O
significado do tempo: Einstein e Bergson
Márcio
Barreto
A
virada do século XIX para o século XX foi marcada pelo aparecimento
de algumas inconsistências no corpo teórico da física: com
as equações de Maxwell, o desenvolvimento do eletromagnetismo
colocava em cheque alguns princípios que sustentavam o sólido
edifício da mecânica construído por Galileu e Newton. As
trincas que surgiram neste edifício pareciam ter solução
simples e da qual o tempo de pesquisa se encarregaria; mas um ainda obscuro
funcionário público da Suíça percebeu que a mudança
deveria ser radical e que uma revolução nos conceitos de tempo,
espaço e gravidade seria necessária para salvar os fundamentos
da física.
Albert
Einstein encontrou no escritório de patentes de Berna – onde começou
a trabalhar em 1902 – uma tribuna de honra para assistir ao desfile das
novas tecnologias que ligavam o triunfo da eletricidade sobre a mecânica
aos sonhos da modernidade. O problema a ser resolvido na época era o
da sincronização de relógios necessária ao bom funcionamento
da malha ferroviária e das linhas de telégrafo e ao deslocamento
de tropas. Não é por acaso, portanto, que Einstein parte da revisão
do conceito de simultaneidade para formular a teoria da relatividade.
Ao
remeter o tempo para um plano inacessível à nossa experiência
imediata, mas consistente em sua formulação matemática,
ou seja, ao atribuir à realidade uma quarta dimensão temporal,
o cientista alemão resolveu os problemas da física no início
do século XX. No entanto, é preciso notar que, a partir dos artigos
de 1905, o senso comum começa a acreditar que a relatividade veio dar
ao tempo um significado filosófico que Santo Agostinho já procurava
na Idade Média: a relatividade parece ter revelado o que realmente o
tempo é. Einstein passou a ser mitificado como o personagem que resolveu
a questão do tempo, não apenas cientificamente, mas principalmente
num domínio filosófico avalizado pela ciência. Porém,
como observou Peter Galison (Universidade de Harvard), um olhar mais atento
à sua obra revela que “diferentemente da imagem tradicional,
segundo a qual Einstein foi um cientista-filósofo, ele redefiniu a simultaneidade
a partir de necessidades práticas existentes em seu tempo...”.
A
euforia com que o público em geral recebeu, em 1919, os resultados experimentais
previstos pela teoria da relatividade alimentou o mito do homem que traria ao
mundo devastado pela Primeira Grande Guerra novas soluções para
antigos problemas. O tempo “reinventado” na relatividade foi, sem
dúvida, o que mais tocou o imaginário do senso comum e contribuiu
para construção da caricatura do cientista exótico cuja
inteligência fora capaz de dar ao tempo seu verdadeiro significado. Na
verdade, Einstein trabalhou no plano tecnológico-científico, extirpando
qualquer significado filosófico do conceito de tempo.
A
convite de Langevin, Einstein visita Paris em 1922 onde expõe para um
seleto e entusiasmado público no Collège de France suas
já consagradas e incompreendidas idéias. Em sua exposição
do dia 6 de abril, um dos ouvintes, o filósofo francês Henri Bergson,
observou que, apesar da euforia em torno da relatividade, o significado filosófico
do tempo não era contemplado pela teoria conforme se supunha. Disse o
ilustre ouvinte:
" [...] O que eu quero estabelecer é simplesmente o seguinte:
uma vez admitida a relatividade como teoria física, nem tudo está
terminado. Resta determinar o significado filosófico dos conceitos que
ela introduz. Resta descobrir até que ponto ela renuncia à intuição
e até que ponto ela permanece atada à intuição:
resta fazer a parte do real e do convencional nos resultados aos quais ela chegou,
ou, principalmente, nos intermediários que ela estabeleceu entre a posição
e a solução do problema. Ao fazer este trabalho no concernente
ao tempo, perceberemos, creio, que a teoria da relatividade nada tem de incompatível
com o senso comum."
Ao
que Einstein respondeu:
"A questão se coloca então assim: o tempo do filósofo
é o mesmo tempo do físico? [...] Ora, o tempo físico pode
ser derivado do tempo da consciência. Primitivamente os indivíduos
têm a noção da simultaneidade de percepções;
eles podem se entender entre eles e concordarem sobre qualquer coisa que percebem;
esta seria uma primeira etapa em direção ao tempo objetivo. Mas
existem eventos objetivos independentes dos indivíduos e, da simultaneidade
das percepções, nós passamos às dos eventos propriamente
ditos. E, de fato, aquela simultaneidade não conduziu à nenhuma
contradição durante longo tempo devido à grande velocidade
da luz. [...] Não há, portanto, um tempo dos filósofos;
apenas existe um tempo psicológico diferente do tempo dos físicos".
Como
vemos, Einstein foi perspicaz ao se esquivar da abordagem filosófica
do tempo, preferindo permanecer no terreno científico. Mais do que isso,
apesar da falsa idéia segundo a qual Einstein teria descoberto a verdadeira
natureza do tempo iluminando as trevas onde a filosofia se encontrava, ele rejeitou
o tempo dos filósofos.
A
questão bergsoniana, levantada no rápido debate de 1922, desdobrou-se
numa das mais polêmicas obras de Bergson: Durée et Simultanéité,
publicada no mesmo ano, parece colocar em dúvida os princípios
da teoria de Einstein. No entanto, os argumentos do filósofo não
questionam a validade científica da relatividade, mas mostram que a teoria
radicalizou a confusão entre tempo e espaço. Se tal misto passou
a ser a mais fiel tradução dos fenômenos naturais, ele não
serve para dar ao tempo um significado filosófico.
O
misto entre tempo e espaço já era tratado por Bergson em obras
anteriores à revolução einsteiniana: quando um móvel
descreve uma trajetória, a linha descrita no espaço é confundida
com o próprio movimento; podemos dividir essa linha em tantos pontos
quanto queiramos para associar a cada um desses pontos um instante. Um intervalo
de tempo é composto da somatória de todos os infinitesimais pontos-instantes
dispostos entre dois deles e, segundo Bergson, a duração não
pode ser construída com instantes imóveis, pois o essencial da
durée é a constante mudança, o fluxo ininterrupto
do tempo criador de formas. Por mais infinitesimal que seja a divisão
do intervalo de tempo, a soma das partes nunca será igual ao todo. Mesmo
que nos restrinjamos ao espaço, a uma linha reta sem associá-la
ao tempo, sabemos que a não enumerabilidade dessa reta é um problema
ainda sem solução para as lógicas convencionais.
Embora
se trate de um artifício, a decomposição do tempo é
muito útil na organização das nossas ações
inteligentes e, se não atribui ao tempo um significado filosófico,
permite à ciência trabalhar com essa grandeza fundamental no estudo
dos fenômenos em geral.
No início do século XX, quanto mais complexa tornava-se a organização
da vida sobre o planeta, maior era a necessidade de que esse tempo fosse único
e sincronizado. Num passo adiante das necessidades cotidianas, Einstein percebeu
que esse tempo único era múltiplo, que sua medida dependia do
observador. Mas sua reformulação segue o modelo anterior, pois
persiste o misto tempo-espaço numa forma muito mais complexa. O estofo
que se passa entre dois instantes (a durée bergsoniana) era
irrelevante na teoria.
Bergson
não rejeitou a relatividade. Ao contrário, ele percebeu na linguagem
simbólica da teoria algo ressonante com sua própria filosofia
e reconheceu o valor científico desta criação da inteligência
humana.
A inteligência prepara uma ação do corpo no mundo e, portanto,
destina-se a medir, calcular, prever, para que o uso de símbolos e a
fragmentação do tempo em instantes imóveis no espaço
sejam necessários. No extremo oposto ao da inteligência encontra-se
a intuição. Neste espectro entre a inteligência e a intuição,
situa-se a nossa consciência, situando-se quase sempre mais próxima
da primeira. Bergson, porém, acredita que é através da
intuição que podemos apreender o que Proust chamaria de “um
pouco de tempo em estado puro”.
Segundo
o filósofo, a vida, graças à sua capacidade inventiva,
dividiu-se em vegetal (especializada em captar energia) e animal (responsável
pela locomoção que garante o espalhamento da vida). No reino animal,
a inteligência desenvolveu-se com o sistema nervoso nos vertebrados, mas
entre os invertebrados foi a intuição – forma elevada do
instinto – que teve um desenvolvimento maior. As abelhas, por exemplo,
organizam-se guiadas por essa intuição enquanto os humanos planejam
inteligentemente.
Apesar
da cisão, instinto e inteligência conservam um caráter indiviso,
pois, como disse Deleuze, "quando a vida se divide em planta e animal,
quando o animal se divide em instinto e inteligência, cada lado da divisão,
cada ramificação, traz consigo o todo sob um certo aspecto, como
uma nebulosidade que acompanha cada ramo, que dá testemunho de sua natureza
indivisa. Daí haver uma auréola de instinto na inteligência,
uma nebulosa de inteligência no instinto, um quê de animado nas
plantas, um quê de vegetativo nos animais.”
Na
humanidade da qual fazemos parte, a intuição é quase inteiramente
sacrificada à inteligência. No entanto, ela está presente,
mas vaga e sobretudo descontínua. É uma lâmpada quase apagada,
que se reaviva apenas de vez em quando, e apenas por alguns instantes. Mas reaviva-se,
em suma, quando um interesse vital está em jogo. Sobre a nossa personalidade,
sobre a nossa liberdade, sobre o lugar que ocupamos no todo da natureza, sobre
a nossa origem e talvez mesmo sobre o nosso destino, diz Bergson, “ela
projeta uma luz vacilante e fraca, mas que não deixa de iluminar a escuridão
da noite em que nos deixa a inteligência”. Esses lampejos vindos
da franja periférica da nossa consciência podem nos revelar a pura
duração, onde a inteligência só pode enxergar uma
medida espacial.
Intuir
é coincidir. Uma rocha, um rio que passa e o murmúrio contínuo
de minha vida interior são diferentes contrações da duração
que percebo quando coincido com cada uma delas, quando nelas me instalo de imediato.
Quando compreendemos a intuição em Bergson, percebemos que sua
filosofia está mais próxima da ciência de seu tempo do que
aparenta. A multiplicidade do tempo na relatividade é análoga
a diferentes contrações da duração bergsoniana.
Bergson não via nada de estranho nas diferentes medidas de tempo para
diferentes referenciais na teoria de Einstein. Para ele, o pretenso tempo homogêneo
é um ídolo da linguagem, uma ficção, pois não
há um ritmo único da duração; é possível
imaginar muitos ritmos diferentes, os quais, mais lentos ou mais rápidos,
mediriam o grau de tensão ou de relaxamento das consciências, e
desse modo fixariam seus respectivos lugares nas séries dos seres. Não
nos acontece, diz Bergson, “perceber em nós mesmos, durante
o sono, duas pessoas contemporâneas e distintas, sendo que uma dorme alguns
minutos enquanto o sonho da outra dura semanas?”.
A
observação feita pelo filósofo francês no debate
de 1922 procurava mostrar o que há de intuição na inteligência
e o que há de duração no tempo da relatividade. Infelizmente,
assim como as origens metafísicas do conceito de força à
distância de Newton perderam-se na poeira levantada pelo triunfo do mecanicismo,
a questão bergsoniana foi ofuscada pelo mito de Einstein. Por isso, continuamos
a tomar a medida do tempo pelo próprio tempo, mesmo na complexidade desta
teoria que completa um século em 2005.
Márcio Barreto é físico e aluno de doutorado no Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas, da Unicamp.
|