Área de
segurança Gorazde - a guerra na Bósnia Oriental 1992-1995
Joe Sacco.
Ed Conrad, 2a edição, 2005
Por Rafael Evangelista
Raras são as vezes
que o relato jornalístico de uma guerra consegue retratar toda a
sua dramaticidade. Exposta cotidianamente nos telejornais, seus
horrores parecem se tornar peças de uma ficção
irreal e desinteressante, com suas tragédias nos sendo exibidas
intercaladas com anúncios publicitários. Ao usar de um
formato normalmente associado à ficção para fazer
seu trabalho jornalístico, as histórias em quadrinhos,
Joe Sacco consegue justamente o efeito inverso: devolve ao relato de
uma guerra todo impacto e força que ele deve ter. Em tempos em
que as imagens de vítimas de explosões são
censuradas para que não choquem o público – como faz o
governo dos EUA –, Sacco consegue provocar a devida repulsa sem usar de
sensacionalismos.
Em Área de
segurança Gorazde: a guerra na Bósnia Oriental, 1992-1995,
o autor, de quebra, ainda consegue explicar o intrincado
quebra-cabeças étnico da ex-Iugoslávia. Ele o faz
a partir de uma pesquisa histórica que se soma ao relato de suas
fontes principais, os muçulmanos. Contudo, embora privilegie
esse grupo étnico como fonte, não assume propriamente um
dos lados, mostra como todos os grupos, dadas as
condições certas, foram capazes de cometer atrocidades.
Diz ele, relatando o ambiente no país durante a Segunda Guerra,
quando as ações de croatas, sérvios e
muçulmanos geraram as feridas que explodiriam nos anos 1990:
“Quando os países
do Eixo ocuparam e desmembraram o reino da Iugoslávia, em 1941,
instalaram croatas fascistas, os ustasha, no seu próprio estado,
que foi expandido para abrigar a Bósnia. A fúria com que
os ustasha promoveram seu programa de genocídio e carnificina
forçou a conversão religiosa e expulsão da
população sérvia restante, deixando até
mesmo os nazistas horrorizados. (...) Os chetkins, um tipo de
aliança ampla entre sérvios nacionalistas e monarquistas,
procuravam estabelecer uma Sérvia grande, limpa de
não-sérvios. Agitavam uma guerra cruel contra os croatas
da Bósnia, os cidadãos muçulmanos (vistos como
colaboradores dos ustasha) e os partisans, que eles viam como rivais de
pós-guerra. (...) Os muçulmanos da Bósnia podiam
ser encontrados em todos os lados do conflito. Uns poucos se aliaram
às chetniks. Outros se juntaram à
perseguição dos sérvios pelos ustasha. Milhares se
voluntariaram aos alemães para formar uma divisão
muçulmana da SS, que comenteu atrocidades anti-sérvios”.
O país só
foi estável na época de Josip Broz, conhecido como Tito.
O general, líder da resistência comunista que conseguiu
vencer os nazistas na Segunda Guerra, controlou o país de
maneira autoritária, mas conseguiu manter os grupos
nacionalistas étnicos em silêncio. Tito conseguiu forjar
uma identidade iugoslava entre um povo etnicamente diverso, cujos
maiores grupos eram os croatas católicos, os sérvios
cristãos ortodoxos e os muçulmanos. Mas tudo passou a
ruir depois da morte do general, em 1980, quando os políticos
passaram a usar as rixas étnicas para se legitimarem.
A Bósnia, que era
um dos estados da antiga Iugoslávia, localizada no centro do
país, era e continua sendo o maior caldeirão
étnico. Até hoje, a presidência da atual
Bósnia-Herzegóvina é exercida de modo rotativo
entre os três principais grupos étnicos (croatas,
bósnios e sérvios). Croatas e bósnios (eslavos
convertidos ao islamismo durante a ocupação otomana)
ocupam principalmente a região da Federação da
Bósnia-Herzegóvina, enquanto os sérvios ocupam a
República Srpska. Esses dois estados relativamente independentes
são resultado dos conflitos dos anos 1990.
Sacco coletou a maior
parte de seu material em um enclave bósnio, Gorazde, de 1992
até o fim dos conflitos, em 1995. A cidade estava completamente
sitiada por tropas sérvias e isolada da capital Sarajevo. A
Sérvia era um dos estados da Iugoslávia e buscava sua
independência. Porém, como na região da
Bósnia, que fica a oeste, também era habitada por
sérvios, as forças que buscavam a independência
daquele estado planejam uma expansão territorial. Nessa luta, as
animosidades étnicas foram suscitadas por políticos
interesseiros e o livro mostra como sérvios e muçulmanos,
que conviviam em harmonia, partiram para um conflito sangrento.
O autor coletou
depoimentos de muçulmanos de Gorazde, que se lembram de seus
amigos de infância sérvios e da convivência
pacífica em que as diferenças de origem e religiosas
pouco importavam. Mostra como surgiu uma espiral de violência que
deixou feridas irreparáveis. Ao mesmo tempo, relata o cotidiano
daquela que deveria ser uma área de segurança protegida
pela ONU, mas que vivia sob constante ameaça. Embora tenham tido
suas vidas viradas do avesso, presenciando horrores e sofrendo com
perdas familiares, as pessoas continuam frequentando os bares,
conversando sobre futilidades e sonhando com o futuro.
O livro/gibi alterna
momentos divertidos com passagens em que o leitor é praticamente
obrigado a interromper a leitura, tal o mal estar causado pelos relatos
de atrocidades – como quando o médico da cidade conta sobre suas
38 horas ininterruptas de cirurgias feitas sem anestesia nos pacientes,
ou quando um cinegrafista amador tenta vender suas filmagens dos
destroços (de edifícios e pessoas). A principal
contribuição, além do mapa que faz de um conflito
que parece incompreensível se acompanhado pelos jornais,
é exatamente essa, mostrar como a guerra é feita por e
entre humanos – com todas as suas virtudes, idiossincrasias e defeitos.
|