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Cidade Atravessada : Os Sentidos Públicos no Espaço Urbano Eni Pulcinelli Orlandi. Editora Pontes, 2001

 

 

 

 

por Paulo Capella

 

 

Decifra-me ou devoro-te: alternativas para a interpretação dos sentidos da cidade

"Não há saídas
só ruas
viadutos
e avenidas."
Alice Ruiz

 

 

 

A cidade tenta reduzir aquele que a observa à estupefação. Certas tentativas de compreensão da cidade costumam vê-la como espaço da imensidão, da multiplicidade e do fragmentário, como objeto mutante e, de certa maneira, caótico, desorganizado. Esfinge aparentemente indecifrável, a cidade é definida por uma certa mitologia do urbano como espaço de desordem e da ausência de lógica organizacional. Expressão, por um lado, de uma vida que aflora como tumor, indiscriminada e abundantemente. Por outro lado, porém, a cidade pode ser vista como o espaço por excelência da(s) civilidade(s), e daí torna-se, contraditoriamente, o espaço da regra, da delimitação dos contornos e dos papéis, como espaço e instrumento de regularização da vida social. Quando utilizamos este termo, "cidade", já começamos a resvalar o abismo cuja visão tende a nos turvar o olhar e a análise, pois nesse termo que pretende abarcar, numa singela completude, aquilo que consideramos como naturalmente múltiplo, silenciamos as especificidades que compõem o quadro multidimensional que pretendemos analisar.

Tomemos do livro, como exemplo, o discurso urbanista tradicional, discurso que concebe uma cidade a priori, uma cidade idealizada, projetada, racionalizada, que tem como escopo substituir não apenas as cidades que efetivamente já ocupam um lugar na história, como também outras cidades possíveis, de origem externa ao discurso do urbanista. A mitologia da cidade, mais do que ela mesma, apresenta-se como um obstáculo ao analista por conta de discursos que ora a vêem sob o signo da transparência, ora sob um manto indevassável de opacidade anárquica. Nesse imaginário operam mitos que a um tempo fascinam, através da metáfora do gigantesco e do múltiplo e, por outra via, como é próprio dos abismos vertiginosos, assustam quem os observa, pois os abismos ameaçam o indivíduo, passível de aniquilação se não mantiver adequadamente seu precário equilíbrio.

Estas reflexões são o mote de Cidade Atravessada: Os Sentidos Públicos no Espaço Urbano, cujos autores não se deixam intimidar por esses percalços, ao contrário, partem dessas mesmas contradições, das falhas discursivas presentes na cidade que, abrindo brechas, oferecem-nos alternativas para a compreensão dos sentidos que aí afloram. A cidade, parodiando Jakobson, é um espaço (e não somente espaço físico, mas espaço lingüístico) sobrecarregado de sentidos, sentidos definidos na cidade e que, ao mesmo tempo, a conformam. Alguns sentidos são, neste complexo imaginário, tidos como normalizadores e, portanto, lícitos, são sentidos que procuram administrar a cidade, que procuram ignorar o múltiplo, promovendo uma normalização dos sujeitos, segundo óticas previamente estabelecidas, o que tende a impedir uma busca efetiva de compreensão dos problemas urbanos, problemas que afetam sujeitos significantes e significativos, e que o olhar normalizador busca calar, estereotipando-os. Obviamente, o discurso normalizador tende a preponderar na cidade, num jogo que conhece tanto a arena do físico como do simbólico, já que esse discurso está sedimentado, por exemplo, no discurso do Estado, no discurso da mídia, no discurso das próprias intervenções urbanas. É o que a organizadora dessa coletânea, Eni Orlandi, define como o "discurso sobre a cidade". Um discurso hierarquizante, que suprime vários prismas, várias nuances, várias vozes, em nome de uma concepção positivista de cidade que, ao mesmo tempo em que se regozija com o crescimento e a poderosa vastidão das metrópoles, procura uniformizar todos seus ocupantes como sujeitos-modelo, retirados de suas vivências específicas, de suas marcas históricas, de sua subjetividade.

Essas vozes outras, que normalmente não têm acesso aos tradicionais meios de debate e de transformação social, precisam aflorar de alguma maneira e, o que vem preocupando até os menos sensíveis a esses problemas, essas forças represadas, esses sentidos sufocados, comumente explodem em movimentos bruscos, violentos, desesperados. Filiados em sua maioria à perspectiva da Análise do Discurso de extração francesa, e incluindo autores ligados à psicanálise e à semântica histórica da enunciação, os textos coligidos partem por becos aparentemente escuros e por aparentemente claras avenidas, buscando os sujeitos e as significações envolvidas no tecido urbano, não com uma preocupação meramente descritiva, mas com a determinação de ouvir o que a cidade diz, tanto na conversa cotidiana como no despacho oficial, nos traçados em que a cidade se delineia, nos movimentos que a animam. O esforço sincero desses pesquisadores não é, de maneira alguma, em vão, ao contrário elucidam-se nesses textos mecanismos de contenção tanto da pluraridade como da especificidade e dá-se visibilidade a mecanismos de afirmação alternativos aos discursos oficialescos e intervencionistas. A cidade, imersa no que a organizadora chama de "inflação de signos", em contínua pressão, apesar disso expressa-se em seus próprios espaços, em seu próprio tempo: o silêncio e o caos são ilusórios, o que é necessário, e é o que buscam os autores, é o desenvolvimento de instrumentos de análise que consigam alcançar uma expressão que é sempre sutil, mas cuja sutileza vem freqüentemente disfarçada pela violência com que, muitas vezes, tenta alcançar a luz. É preciso não ver a cidade de um ponto de vista normatizador, administrativo, mas enfrentar a curiosa contradição inerente à necessidade de estabelecer-se meios de análise que devem se adaptar a um objeto que se recusa a ser objetificado, e que faz uso inclusive do próprio clichê obsedante como material de expressão. É preciso ver a cidade como um livro, cifrado é certo, mas legível se os caminhos e ruas forem percorridos com afinco. Não há que se esperar clareza da cidade, ela não é transparente, por outro lado deve-se evitar a facilidade dificultadora de vê-la como espaço caótico, refratário à análise. Ao analisar a cidade descobrimos várias cidades, vários prismas, vários universos, e subjetividades que aí transitam, significam a si mesmos e ao que os cerca. Essa é a cidade que tem voz nos textos desta bela coletânea, originários de encontro realizado em 1999, fruto por sua vez de projeto temático do Laboratório de Estudos Urbanos da Unicamp, "Os Sentidos Públicos no Espaço Urbano", coordenado por Eni Orlandi, sob auspícios da Fapesp. Através de análises que se constituem, na alteridade e na especificidade, providas de sólidos instrumentos de interpretação, esse pequeno volume representa um arejamento em relação aos discursos de gabinete, impostos de cima para baixo, que costumam tomar a si a administração dos problemas urbanos, e inscreve-se como esclarecedora referência para aqueles que procuram pensar as cidades, não como entidades fora da história, mas como elementos vivos, de profunda carga política e de grande significação para as sociedades e para os sujeitos. Ao cair a máscara aterradora da esfinge poderemos, como Édipo, enxergar a nós mesmos.

Atualizado em 10/03/02
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