Socioambientalismo
e novos direitos
Juliana Santilli
Realização: Instituto Internacional de Educação
do Brasil (IEB) e Instituto Socioambiental (ISA)
São Paulo: Peirópolis, 2005
Por
Susana Dias
Os
povos tradicionais, indígenas e quilombolas produzem
conhecimentos e inovações nas artes, literatura
e ciências. Criando desde desenhos, danças,
lendas, músicas e calendários, até
técnicas de manejo dos recursos naturais, de
caça e pesca, de domesticação de
animais e melhoramento vegetal, bem como descobrindo
e utilizando as propriedades medicinais e alimentícias
das espécies existentes nas regiões onde
vivem. Esses conhecimentos, bens intangíveis,
têm ganhado cada vez mais importância nas
sociedades industriais, que vêem neles um amplo
potencial de exploração econômica,
especialmente na área de biotecnologia, mas que
não reconhecem os direitos associados desses
povos. Existem casos emblemáticos de apropriação
privada desses conhecimentos gerados coletivamente,
como o patenteamento da ayahuasca, ou cipó
da alma, planta amplamente utilizada em rituais, cerimônias
religiosas e no tratamento de enfermidades por comunidades
indígenas.
Como
assegurar a proteção dos conhecimentos,
inovações, práticas de povos indígenas,
quilombolas e populações tradicionais
associadas à biodiversidade? Essa é uma
das questões que tem desafiado as ciências
jurídicas e que orienta as análises que
Juliana Santilli faz em Socioambientalismo e novos
direitos.
O
livro é resultado da pesquisa de mestrado de
Santilli, defendida na Universidade de Brasília
(UnB), e de sua atuação como promotora
de justiça do Ministério Público
do Distrito Federal, bem como no Instituto Socioambiental
(ISA) - que está completando dez anos de defesa
dos direitos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio
cultural e aos direitos humanos e dos povos - e no Instituto
Internacional de Educação do Brasil (IEB).
Partindo
do pressuposto de que o movimento socioambientalista
definiu conceitos e valores que contagiaram o sistema
jurídico brasileiro, Santilli mostra como essa
influência pode ser sentida tanto na Constituição
brasileira - no que se refere à cultura, ao meio
ambiente, aos povos indígenas, quilombolas, populações
tradicionais, e à função socioambiental
da propriedade - quanto na legislação
do Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza (Snuc), com o surgimento de “novos
direitos socioambientais”. Discute, ainda, o acesso
aos recursos genéticos em territórios
ocupados por tais populações e estuda
o delineamento de um regime jurídico sui
generis de proteção a tais conhecimentos.
Por fim, destaca como os “novos direitos socioambientais”
rompem com os paradigmas jurídicos que “são
marcados pelo excessivo apego ao formalismo, pela falsa
neutralidade política e científica e pela
excessiva ênfase nos direitos individuais de conteúdo
patrimonial e contratualista”.
A
proteção constitucional aos povos indígenas
e quilombolas, na análise de Santilli, teve uma
forte influência do multiculturalismo e do humanismo,
rompendo com o modelo jurídico assimilacionista
e homogeneizador. Nessa concepção, a proteção
não se restringe às manifestações
culturais desses povos, mas busca assegurar-lhes condições
de sobrevivência física e cultural, dando
garantias aos seus territórios, recursos naturais
e conhecimentos. Ganham força na Constituição
de 1988 as noções de titularidade coletiva
de direitos, de uso e posse compartilhadas de recursos
naturais e territórios, e de respeito às
diferenças culturais. Porém, esses direitos
são garantidos apenas para os povos indígenas
e quilombolas, excluindo as comunidades locais, cujos
territórios são considerados bens da União.
Isso quer dizer que é deles, indígenas
e quilombolas, o direito de usufruto exclusivo dos recursos
naturais. Por isso, o acesso aos recursos genéticos
desses territórios depende do “consentimento
prévio informado” deles e da “repartição
justa de benefícios”.
É
a Medida
Provisória (MP) 2.186-16/2001 que, atualmente,
regula o acesso e utilização dos recursos
biológicos e genéticos e dos conhecimentos
tradicionais associados, estabelecendo exigências
legais diferentes para ambos. A MP prevê a realização
de um contrato de utilização do patrimônio
genético e de repartição de benefícios,
tanto em termos de lucros quanto de transferência
de tecnologia. Santili critica a falta de precisão
da MP que exige apenas a “anuência prévia”
das comunidades para autorização de acesso
aos recursos genéticos e envio de remessa: “Mais
do que serem consultadas, as comunidades locais, quilombolas
e indígenas deveriam dar o seu consentimento
para qualquer atividade de coleta de material biológico/genético
e participar dos contratos de repartição
de benefícios”, diz.
O
consentimento informado das populações
e a repartição justa dos benefícios,
resultantes da exploração da biodiversidade
e dos conhecimentos tradicionais associados, são
dois mecanismos previstos na CDB que almejam não
apenas assegurar a proteção a esses povos,
mas também, minimizar o desequilíbrio
de forças entre os países que detêm
o capital e a tecnologia necessários à
exploração da biodiversidade, e os que
detêm os recursos naturais e conhecimentos associados.
Um dos problemas ressaltados pela promotora é
a relação entre os princípios da
CDB, que dão garantias às populações
tradicionais, indígenas e quilombolas, e o Acordo
sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados com o Comércio – o chamado
Acordo Trips - que rege os direitos de propriedade intelectual
dos 146 países pertences a Organização
Mundial do Comércio (OMC).
O
Acordo Trips não reconhece as garantias da CDB e as
iniciativas para torná-los compatíveis ainda
são tímidas. Um dos grandes desafios que as
ciências jurídicas enfrentam é a compatibilização
dos dois e a elaboração de um sistema de proteção
que dê garantias efetivas aos povos indígenas,
quilombolas e comunidades tradicionais. Os conhecimentos desses
povos obedecem a lógicas diferentes dos conhecimentos
produzidos pelas ciências e, por isso, exigem regimes
jurídicos distintos. O direito de propriedade intelectual,
principalmente as patentes, foram concebidos para proteger
inovações desenvolvidas pela ciência e
para atender às necessidades do mercado, permitindo
a apropriação privada de produtos e processos
gerados de forma coletiva por um certo período de tempo.
Já os conhecimentos tradicionais são produzidos
coletivamente e possuem características de difusão,
acesso e recriação que, na opinião de
Santilli, não permitem seu enquadramento no sistema
de patentes.
Santilli
sugere alguns pilares para um regime jurídico
sui generis de garantia dos direitos desses
povos, entre eles: o reconhecimento da titularidade
coletiva de seus conhecimentos, evitando a exclusão
de uma ou mais comunidades detentoras dos saberes em
questão, e possíveis rivalidades entre
elas; o reconhecimento dos sistemas de representação
e legitimidade dos povos, por meio de um pluralismo
jurídico; uma definição mais clara
de população tradicional, que ainda é
polêmica e deixa vulneráveis essas comunidades;
o estabelecimento do consentimento informado processual
como procedimento obrigatório para o acesso,
uso e patenteamento da biodiversidade e conhecimento
associado; e, finalmente, a garantia de que os direitos
de propriedade intelectual não se sobreponham
aos princípios e objetivos da CDB.
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