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Bioética?
William Saad Hossne*

Dos neologismos nascidos nas últimas 3 décadas, dois deles, em particular, vêm se tornando lugar comum: Globalização e Bioética. Ambos conquistaram os meios de comunicação, os ambientes acadêmicos, políticos e sociais.

Recentemente, com a perspicácia própria de escritor, Ubaldo Ribeiro, quando perguntado por jornalista, disse não saber definir o que é globalização e achava que ninguém, honestamente, sabia.

Com a palavra Bioética, algo semelhante, mas ao mesmo tempo diferente vem ocorrendo.

Sabemos como nasceu e conhecemos seu significado, no momento do parto.

No início da década de 70, o oncologista Potter juntou Bio (vida) com Ética, para alertar os pesquisadores, em particular, os da área biomédica, quanto ao eventual uso eticamente inadequado dos avanços da biologia molecular, e em conseqüência, da biotecnologia (outro neologismo).

Essa é a certidão de nascimento e o significado inicial da Bioética.

À época, isso fazia sentido. Receava-se (como aliás se receia, com razão) o aparecimento e ou desenvolvimento de uma "Bomba Molecular".

Desde então, tanto se tem falado em Bioética que se corre seriamente o risco de se estar falando de coisas semelhantes (ou até mesmo diferentes) mas não necessariamente iguais. "Bioeticistas", autoproclamados como tal, apresentam a Bioética como se nunca tivesse existido a palavra (e o conceito) ética. Parece que a ética nasceu há 30 anos, com a palavra Bioética; nova panacéia, novo "rótulo moderno" que serve para reivindicar o que quer que seja, para instrumentalizar ideologias dos mais variados naipes, para "tudo explicar" e tudo justificar ou impedir; um neologismo com sabor de grande descoberta conceitual? Enfim, um significado que confere sabedoria e seriedade a quem o emprega?

Pode, à primeira vista parecer estranho que fundador da Sociedade Brasileira de Bioética faça considerações aparentemente descabidas sobre Bioética.

É exatamente o contrário - é para defender e assegurar o devido lugar de destaque à Bioética. Ela é tão importante que não se pode correr o risco de torná-la apenas um "rótulo", nem modernismo ou melhor um "vedetismo" inconseqüente.

Por essa razão, rogo ao prezado leitor, que se este artigo merecer qualquer referência, não a faça fragmentariamente.

Mas, afinal, o que é Bioética? Como se pode defini-la?

Não importa definir. Aliás, a Enciclopédia de Bioética (Reich) com 2000 páginas dedica ao Verbete Bioética 13 páginas para concluir, em suma, que não dá para definir Bioética. O nosso Aurélio registra o verbete em sua última edição (1999): "estudo dos problemas éticos suscitados pelas pesquisas biológicas e pelas suas aplicações por pesquisadores, médicos, etc".

O que importa, isso sim, é caracterizar e salientar algumas das conseqüências trazidas pela Bioética e a ela inerentes, e o seu profundo significado.

A Bioética é, na essência e no fundo, a ética nas (e das) ciências da vida, da saúde e do meio ambiente.

Mas esse conceito não é suficiente para caracterizar a Bioética. Ele implica, obrigatoriamente em diversos desdobramentos, todos eles imprescindíveis para a compreensão, para a prática e para a caracterização da Bioética.

Os principais:

  • A Bioética não é mais apenas a análise e a discussão dos dilemas éticos, (feita por médicos) relacionados aos avanços da bio medicina. Ela abrange os dilemas de avanços, sim, e também do "cotidiano" (expressão feliz criada por Berlinguer) das ciências da vida, da saúde e do meio ambiente.
  • A Bioética, enquanto ética, se preocupa com a reflexão crítica sobre valores; um juízo sobre valores diante dos dilemas. Nesse sentido, o advento da Bioética muito contribuiu para estabelecer a distinção entre moral e ética. A moral diz respeito a valores consagrados pelos usos e costumes de uma determinada sociedade. Daí a origem da palavra moral. Valores morais são, pois, valores eleitos pela sociedade e que cada membro a ela pertencente recebe (digamos passivamente) e os respeita. Ao passo que a ética é um juízo de valores -é um processo ativo que vem de "dentro de cada um de nós" para fora, ao contrário de valores morais que vêm de "fora para dentro" de cada um. A ética exige um juízo, um julgamento, em suma, uma opção diante dos dilemas. Nesse processo de reflexão crítica, cada um de nós vai por em jogo seu patrimônio genético, sua racionalidade, suas emoções e, também, os valores morais.
  • A Bioética é ética; nesse sentido, não se pode dela esperar uma padronização de valores - ela exige uma reflexão sobre os mesmos, e como dito, implica opção. Ora, opção implica liberdade. Não há Bioética sem liberdade. Liberdade para quê? Para se poder fazer opção, por mais "angustiante" que possa ser.

O exercício da Bioética exige pois liberdade e opção. E esse exercício deve ser realizado sem coação, sem coerção e sem preconceito. A Bioética exige também humildade para se respeitar a divergência, e grandeza para reformulação, quando ocorre a demonstração de ter sido equivocada a opção.

Condição sine qua non exigida pela Bioética, enquanto tal, diz respeito à visão pluralista e interdisciplinar dos dilemas éticos nas ciências da vida, da saúde e do meio ambiente. Em outras palavras, a análise do dilema pressupõe sempre, em Bioética, não apenas a participação multi mas interdisciplinar (isto é, incorporação em cada disciplina a visão das outras).

Um problema de saúde, na prática Bioética, exige que o mesmo não seja avaliado apenas pelas profissionais de saúde, mas também por diversos outros participantes, inclusive os próprios pacientes envolvidos.

Compreende-se assim a improcedência da afirmativa de que a Bioética é a nova ética médica, por exemplo. É ao contrário; a ética médica precisa ser avaliada dentro da Bioética.

Diante do exposto, há de se convir que a Bioética com tais pressupostos e tais características, oferece excelentes condições para o desenvolvimento da própria cidadania e da "evolução" de cada um de seus participantes. Um dos grandes méritos da Bioética é o de levar a ética à sociedade e trazer a sociedade para a ética, criando os fundamentos éticos do controle social na ciências da vida.

Apenas para ilustrar, aí está o Projeto Genoma Humano suscitando diversas questões de natureza ética que não podem ser analisadas apenas por médicos, por biólogos, por economistas, por políticos, etc. O enfoque há que ser o da Bioética, envolvendo os diversos segmentos da sociedade.

É digno de destaque o fato de que a Bioética nessa sua trajetória, buscando seu caminho, foi também abrindo novas vias, novos horizontes, novas perspectivas em diversas outras disciplinas (principalmente naquelas que atuam na interdisciplinaridade da Bioética). A própria ética das corporações (idealmente não corporativista) passa a ser reavaliada não só de "dentro para fora", mas também de fora para dentro. A onda da Bioética vem atingindo diversos setores relacionados à atividade humana, aí incluída também a esfera cultural.

A meu ver, excelente peça, altamente demonstrativa do que vem a ser Bioética, é a Resolução 196/96-MS, referente à Pesquisa envolvendo seres humanos, no Brasil. A peça é toda ela de Bioética, desde sua concepção, sua elaboração, suas disposições e suas práticas e, por isso mesmo, se reveste de pioneirismo nesse campo.

Bioética? Bioética, sim.

*Médico, professor titular da Faculdade de Medicina da Unesp/Botucatu.

   
         
     
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Atualizado em 06/07/00

   
     

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