Transgênicos,
recursos genéticos e segurança alimentar
- o que está em jogo nos debates?
Lavínia
Pessanha e John Wilkinson (org.)
Editora: Armazém do Ipê (Autores Associados)
Preço: R$ 29,00
Por
Flávia Natércia
Tudo
indica que o debate sobre as biotecnologias, do qual
os organismos transgênicos representam somente
um capítulo, veio para ficar. Afinal, como
disse Ian Wilmut, um dos “pais” da ovelha
Dolly, a sociedade vê-se diante do início,
ou melhor, do preâmbulo de uma “era de
controle biológico”. Sendo assim, descontado
o determinismo tecnológico embutido na expressão,
permanece válida a advertência: a biologia
molecular ainda está longe de explorar plenamente
o potencial dos processos e mecanismos que regem o
funcionamento dos organismos e que podem render inovações
tecnológicas extremamente lucrativas.
No
Brasil, onde transgênicos foram introduzidos
e cultivados comercialmente de forma ilegal, a Lei
de Biossegurança, que foi aprovada recentemente
e aguarda regulamentação, pode ter encerrado
o grande imbróglio legal em que se viram atirados
os agricultores e a agroindústria brasileira.
No entanto, dificilmente esgotará a discussão
nacional em torno das variedades recombinantes. A
lei, se bem regulamentada, resolve apenas uma parte
do problema.
A
comercialização dos transgênicos
suscita transformações nos direitos
de propriedade intelectual nos setores de agricultura
e de alimentos e também uma intensificação
da ação das organizações
de defesa do consumidor no campo alimentar. No cenário
internacional, trata-se de um debate que se estende
por mais de trinta anos. Transgênicos são
objeto de controvérsia mesmo antes de se tornarem
realidade. Inicialmente, entre os cientistas, que
chegaram a pedir, em 1974, uma moratória para
experimentos que envolviam a recombinação
de vírus, cuja segurança não
podia ser bem avaliada. Mas, como os autores apontam,
foi na segunda metade da década de 1990 que
os transgênicos passaram a inflamar a esfera
pública. Enquanto seus arautos anunciavam uma
nova “revolução verde”,
uma crescente mobilização dos oponentes
– entidades de defesa do consumidor e ambientalistas,
sobretudo – chegou a sustar a introdução
comercial de plantas desse tipo em diversos países,
notadamente no continente europeu.
O
livro é recomendável, sobretudo, para
os não-iniciados, oferecendo um amplo panorama
dos atores, das instituições, dos argumentos
e das ações que, ao longo dos últimos
anos, foram envolvidos no debate. Procura também
mostrar como a crescente preocupação
dos consumidores quanto à origem dos alimentos
que ingerem se reflete no sistema de produção.
Selos e certificações, por exemplo,
foram incorporados; surgiram leis específicas
para a proteção dos consumidores; empresas
do setor agroalimentício (produção,
distribuição e comercialização)
procuram inovar no sentido do aumento dos padrões
de segurança e higiene, que se tornam mais
e mais determinantes da competitividade. Além
da mobilização dos consumidores, destaca-se
como fator que tem contribuído para a elevação
da qualidade e da segurança dos alimentos a
normatização e a fiscalização
pelo Estado, ainda que reconheça a possibilidade
de conflitos de competência entre os poderes
legislativo, executivo e judiciário. Vai se
frustrar quem estiver em busca de grandes marcos temporais:
o foco recai sobre os processos.
Mas
a obra não vai fazer entender o que são
os transgênicos, como eles são obtidos
e por que implicam riscos para a saúde humana
e o ambiente, o que depende de conhecimentos que fogem
ao objetivo da publicação. Nas poucas
oportunidades em que trata de assuntos mais técnicos
- melhoramento vegetal e riscos à saúde
e ao ambiente - a linguagem utilizada se torna distante
do público geral a que o livro visa. Para um
público que não é necessariamente
formado em biologia, é pouco elucidativo usar
expressões como plantas alógamas
ou autógamas, por exemplo. Nesse sentido,
cabe corrigir a informação apresentada
na página 17, segundo a qual os transgênicos
resultam da recombinação de genes de
espécies diferentes. O que torna a recombinação
assustadora para alguns, maravilhosa para outros é
justamente a possibilidade de ignorar fronteiras ainda
mais remotas que as das espécies – bactérias
e plantas, para citar o exemplo mais comum, pertencem
a reinos distintos, e isso em termos evolutivos significa
que passaram a trilhar caminhos distintos há
milhões de anos.
Os
autores, Lavínia Pessanha e John Wilkinson,
são cientistas sociais e estão interessados,
primeiro, em mostrar que onde há transgênicos
há discórdia. Pessanha é pesquisadora
do Programa de Pós-graduação
em Estudos Populacionais e Pesquisa Social da Escola
Nacional de Ciências Estatísticas do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(Ence/IBGE), especialista em impactos socioeconômicos.
Wilkinson coordena o grupo de pesquisas do CNPq intitulado
“Regulando a Biosociedade”. É professor
do curso de pós-graduação em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Segundo
os pesquisadores, “a grande polêmica que
se trava é referente à identificação,
à precaução e à mitigação
dos riscos que tais inovações podem
causar à saúde humana e animal, ao meio
ambiente e ao controle e regulação do
sistema agroalimentar”. No primeiro capítulo,
tratam da segurança alimentar respeitando a
polissemia da expressão, desdobrada em quatro
sentidos: garantia da oferta de alimentos; garantia
de acesso universal aos alimentos; garantia da qualidade
nutricional e sanitária dos alimentos; o controle
e a conservação da base genética
do sistema agroalimentar. Cada um dos sentidos tem
diferentes implicações para a formulação
de políticas públicas.
O
segundo aborda a regulação dos transgênicos
e a segurança alimentar, pondo à mostra
o que os autores consideram como uma crescente “juridificação”
das relações sociais ligadas ao acesso
e ao uso dos recursos genéticos, que passaram
da condição de bens livres para a de
bens privados de alto valor. Essa juridificação
nomeia o “adensamento do direito positivo na
sociedade moderna, institucionalizando e regulando
os conflitos sociais, num processo de ondas sucessivas
e cumulativas da normatização legal
pelo qual as relações sociais seriam
crescentemente reguladas pelo Estado”.
Descrevem-se
o quadro regulatório internacional e a construção
do quadro regulatório nacional, com foco na
rotulagem dos alimentos e nas leis que concernem à
biossegurança, ao ambiente, à propriedade
intelectual, ao acesso ao patrimônio genético,
aos direitos do consumidor. Depois, faz-se uma análise
da “judicialização” do debate,
examinando mais detidamente o caso das variedades
Roundup Ready de soja. E, por fim, os autores analisam
as diferentes escolhas realizadas no âmbito
da região Sul do Brasil, opondo os estados
de Santa Catarina e Paraná ao Rio Grande do
Sul.
O
terceiro capítulo trata de um aspecto que,
em comparação com a rotulagem, tem recebido
menor atenção: o ‘realinhamento
do sistema agroalimentar’, que inclui, além
das normas de rotulagem, as iniciativas de preservação
da identidade, segregação e rastreabilidade
dos alimentos, bem como a elevação de
custos que esse realinhamento pode suscitar. Os autores
contextualizam, explicam os termos e as expressões,
enumeram os atores envolvidos e as diferenças
culturais transatlânticas. Também descrevem
como essas novas necessidades se refletiram na implantação,
em empresas de diversos países, nacionais e
transnacionais, de mecanismos de rastreamento e identificação
da origem dos alimentos. Como deixam claro, o Brasil
é capaz de explorar todas as possibilidades
(orgânicos, convencionais e transgênicos),
desde que defina com clareza sua escolha estratégica
e sua política para lidar com esse novo mercado.
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