Finalmente Peirce, ainda Peirce!
Semiótica e filosofia – textos escolhidos
de Charles Sanders Peirce
Charles Sanders Peirce
Editora Cultrix, 1972
Por
Carlos
Vogt
Em
1972, a editora Cultrix, então sob a direção
editorial do saudoso poeta e ensaísta José
Paulo Paes, publicou o livro Semiótica
e filosofia – textos escolhidos de Charles
Sanders Peirce, com introdução, seleção
e tradução de Octanny Silveira da Mota
e Leônidas Hegenberg.
Publiquei,
na ocasião, saudando com entusiasmo intelectual
juvenil e sincero a iniciativa, uma resenha do livro
no vol. 13, n. 2, de junho de 1973, da Revista
de Administração de Empresas, da
Fundação Getúlio Vargas, às
pp. 27-36.
Vários
anos se passaram, mas relendo esse pequeno trabalho
fiquei com a impressão de que ele poderia contribuir
ainda para uma compreensão de questões
fundamentais que envolvem a ciência e o fazer
científico, seu lugar epistemológico
e a dinâmica de suas relações
de representação simbólica do
mundo, com o mundo, com a linguagem, na linguagem,
no homem, com sua eterna provisoriedade.
Renovei,
contudo, a certeza de que o seu maior interesse, como,
aliás, deve ser o de toda resenha, é
o de motivar o leitor para a atualidade da obra de
Peirce e de sua enorme contribuição
para a semântica, para a teoria lingüística,
para a teoria literária, para a filosofia da
linguagem, para a filosofia da ciência, para
a semiótica, enfim, para a epistemologia de
um modo geral.
É
esse, pois, o sentido de republicá-lo agora,
aqui nesse espaço virtual da ComCiência,
neste número da revista dedicado às
questões nada simples, mas fundamentais e sempre
presentes que envolvem as relações entre
ciência e religião.
Finalmente
Peirce [1]
1.
Contendo sete textos, um dos quais é um fragmento
de uma carta, entre a imensa produção
do lógico e filósofo americano, a edição
brasileira de Peirce deve ser acolhida com entusiasmo,
num momento em que sabemos o quanto, adequada ou inadequadamente
se fala no novo espírito científico
- para arremedar o título do importante trabalho
de Bachelard - e em que as chamadas ciências
humanas tentam, numa multiplicação de
esforços, assumir a sua classificação
como tal e povoam, mitologicamente, o seu discurso
com o sucesso de personagens migrados do seu próprio
interior, isto é, de áreas que conseguiram
mais rapidamente importar os métodos da matemática
e da lógica, como é o caso da lingüística.
Daí a comunicação, a de massa
e a do pão feito, os signos, os modelos, as
estruturas e quejandos apetrechos, que a fase heróica
ou de lua-de-mel do processo de irmanização
da natureza e do homem vai incorporando com zelo ou
modismo no preenchimento do novo espírito da
ciência.
Há,
nesta edição, como seria inevitável
que houvesse, todos os problemas que uma tal seleção
apresenta à aventura de quem a empreende, muito
menos por falha de quem seleciona e muito mais por
complexidade e amplitude do material a selecionar:
obra vastíssima, em parte publicada em revistas,
em grande parte inédita e só postumamente
publicada em volumes (oito ao todo, os Collected
Papers, sendo que os seis primeiros foram publicados
entre 1931 e 1935 e os dois últimos em 1958,
todos pela Harvard University Press).
Contudo,
e no sentido do que acima foi dito, esta divulgação
de alguns dos trabalhos de Peirce deve ser recebida
com apreço.
A
seleção feita pelos tradutores brasileiros
destacou os seguintes textos da obra de Peirce: “A
propósito do autor”, “Como tornar
claras as nossas idéias”, “A fixação
das crenças”, “Classificação
dos signos”, “O ícone, o indicador
e o símbolo”, “A propósito
de signos e categorias”, destacado de uma carta
de 12 de outubro de 1904 para Lady Welby, personagem
das relações de Peirce que foi dama
de honra da rainha Vitória e interessada no
estudo da semântica, e, por fim, o artigo “Dedução,
indução e hipótese”.
Se
tais textos conseguirem fornecer ao leitor brasileiro
uma amostra o quanto possível, representativa
da obra, então sua tarefa estará cumprida.
O
primeiro texto dá ao leitor a possibilidade
de se confrontar com o traçado geral que Peirce
faz de sua atividade de pesquisador, apontando a perseverança
de suas leituras, o longo tempo de sua indagação
e produção (“o desenvolvimento
de minhas idéias foi trabalho de 30 anos”
p. 46), as obras e os autores caminhados e a profissão
de fé no conhecimento (“sempre senti
que minha filosofia brotasse de um falibilismo, combinado
com decidida fé na realidade do conhecimento,
e de um intenso desejo de investigação”
p. 47).
O
falibilismo como método científico,
contrariamente a outros métodos, o da tenacidade,
o da autoridade e o método a priori, que o
autor discute no artigo “A fixação
das crenças” admite fundamentalmente
que toda tentativa no sentido de descobrir a verdade
pode estar laborando em erro e é exatamente
à espreita do erro provável que a verdadeira
pesquisa científica avança, na medida
em que a certeza absoluta, a precisão absoluta,
a universalidade absoluta e mesmo o chamado inexplicável
são cuidadosamente examinados e afastados como
entraves à pesquisa pelo método científico
ou experimental.
Preocupado
em estabelecer uma relação necessária
entre ciência e filosofia, Peirce formula o
método pragmático no intuito de fornecer
um método científico para a filosofia,
isto é, um método que pudesse conferir
significado às idéias filosóficas
em termos experimentais, de modo que a investigação
das opiniões, a fim de estabelecer-lhes a verdade,
é o objetivo fundamental do método científico,
enquanto o pragmatismo deve responder pela determinação
experimental do significado das idéias ou conceitos
intelectuais.
O
método do pragmatismo, segundo o testemunho
e reconhecimento de William James, “foi pela
primeira vez introduzido em filosofia pelo Sr. Charles
Peirce, em 1878. Em um artigo intitulado “How
to make ours ideas clear”, publicado em Popular
Science Montly, em janeiro daquele ano, o Sr.
Peirce, ao assinalar que nossas crenças são
na verdade regras de ação, declarou
que, para desenvolver o significado de um pensamento,
temos apenas de determinar que conduta é ele
adequado para produzir: essa conduta constitui para
nós a sua única importância”.[2]
Contudo,
e apesar da influência que Peirce exerceu sobre
todo o desenvolvimento do pragmatismo nos trabalhos
de James e Dewey entre outros, apesar também
do reconhecimento dessa influência por parte
desses filósofos, é importante ressaltar
que o próprio Peirce nem sempre se mostrou
de acordo com a utilização que outros
fizeram do termo “pragmatismo” tendo mesmo
proposto uma nova designação de seu
método, suficientemente inusitada e estranha,
pragmaticismo, mas com a vantagem de não atrair
visitantes afoitos.
Fato
é que as conseqüências práticas
de um conceito e que lhe constituem o significado
nada tem a ver, necessariamente, com a utilidade que
James lhes atribuiu. Para Peirce, ao contrário,
comprometer a pesquisa científica com qualquer
objetivo de ordem moral ou de qualquer outra ordem
que não fosse o da investigação
impessoal da verdade, era um risco que a ciência
devia evitar sob pena de incorrer nas falhas que os
métodos discutidos no artigo “A fixação
das crenças” apresentam.
Desvinculando
assim o conceito de conseqüências práticas
dos limites da utilidade ou do valor econômico,
Peirce entende por tal aquelas conseqüências
possíveis de serem previstas e cuja realização
é resultado de alguma operação,
de forma que o caminho definitivo para o esclarecimento
das idéias é experimental, isto é,
o caminho que leva a encontrar na prática as
conseqüências previstas de qualquer conceito.
No
sentido dessa predictibilidade do método, o
pragmatismo constitui-se como uma hipótese
para o estabelecimento do significado de conceitos
intelectuais e ainda como meio para estabelecer a
legitimidade de uma hipótese, enquanto tal.
Nesse
ponto o artigo “Dedução, indução
e hipótese” aparece como fundamental
para que se compreenda tanto o papel do elemento lógico
no pragmatismo de Peirce como a identificação
do método com o raciocínio abdutivo
ou hipotético.
Distinguindo
a dedução como o tipo de raciocínio
cuja conclusão decorre necessariamente das
premissas, raciocínio de tipo analítico
que não é mais do que a aplicação
de uma regra a um caso para chegar a um resultado
particular, de dois outros raciocínios de tipo
sintético, a indução e a abdução,
Peirce, nesse artigo já aponta os caminhos
para melhor compreensão da afirmação
que faz em outro artigo quando diz:
“Se
considerarmos cuidadosamente a questão do pragmatismo,
veremos que não é nada menos que uma
questão de lógica ou de abdução”.[3]
Na
verdade, tanto a indução como a hipótese
são raciocínios cujas conclusões
não se seguem necessariamente das premissas
de forma que não podem ser validadas aprioristicamente
como no caso da dedução. Tanto a indução
como a abdução não são
mais que prováveis, com a diferença
que a indução parte de um caso para
chegar a uma regra, passando pelo resultado, enquanto
que a abdução parte de um resultado,
para, aplicando a ele uma certa regra, chegar a um
novo caso.
Desse
modo, embora mais precário que o raciocínio
indutivo, na medida em que a margem de erro de tal
raciocínio é maior do que na indução,
isto é, no sentido de que a abdução
não é mais do que uma explicação
provável, esse tipo de raciocínio, no
entanto, tem uma importância fundamental para
a ciência, pois é a partir dele que se
podem fazer novas descobertas e prever fatos ainda
não determinados.
É
esse caráter criativo e ousado da hipótese
que lhe confere especificidade em relação
ao raciocínio indutivo, ao mesmo tempo que
a identifica com o método pragmático;
primeiro, porque a abdução tanto quanto
o pragmatismo como método científico
são falíveis e suscetíveis de
correção quando o teste experimental
o exigir e segundo, porque o pragmatismo, na medida
em que é um método para a determinação
experimental do significado de um conceito, é
como a abdução a aplicação
de uma regra geral a um resultado observado.
Vê-se,
assim, esclarecida a afirmação de Peirce,
acima transcrita, da mesma forma que podemos agora
apontar de modo mais preciso a natureza de sua regra
pragmática, seguindo para tanto das indicações
de Guy W. Stroh. Diz ele:
“Sua
regra pragmática é, pois, a) hipotética,
b) operacional, c) predictiva e d) observacional.
Dizê-la hipotética significa que é
enunciada sob a forma de uma proposição
condicional: se A então B. Dizê-la
operacional significa que a parte A, ou a antecedente
da condicional, envolve a ação ou
realização, propositadamente controlada,
de alguma coisa, para obter um certo resultado.
Dizê-la predictiva significa que se prevê
que a parte B, ou conseqüente da condicional,
seguir-se-á como um resultado inevitável
da parte A, ou da operação realizada.
Finalmente, dizê-la observacional significa
que podemos realmente nos referir à experiência
ou à observação para determinar
se os resultados previstos realmente ocorrem”.[4]
Podemos,
desde já, a partir dessas observações,
verificar a atualidade do pensamento de Peirce. Com
efeito, se atentarmos para as posições
de Popper, e tal como observam os tradutores da edição
brasileira na introdução por eles realizada,
ainda que não aceite a indução[5],
ele descreve o progresso científico em linhas
análogas às de Peirce: ”uma hipótese
é proposta, submetida a teste e “corroborada”
(na medida em que inexistam casos de refutação).
Como a corroboração não é
conclusiva, o máximo que se pode ter é
certo grau de confiança na hipótese
- que não foi refutada e se presta para explicar
e prever os acontecimentos a que se refere”.[6]
Mas
não é tudo. Sabemos ainda que na área
da lingüística, e mais especificamente
da lingüística transformacional, é
essa a posição teórica que tem
sido assumida cm resultados realmente interessantes
para as ciências humanas em geral. É
neste sentido que vai, por exemplo, a afirmação
de Ruwet, passando por Chomsky, quando diz:
“De
uma acumulação de observações
ou de experiências, não é possível
induzir rigorosamente uma teoria; a formulação
de uma teoria comporta sempre uma parte de risco,
representa uma aposta. Mas em revanche, observações
ou experiências bem conduzidas (e que podem
ser pouco numerosas), podem somente, levar a aceitar
ou a rejeitar uma teoria”.[7]
O
realismo de Peirce, ao mesmo tempo que aponta os erros
em que mergulhavam tanto o nominalismo quanto o subjetivismo,
estende-se, como não podia deixar de ser, à
crença categórica na realidade do conhecimento
de tal modo que “diferentes espíritos
podem firmar-se nas mais conflitantes posições
e, não obstante, o progresso da investigação
os levará, por força externa, a uma
única e mesma conclusão. Essa atividade
do pensamento pela qual somos levados não para
onde queremos, mas à meta preestabelecida,
chama-se destino. Nenhuma alteração
de ponto de vista, nenhuma escolha de fatos outros
para estudo e nem mesmo uma natural inclinação
de espírito pode dar meio ao homem de escapar
à opinião predestinada. Essa grande
esperança está presente nas concepções
de verdade e realidade. A opinião que será
afinal sustentada por todos os que investigam é
o que entendemos por verdade e o objeto que nesta
opinião se representa é o real”.[8]
É
este mundo de fatos reais, cuja existência independe
de nossas opiniões, que o método científico
deve levar a descobrir, uma vez que a verdade não
se constitui a partir daquilo que se pense que ela
seja, mas como a adequação ao real das
hipóteses formuladas, isto é, pela repetibilidade
das conseqüências práticas previstas
em tais hipóteses, na experiência.
Neste
sentido, talvez não fosse exagero, nem excesso
de zelo para com a atualidade de um autor, que dele
não necessita, ver no realismo de Peirce uma
certa correspondência com a afirmação
de Russell, quando este diz que “verdade”
é o conceito fundamental, e que é o
“conhecimento” que deve ser definido em
termos de “verdade”, e não o inverso.”
[9]
Na
medida em que o pragmatismo propõe-se como
um método científico para determinar
o significado de conceitos intelectuais e na medida
em que, contestando o intuicismo de Descartes, Peirce
nega a idéia de que o pensamento possa interpretar-se
a si mesmo, é só em termos de signo
que ele se efetua.
Menos
interessado numa interpretação direta
da realidade e preocupado com o caráter representativo
dos signos, o pragmatismo vê o pensamento complexamente
estruturado numa relação triática:
significa alguma coisa para alguém de alguma
maneira. Em outras palavras, é o caráter
relacional do pensamento que torna fundamental uma
teoria dos signos. Daí a preocupação
de Peirce em elaborar tal teoria, de que os artigos
“Classificação dos signos”,
“O ícone, o indicador e o símbolo”
e a carta para Lady Welby que constam da edição
brasileira, podem fornecer ao leitor uma primeira
aproximação.
Segundo
Peirce, “um signo, ou representamen,
é algo que, sob certo aspecto ou de algum modo,
representa alguma coisa para alguém. Dirige-se
a alguém, isto é, cria na mente dessa
pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor
desenvolvido”.
Ao
signo assim criado Peirce denomina interpretante
do primeiro signo
E
continua:
“O
signo representa alguma coisa, seu objeto. Coloca-se
no lugar desse objeto, não sob todos os aspectos,
mas com referência a um tipo de idéia
que tenho, por vezes, denominado o fundamento do
representamen.”[10]
Se
não há no homem nenhum poder intuitivo
e se a mente não é, em absoluto, independente
ou introspectiva e se a natureza do pensamento é
relacional, a tarefa do pragmatismo é estabelecer
a natureza dessa relação, isto é,
determinar o significado dos signos. Desta maneira
entende-se a afirmação de Peirce, quando
diz:
“A
lógica, em sentido geral, é (...)
apenas outra determinação da semiótica,
a quase necessária ou formal doutrina dos
signos”.[11]
A
partir do caráter triádico do signo,
Peirce divide a semiótica em três ramos:
o da gramática especulativa segundo
a denominação de Duns Scotus ou da gramática
pura, segundo Peirce, e que tem como objetivo
“determinar o que deve ser verdadeiro a propósito
do representamen utilizado por toda inteligência
científica para que possam incorporar um significado”;
o da lógica propriamente dita, isto é,
da “ciência formal das condições
de verdade das representações”;
o da retórica pura, cujo objetivo
é “determinar as leis em obediência
às quais, em toda inteligência científica,
um signo dá surgimento a outro e, especialmente,
um pensamento provoca outro”.[12]
Os
signos podem classificar-se, se considerados em si
mesmos, em quali-signo, sin-signo e legi-signo,
se considerados em sua relação com o
objeto, em ícone, indicador e símbolo
e, se considerados em sua relação com
o interpretante, em rema, dicisigno
ou dicente e argumento, e de suas
combinações possíveis resulta
o estabelecimento das 10 classes de signos que Peirce
distingue.[13]
2.
A medida da importância dos estudos de Peirce
sobre o signo, não fosse a seriedade e o zelo
com que ele os conduziu no sentido de um esclarecimento
cada vez maior do método pragmático,
poderia ser avaliada pelas influências que tais
escritos têm exercido sobre o pensamento científico,
em geral, e, em particular, sobre as ciências
humanas.
Com
efeito, se atentarmos para a importância que
as distinções de Peirce têm assumido
no campo da lingüística, nos trabalhos,
por exemplo, de um Jakobson, ou para a reflexão
epistemológica de um Granger acerca das ciências
humanas, tal medida se configurará ainda mais
precisa.
Tomemos,
para que tal afirmação adquira toda
sua realidade, e a título de exemplo, o importante
artigo de Granger “Objet, structures et significations”.[14]
Reservando
o termo “objeto” para designar aquilo
que é visado e conhecido pelas ciências,
o termo “estrutura” para designar o conjunto
de relações abstratas que definem o
objeto enquanto tal, Granger procura mostrar, dentro
de sua perspectiva, que o único caminho viável
que as ciências podem seguir, se quiserem desenvolver-se
como ciência, é o dessa prática.
Em outras palavras, a ciência deve, para se
constituir como tal, recortar sobre a experiência
um conjunto de relações abstratas que
constituem o que ele chama “estrutura”,
ou ainda, que são o resultado de uma prática
específica definida em termos de estruturação
da experiência[15]. A forma definida no interior
dessas relações constitui o objeto da
ciência. [16]
No
entanto, a estruturação não recobre
jamais inteiramente a totalidade da experiência.
Há sempre um resíduo, uma indefinição
a constituir-se como desvio e cuja natureza é
móvel: quanto mais a ciência constitui
a experiência em objeto de estrutura, tanto
maior é o espectro referencial para a constituição
de novos desvios, de modo que a prática científica
apresenta-se não como um definitivo, mas como
um provisório, necessário contudo para
que o conhecimento se atualize.
É
esta complementariedade que se define em relação
à estrutura que Granger chama de significação.[17]
Contestando
a homogeneidade entre a objetivação
científica e a da percepção nos
termos afirmativos em que Kant responde a esse problema,
Granger não pode, entretanto, deixar de enfrentar
um problema análogo que se instaura no interior
de sua perspectiva, isto é, o problema da hemogeneidade
estrutural e funcional das línguas naturais
e das “línguas” científicas.
Podemos,
nesse momento, não fosse toda a atividade do
epistemólogo francês, amplamente preocupado
com os problemas de linguagem, ampliar a visão
da importância dos estudos de Peirce sobre o
signo, quer para uma epistemologia que não
pode prescindir da teoria da linguagem, quer para
a própria lingüística, no sentido
da constituição de uma tal teoria.
É
exatamente no sentido de esclarecer a noção
de significação que Granger vai recorrer
ao esquema de funcionamento do signo, lingüístico
ou não, tal como ele aparece em Peirce.
Este
define o signo como sendo “uma coisa ligada
sob um certo aspecto a um segundo signo,
seu “objeto”, de tal maneira que ele põe
em relação uma terceira coisa, seu “interpretante”,
com este mesmo objeto, e isto de modo a pôr
em relação uma quarta coisa
com este objeto, e assim por diante ad infinitum...”
[19]
A
imagem gráfica quer Granger apresenta para
tal funcionamento é a representada pelo desenho:
[20]
O
fato de que o objeto do signo seja ele mesmo um signo
significa, segundo Granger, que o signo não
remete a uma coisa isolada mas a uma estrutura simbólica
da qual ele mesmo é um elemento.
Neste
caso, a teoria de Peirce antecipa o estruturalismo
dos lingüistas, na medida em que, conforme observa
Granger, “o esquema puramente designativo não
é, com efeito, senão um caso-limite
fictício; o significante remete sempre a um
objeto designado em relação
a outros objetos e estas relações o
situam necessariamente ao nível de conceito”.
É
a partir da doutrina de Peirce sobre os signos que
Granger irá não apenas precisar a distinção
entre estrutura e significação, como
também situar melhor o problema da homogeneidade
entre a língua científica e a língua
natural, situando as significações ao
nível dos interpretantes e a estrutura ao nível
das relações signo/objeto.
A
“língua científica” se definirá
pelo escamoteamento dos interpretantes, no interior
da estrutura, enquanto que a língua natural
o fará na integridade complexa da relação
sígnica. Lingüisticamente falando, tal
distinção manifesta-se, em seu estado
puro, pela ausência, no caso de uma linguagem
formalizada, de elementos lingüísticos
embraiados na experiência - os shifters, de
que nos fala Jakobson -[21] enquanto que tais elementos
constituem propriedade fundamental da língua
natural, concebida, como o faz Granger, essencialmente
como instrumento de comunicação, cujo
conteúdo é emprestado ao que ele chama
de experiência.[22]
Compreende-se,
desta forma, que o problema da homogeneidade da língua
natural e da língua científica é
fundamental para o pensamento grangeriano tanto quanto
para o de Peirce. Com efeito, se, como vimos, é
no interior das relações sígnicas
que o pensamento pode ser apreendido, só a
especificidade de tal funcionamento nos autoriza a
pensar a ciência como uma prática cuja
natureza é recortada no interior de um universo,
que não é outro senão o universo
do discurso.
A
noção de significação,
que recobre o residual da prática científica;
introduz-se, como diz Granger [23], na utilização
de todo sistema simbólico, e como “não
importa que conjunto de fatos humanos se caracteriza
por um aspecto simbólico”, isto é,
remete, de um lado, à organização
estrutural a descobrir - e a uma seqüência
aberta de interpretantes, de outro, a constituição
de uma ciência não pode prescindir de
uma teoria elaborada do signo e, neste aspecto, os
trabalhos de Peirce revelam-se essenciais.
No
que concerne à lingüística, a contribuição
de Peirce é, dissemos, de primeira ordem.
(continua) |