Segurança Alimentar – Um desafio
para acabar com a fome no Brasil
Marlene
da Rocha (org.), Fundação
Perseu Abramo,
190 p., 2004
Por
Daniel Chiozzini
Uma
das críticas mais contundentes ao programa
Fome Zero era direcionada ao seu aspecto emergencial
e ao seu uso como peça publicitária.
Os argumentos baseavam-se na idéia de que não
havia porque destacá-lo das demais políticas
sociais, já que todas elas tinham em vista
a superação das mazelas brasileiras,
incluindo a fome. Mas o que foi pouco falado é
que, por trás do programa, havia uma estratégia
pensada pelo Partido dos Trabalhadores desde a sua
fundação e que ganhou força a
partir de 1990, quando o partido publicou textos que
sistematizavam sua visão em torno da reforma
agrária, políticas agrícolas
e segurança alimentar. Mas o impulso decisivo
que culminou com o Fome Zero foi a eleição
de Lula, que proporcionou uma experiência prática
de formulação e execução
de política pública voltada para o combate
à fome.
A
compreensão desse processo é fundamental
para entender não só a problemática
da fome como um todo, mas diferentes maneiras de enfrentamento
da questão, especialmente a escolhida pelo
governo federal. A obra Segurança alimentar
- um desafio para acabar com a fome no Brasil
é um documento bastante esclarecedor para entender
a concepção e a fase inicial de execução
do Programa Fome Zero, incluindo algumas das críticas
que ele suscitou. Trata-se do registro dos debates
do primeiro Seminário Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional do Partido dos Trabalhadores
(PT), realizado no fim do primeiro ano do governo
Lula, em 21 e 22 de setembro de 2003, como parte do
Fórum Nacional de Políticas Públicas
do partido.
O
seminário antecedeu as mudanças ocorridas
em janeiro deste ano, quando o Ministério Extraordinário
de Segurança Alimentar de Combate à
Fome (MESA), a Secretaria Executiva do Programa Bolsa
Família e o Ministério de Assistência
Social, órgãos diretamente associados
ao programa, deram lugar ao novo Ministério
de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS). O trabalho de edição foi cuidadoso
e acrescentou dois textos que visam esclarecer o processo
de transição ocorrido, além de
datar cada um deles.
Dentro
da perspectiva de abrir espaço para críticas
e para um diálogo com a intelectualidade e
com os movimentos sociais, uma das propostas da Editora
Perseu Abramo, o livro permite que se avance, de forma
inteligível para um público mais amplo,
a compreensão do que significa combater a fome
no Brasil: são apresentados textos como os
de João Pedro Stédile, coordenador nacional
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
e de Marcelo Néri, pesquisador do Centro de
Políticas Sociais da Fundação
Getúlio Vargas (FGV). Em cada uma das reflexões
sobre segurança alimentar são apresentados
dados que reafirmam os contrastes chocantes do universo
brasileiro. Trata-se de um dos maiores produtores
de alimento do mundo, o mais rico e que mais investe
em políticas sociais na América Latina
(cerca de 21% do PIB), mas ao mesmo tempo o com maior
índice de desigualdade social e cerca de 50
milhões de pessoas vivendo com menos de R$
80 por mês.
O
livro é dividido em cinco partes, iniciando
com um questionamento da existência de uma política
de segurança alimentar no Brasil. Em seguida,
são abordadas as interfaces do tema com desenvolvimento
rural, mobilização e organização
social e a participação dos municípios.
Ao
apresentar os desafios do programa, num texto escrito
em agosto de 2004, José Graziano deixa claro
as ambições e a amplitude pretendidas.
O objetivo proposto é que "a política
de segurança alimentar deve funcionar como
eixo integrador das políticas públicas
brasileiras". Transcendendo o plano de governo
de Lula, o programa se propõe a construir uma
rede que chega ao ponto de abarcar desde políticas
de fornecimento de água, construção
de restaurantes populares nas grandes cidades até
dinamização da economia local e merenda
escolar. Sem dúvida, o texto dá margem
a uma certa desconfiança em relação
à sua viabilidade, não pelo mérito
das iniciativas propostas, mas porque se sabe que,
mesmo no momento da edição da obra,
nem todas as esferas de poder e níveis hierárquicos
da burocracia estatal estão dispostos a vestir
de fato a camisa da esperança que vence o medo.
De
qualquer forma, o texto é bastante rico para
se ter uma idéia de que o problema da fome
não pode deixar de ser abordado de maneira
sistêmica. Porém, também deve
ser sistemática. Quanto menos emergenciais
as medidas, mais a necessidade delas serem sustentáveis
a médio e longo prazo e mais a necessidade
de se reformar o Estado brasileiro e a lógica
das políticas de governo.
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