e queimando anualmente toda a
região para cultivo da cana e a criação extensiva
de gado, sendo o solo frágil e arenoso, provocou processos
erosivos e o assoreamento dos vales. Até os primeiros anos
da década de 80, parte da população que vivia
fora dos povoados e cidades, ocupava abrigos, os mesmos que haviam
sido pintados pelo homem pré-histórico. Aproveitavam
a parede do fundo e o teto rochoso e construíam paredes de
pau-a-pique na parte aberta, na frente. A fumaça de seus
fogões e fornos de mandioca ou dos engenhos de açúcar
destruíram muitas pinturas. Quando a equipe da Missão
Franco-Brasileira iniciou os trabalhos na região os vales
eram cobertos por florestas de angico, pau d'arco, aroeira e outras
árvores de grande porte. Tudo foi cortado e queimado e hoje
impera a caatinga arbustiva; processos erosivos imensos formaram
vossorocas que avançam inexoravelmente, criando o deserto
(Guidon et al., 2002). A cidade de São Raimundo Nonato era
banhada pelo rio Piauí e, do alto da ponte, moradores pescavam.
Cerca de 10 lagoas abrigavam garças, patos, toda sorte de
fauna e flora aquáticas. Hoje todas foram aterradas, sofrendo
o mesmo destino do rio Piauí, que não corre mais.
De uma região verde, opulenta, habitada por um povo feliz
e rico porque não passava fome e tinha tempo para criar uma
civilização que nada deve a similares de todo o mundo,
passamos a ser uma área em vias de desertificação,
com a fauna e a flora exauridas, onde vive um povo que somente conhece
a ignorância e a fome. Os pesquisadores e técnicos
da equipe lutam hoje para que o imenso tesouro natural e cultural
da região possa ser o motor para o desenvolvimento social
e econômico. Assim, a arte rupestre pré-histórica
e as maravilhas da natureza permitirão que o sudeste do Piauí
volte a ser o que era até a chegada dos colonizadores: uma
cultura de primeiro mundo!
Niéde
Guidon é coordenadora da Fundação Museu do
Homem Americano e Universidade Federal de Pernambuco.
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