Maíra
Darcy Ribeiro
Editora Record
1996
434 páginas
Por
Daniel Chiozzini
A
discussão sobre os conceitos de integração
e interação é sempre oportuna
quando se trata de analisar o processo ocorrido quando dois
universos, sociedades ou até mesmo conjuntos de idéias
entram em contato. O debate sociológico é
de longa data, suficiente para gerar um verbete para cada
um dos conceitos nos dicionários destinados ao público
amplo. Integração ocorre quando dois
ou mais entram em contato e perde-se a especificidade de
cada um deles: "tornar-se parte integrante, incorporar-se"
(Aurélio), ou, especificamente no âmbito
da sociologia, "unificação social, processo
que garante inteireza de um grupo social ou instituição"
(Caldas Aulete). Já a interação
ocorre quando duas partes entram em contato, mas a especificidade
de cada uma delas é mantida. O caráter hierárquico
de uma sobre a outra desaparece, ou pelo menos é
atenuado, culminando com a seguinte definição:
"influência social recíproca" (Caldas
Aulete) ou "ação que se exerce mutuamente
entre duas ou mais coisas" (Aurélio).
Uma
das facetas do educador, antropólogo e político
Darcy Ribeiro se pautou pela busca da compreensão
do choque (ou integração) entre o universo
do branco e o do índio, além de uma militância
ostensiva na busca da transformação do Brasil
em um país mais justo e, nas suas palavras, como
protagonista de um "desenvolvimento autônomo".
O primeiro romance escrito pelo autor, Maíra,
é, com certeza, um marco nessa batalha. Publicado
pela primeira vez em 1976, a obra teve 48 edições
em oito línguas. Ganhou, em 1996, uma edição
comemorativa, com resenhas e críticas de Antônio
Cândido, Alfredo Bosi, Moacir Werneck de Castro e
Antonio Houaiss, entre outros. A obra já foi adaptada
para o teatro e, pouco antes da sua morte, em 1997, Ribeiro
anunciou um contrato para que ela vire um filme, a exemplo
de outro texto, intitulado “Uirá vai ao encontro
de Maíra. As experiências de um índio
urubu-kaapor que saiu a procura de Deus". Sobre a possibilidade
do filme Maíra, declarou: “Quero ver
meus personagens encarnados em bons artistas e, mais ainda,
os deuses Maíra e Micura mostrando ao grande público
o fundo do pensamento indígena e sua cosmogonia,
totalmente oposta à cristã, em que o gozo
não é pecado, mas uma dádiva dos deuses”.
Publicado
entre seus clássicos da etnologia e da antropologia
da civilização, a obra é bastante
oportuna para entender o conflito de seres que se separam
das suas raízes culturais e buscam recuperar
sua identidade. O dois personagens principais –
o índio Avá e a jovem loura Alma –
por vezes se perdem na busca de uma integração
sem conflitos, enveredando pelo caminho da auto-destruição.
Avá saiu de sua aldeia ainda menino, para se
tornar sacerdote cristão e “aprender com
os padres a sabedoria dos caraíbas”. Depois
de ir até Roma, ele volta para sua tribo como
se tivesse “perdido a alma, roubada pelos curupiras
e vivido por anos a fio como bicho entre os bichos”.
Seu drama instiga o leitor na sua volta: “Tudo
que tenho são duas mãos inábeis
e cabeça cheia de ladainhas. E este coração
aflito que me sai pela boca”.
Em
alguns momentos, Darcy Ribeiro nitidamente se une ao
angustiado índio Mairum, que vive extirpado de
suas tradições, e constrói com
o leitor um coro de indignação: "Este
é o único mandato de Deus que me comove
todo: o de que cada povo permaneça ele mesmo,
com a cara que Ele lhe deu, custe o que custar. Nosso
dever, nossa sina, não sei, é resistir,
como resistem os judeus, os ciganos, os bascos e tantos
mais. Todos inviáveis, mas presentes" (p.
33).
Renomeado
com o nome cristão Isaías (o profeta bíblico
que ficou conhecido como "aquele que clama no deserto"),
o personagem Avá também é um dos porta-vozes
do discurso veemente e indignado que perpassa toda a obra,
escrita em tempos de censura e perseguição.
Nos tempos em que a ditadura assolava o interior do país
em busca de "integrar" o índio à
sociedade e o próprio Darcy Ribeiro se encontrava
no exílio, a busca persistente da resistência
em meio ao caos é claramente perceptível ao
leitor. Em uma entrevista, pouco antes de morrer, ele declarou
que, quando escreveu Maíra, no Peru, não
se sentia exilado, porque o trabalho de escrever devolvia
o convívio entre os índios Urubus-Kaapor e
Kadiwéus, ocorridos principalmente na década
de 50.
O
livro é também intercalado por relatos
detalhados da natureza, cenário em que ocorre
boa parte da trama. Pássaros, rios e caçadas,
o cheiro da morte e dos rituais fúnebres, o sexo,
as festas e as lutas, tudo aparece ardente na narrativa,
só contida pelo lamento da perda das tradições
que o antropólogo insistiu, até o fim
da vida, em reconhecer e valorizar como suas também.
Deste
modo, a obra, mesmo não sendo um dos clássicos
analíticos de Darcy Ribeiro, coleciona elogios
entre grandes pensadores, como Alceu Amoroso Lima e
Celso Furtado. Furtado chegou inclusive a citá-la
em seu discurso na Associação Brasileira
de Letras, em 1997, como uma combinação
de recursos da linguagem literária e filosófica,
aventura conseguida apenas por Platão, em Diálogos,
e no teatro de Sartre.
O
resultado é a partilha com o leitor do sistema
de valores de uma cultura indígena tão
rica, oprimida, e contraditória com os valores
hegemônicos da nossa sociedade. Uma leitura bastante
recomendável àqueles que visam à
integração do país a uma lógica
de crescimento econômico.
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