Naissance de la biopolitique
Michel Foucault
Paris: Gallimard, 1979
Por
Flávia Natércia
Em Naissance
de la biopolitique (Nascimento da biopolítica),
Michel Foucault retraça a história da arte de governar, o
que, em sentido restrito, significa o governo dos homens somente na
medida em que ele se dá como exercício de soberania
política. Procurando “a maneira refletida de governar da
melhor maneira e ao mesmo tempo a melhor maneira possível de
governar”, o autor está interessado na
racionalização que o governo faz de si e, ainda, no
estabelecimento do domínio de sua prática - objetos,
regras gerais, objetivos que concorrem para que se governe da melhor
maneira.
Essa análise
desembocaria na biopolítica que o livro, aliás, o curso,
não chega a abordar em si. São, na verdade, analisadas
suas condições de possibilidade, ou seja, o
desenvolvimento teórico, prático, e discursivo do
liberalismo e, mais tarde, do neoliberalismo. Desenvolvimento este da
arte de governar, da ‘razão de Estado’ sob o
mercantilismo, o liberalismo e o neoliberalismo, nas formas que se
forjaram e desenvolveram na Alemanha, na França e nos Estados
Unidos. Foucault, porém, abdica da tarefa de encontrar a origem
exata de uma prática, de um saber, de um discurso; fazendo
história, faz genealogia, e busca uma possibilidade de
entendimento para o mundo de hoje, em que o mercado é
todo-poderoso e as pessoas passam a ver a si mesmas como empresas.
A análise se
desdobra a partir do mercantilismo dos séculos XVI e XVII,
quando o Estado visava ao enriquecimento pela acumulação
monetária, ao reforço numérico pelo crescimento da
população e à manutenção da
concorrência permanente e equilibrada com as outras
nações européias (“balanço
europeu”). A liberdade de mercado faria funcionar um mecanismo de
enriquecimento mútuo entre as nações
européias; “ou toda a Europa será rica, ou toda a
Europa será pobre”, o que impunha uma
limitação externa ao crescimento de cada um dos Estados.
Para que o jogo econômico tivesse soma nula, o mecanismo de
enriquecimento teria de funcionar num domínio econômico
que implicava, potencialmente, o mundo todo, e com um mercado cada vez
mais extenso, uma nação não poderia dominar as
outras. Nas palavras de Foucault, se o jogo se dá na Europa,
“a aposta é o mundo”.
Durante esse
período, no mercado, buscava-se o preço justo que levasse
em conta, de um lado, o trabalho feito e as necessidades dos
comerciantes e, de outro, as possibilidades dos compradores. Desse
modo, o mercado se constitui num lugar de justiça, “um
lugar onde devia aparecer na troca e se formular no preço alguma
coisa que era a justiça”. O direito, por sua vez,
procurava impor limites ao Estado de polícia, “um governo
que se confunde com a administração”, cujo projeto
seria ilimitado. A polícia, nos séculos XVII e XVIII, se
refere a todos os dispositivos usados para, por um lado, fazer crescer
as forças do Estado e, por outro, manter a ordem, ocupando-se do
número de pessoas, das necessidades da vida, da saúde,
das atividades e da circulação do homem.
As
limitações ao Estado, nessa racionalidade, eram,
portanto, externas: o direito e o balanço europeu. Mas, a partir
da segunda metade do século XVIII, o princípio de
limitação da arte de governar passou a ser interno.
Surgiu a razão governamental moderna, uma razão
crítica do “excesso de governo” que caracterizou o
período anterior. “Nessa nova razão de Estado ou
nessa razão do menor Estado que encontra então no mercado
sua veridição de base e na utilidade sua
juridição de fato, fica bem claro que as coisas
serão totalmente diferentes”, diz Foucault. E foi a
economia política, na qualidade de disciplina científica,
que serviu como instrumento intelectual do processo de
autolimitação do governo. Por meio dela, também,
foi que o governo se fez atravessar por um regime de verdade, uma
divisão entre o verdadeiro e o falso.
Como Foucault deixa
claro, o que ele denomina regime de verdade se instaura por meio de
dispositivos de saber-poder capazes de inscrever na realidade algo que,
em si, não existe – como a loucura, a
delinqüência, a
sexualidade –: o que não existe
passa a existir como efeito de
discursos, práticas e saberes. Sob o novo regime, liberal,
é o mercado que deve revelar algo como uma verdade: os
preços, conformes aos mecanismos naturais e espontâneos,
proporcionarão o parâmetro para avaliar se as
práticas governamentais vigentes são corretas ou
errôneas. E, de lugar de justiça
(juridição), passou a ser lugar de verdade
(veridição), ou seja,
verificação-falsificação para a
prática governamental. Nesse contexto, surge um Homo
oeconomicus que representava aquele que era intangível ao
exercício do poder, sujeito ou objeto do laissez-faire
que obedece a seu próprio interesse – e que somente
obedecendo a seu próprio interesse consegue contribuir para o
bem geral – e não deve ser tocado pela teoria do governo.
Depois de diversas crises
de governabilidade, e também da Segunda Guerra Mundial, a
sobrevivência do capitalismo parecia depender da
invenção de uma nova forma. Na Alemanha, mais que isso,
foi preciso recriar o Estado a partir da instituição
econômica, um Estado (nazista) ao qual a história havia
dito não. E a instituição econômica produziu
algo que é “mais real, mais concreto e mais
imediato”: um consenso permanente, a que todos os
‘parceiros’ da economia (operários, patrões,
investidores, sindicatos), de certa forma, aquiescem ao aceitar a
liberdade econômica como princípio. O crescimento
econômico, alardeava-se, seria fonte de bem-estar. Uma volta ao
liberalismo?
O neoliberalismo poderia
representar uma mera atualização do programa liberal?
Para Foucault, a resposta é não, e a
negação se estende igualmente a outras respostas
comumente dadas à pergunta: o que é o neoliberalismo?
“O neoliberalismo não é Adam Smith; o
neoliberalismo não é a sociedade de mercado; o
neoliberalismo não é o Goulag na escala insidiosa do
capitalismo”. Seu problema consiste em como se pode regular o
exercício global do poder político sobre os
princípios de uma economia de mercado. Não se trata mais
do princípio do laissez-faire. Entra em cena a teoria
da concorrência pura, segundo a qual a concorrência
constitui uma estrutura cujas propriedades formais são capazes
de assegurar a regulação econômica pelo mecanismo
dos preços. A concorrência não é apresentada
como um dado natural ou primitivo, consistindo num jogo formal entre
desigualdades. E a política liberal tem como tarefa arranjar o
espaço real, concreto, dentro do qual a estrutura formal da
concorrência vai agir. É preciso governar, mas é
preciso governar para o mercado. Opera-se, portanto, um deslocamento do
princípio regulador da economia: das trocas para a
concorrência.
Outra
operação neoliberal relevante: o trabalho, abordado na
economia clássica – na análise de Marx, por exemplo
– como força de trabalho, uma abstração,
que, vendida, proporcionava um salário ao trabalhador, passa a
ser decomposto em capital e renda. O capital, definido como tudo que
torna possível um retorno financeiro futuro, torna-se
“praticamente indissociável daquele que o
detém”. E, portanto não se trata de uma
“sociedade de supermercado”, uma
“sociedade-empresa”, na qual o que importa não
é mais o homem da troca ou o homem consumidor. O Homo
oeconomicus neoliberal é o homem da empresa e da
produção: a “empresa”, a pessoa
jurídica, se torna o agente econômico fundamental.
Numa vertente do
neoliberalismo que não é a canônica, mas tem
surtido efeitos visíveis de subjetivação, todo o
ser do homem se vê transformado em capital. Capital humano, mas
capital. Cada um é seu próprio empresário, seu
próprio capital, e deve trabalhar no sentido de elevá-lo,
aumentando o retorno na forma de renda, vendo-se amiúde diante
de escolhas estratégicas quanto ao investimento, à
alocação que deve fazer de recursos raros a finalidades
alternativas. Tais escolhas estratégicas incidiriam até
mesmo sobre a reprodução dos indivíduos. Afinal,
um bom patrimônio genético confere a um filho um bom
aporte inicial de capital humano. E tudo mais que costuma fazer parte
da educação de uma criança, carinho, cuidados
médicos, escola, cursos extracurriculares, pode ser avaliado em
termos de investimento.
Agora, o soberano deixou
de ser o que decide no estado de exceção. Soberano
é o mercado. Empresário de si, o trabalhador não
aboliu a exploração – ela nunca teria sido
tão
intensa. E Foucault, embora não esteja dito na obra,
também se preocupava com a resistência possível
diante da nova configuração. Se houve uma mudança
radical na forma como a vida humana se vê implicada na arte de
governar, é preciso também renovar as formas de
resistência.
Lançado na
França em 2004, o livro reúne as aulas que Foucault
ministrou, em 1979, no Collège de France, na cátedra de
“Sistemas do Pensamento”, e que são de grande
interesse para a compreensão da realidade atual. A
instituição exigia dos professores a
apresentação, a cada ano, de uma pesquisa original. Do
primeiro curso, de 1970, resultou História da Sexualidade I
– Vontade de Saber, em cujo capítulo final,
aliás, o epistemólogo francês desenvolve pela
primeira vez uma análise do ingresso da vida no cálculo
do poder, que ele denomina, então, biopoder, e que voltou a
analisar no curso de 1978, Sécurité, Territoire et
Population. Atraindo uma platéia cada vez maior de alunos e
ouvintes, lutando contra um número crescente de gravadores,
finalmente projetado num telão para uma segunda sala, lotada
como a primeira, ele seguiu seu projeto de conhecimento da
“genealogia dos regimes veridicionais”.
A editora
Martins Fontes, que publicou, em 1999, o livro Em defesa da
sociedade, segundo seu Departamento de Produção
Editorial, vai publicar a tradução, embora ainda
não haja previsão de lançamento.
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