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Arte do negro no Brasil: conscientização e valorização de um grupo étnico
Emanoel Araújo

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Arte do negro no Brasil: conscientização e valorização de um grupo étnico


Foto: Maria Ignez M. Franco

O artista plástico e ex-diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo, vem se dedicando há mais de 20 anos à recuperação da arte do negro no Brasil. Para ele, a recuperação não apenas da arte, mas da história e da cultura dos negros no Brasil, é fundamental para uma reelaboração da auto-estima desse grupo e para a construção de sua identidade sobre moldes diferentes dos impostos por uma sociedade que o escravizou. Emanoel Araújo, em entrevista concedida à revista ComCiência, argumentou sobre essa necessidade e afirmou que calcar a contribuição afro-brasileira na cultura, nos estereótipos da "mulata" e do "jogador de futebol" é uma opção marcada pela forma mais perigosa de preconceito.

ComCiência - Qual a relação que o senhor vê entre a arte do negro ou, que recupera raízes dos negros, e a construção da identidade desse grupo?
Emanoel Araújo -
A relação entre arte e identidade nesse caso é muito importante, pois através dela pode-se determinar a valorização de certos grupos étnicos. A contribuição do negro na cultura brasileira, durante os séculos XVII, XVIII e XIX, esteve ligada a padrões eurocêntricos. É claro que existiram certos artistas, ou certas manifestações artísticas muito características de afro-brasileiros, como por exemplo, os ex-votos do nordeste. Certos objetos desse tipo são anônimos, saem, por assim dizer, de uma consciência coletiva, de um inconsciente coletivo. Portanto, existiram escultores populares, mas na erudição, isso só veio a tona no século XX, quando aparecem alguns artistas com uma intenção mais explícita de criar uma tipo de arte cuja linguagem e dogma não estivessem mais ligados a essa arte eurocêntrica, e sim a uma arte africana, seja na sua inspiração, ou através de uma ligação ancestral. Aliás, essa ligação deveria estar em todo artista negro da diáspora. A valorização dessa arte não apenas colabora na construção da identidade do negro e da memória de certos artistas, como também para o resgate da auto-estima desse grupo.


Ex-Votos - Século XX
Créditos: Reprodução

ComCiência - Como foi realizada a pesquisa para a atual exposição Negras memórias, memórias de negros de sua curadoria?
Araújo -
Essa pesquisa vem se desenvolvendo ao longo de alguns anos, porque Negras Memórias, Memórias de Negros é resultado de várias outras exposições, por exemplo, da Mão Afro-Brasileira, de 1987, da exposição Bahia África Bahia, Vozes da Diáspora, Arte e religiosidade Afro-brasileira e herdeiros da noite. Essas são exposições que se tocam e vão construindo esse filão pelo qual tenho trabalhado nesses últimos anos. A pesquisa vem sendo desenvolvida desde 1981 e tem ajudado a recuperar a memória e resgatar a história do negro no Brasil. Ela tem servido como padrão para o orgulho de nossos heróis, para marcar seu lugar na história, destacando cientistas, engenheiros, poetas, escritores, escultores, historiadores, e todo um universo de pessoas que foram importantes para reafirmar a contribuição do negro na identidade nacional. Isso vale para Teodoro Sampaio, Luis Gama, Cruz e Souza, Paula Brito, Mestre Valentim, Luiz Anselmo, Juliano Moreira, enfim, artistas e personalidades que foram importantes para a construção dessa identidade e da cultura negra no Brasil. Atualmente, a exposição está ocorrendo no Segundo Festival de Arte Negra em Belo Horizonte (MG), um evento fundamental para essa reflexão sobre a cultura brasileira, sobre essas contribuições, para questionar de que maneira essa inclusão se dá ou não se dá, de que maneira esses encontros são fundamentais para se discutir a cultura, ou melhor, a inserção do negro na cultura brasileira.

ComCiência - Falando sobre a necessidade de inclusão do negro, qual sua opinião sobre o sistema de cotas? O senhor acredita que essa seja uma forma válida de inclusão?
Araújo -
Toda ação afirmativa deveria ser uma necessidade da sociedade como um todo, afinal, só se pode melhorar se todos estiverem incluídos dentro dessa sociedade, e quando é possível educar, fazer com que as pessoas possam alçar um nível social melhor, tirá-las do gueto, da clandestinidade, da obscuridade. Se as cotas são um meio pelo qual uma pessoa pode alcançar a universidade, mesmo com as deficiências de formação e educação no país, eu acho que é válida. Deveria haver um esforço da sociedade como um todo para que isso acontecesse.

Com Ciência - Qual a sua avaliação da trajetória e do impacto das exposições no Brasil que recuperam as raízes negras?
Araújo -
Eu encaro esses trabalhos como um esforço consciente para que a consciência se faça, aconteça, e isso de uma certa forma, tem ocorrido. Muitas das exposições e publicações têm tido uma ressonância até maior fora do Brasil, mas o que ocorre aqui é muito importante porque faz com que pensemos que não estamos falando no deserto. É uma ação que tem progredido. É possível ver isso pelo próprio espaço que as posições têm ocupado, pela mídia que se volta às vezes para refletir sobre o assunto, e pelo público dessas exposições. Por exemplo, a exposição Negras Memórias, Memórias de Negros teve, em São Paulo, um público de 90 mil pessoas, é um público muito diferente daquele de 1987, do Museu de Arte Moderna de São Paulo, que teve um público quase insignificante. Portanto, 20 anos depois, algo ocorreu, uma modificação da consciência das pessoas.

ComCiência - A contribuição dos negros na cultura brasileira é bastante associada a visões estereotipadas. Qual sua opinião sobre isso?
Araújo -
Isso é muito complicado no Brasil, que é um país que sempre age por estereótipos. Busco justamente sair disto, dessa coisa estereotipada da mulata, do jogador de futebol. Quando pensamos em Cruz e Souza, em sua poesia, ou quando se reflete sobre a música de alguns importantes músicos como Anacleto de Medeiros, Pixinguinha, Cartola, Machado de Assis e outros, vislumbramos uma imensa riqueza literária e musical, artística e criativa. Então, caímos no estereótipo por opção. Temos inúmeros exemplos importantes a ser seguidos, vistos, examinados, pesquisados, como um editor como Paula Brito, que foi o primeiro editor brasileiro que lançou a obra de Machado de Assis, ambos afro-descendentes. Também na academia ou na pintura do século dezenove, com alguns artistas fundamentais como Estevão Silva, João Timótheo da Costa, Aleijadinho, que foi o maior escultor do século XVIII no Brasil, ou Chagas, na Bahia, ou o pintor Teófilo de Jesus. Então, porque sempre caímos no estereótipo? É uma opção e é a forma mais perigosa e tendenciosa do preconceito. A exposição Negras Memórias, Memórias de Negros busca dissipar, desmanchar essa idéia preconceituosa do estereótipo.


Crianças negras - Obra de Emmanuel Zamor

ComCiência - O que falta para a valorização da cultura negra estender-se para a sociedade como um todo?
Araújo -
Temos que olhar para nós mesmos e pararmos de achar que o outro lado do Atlântico é mais importante. Isso vale não apenas para a cultura afro-brasileira, mas para a cultura brasileira. Essa cultura, que é miscigenada, deve ser valorizada por nós mesmos, aqui dentro. Voltamos à questão da auto-estima. A construção dos personagens e heróis, a identidade do negro foi construída de que maneira? De que maneira o negro se inseriu numa sociedade que lhe rechaçou, explorou, e explora? E de que maneira essa gente que foi escravizada conseguiu contribuir não apenas para a música, mas para a literatura, vocábulos para a língua, hábitos e costumes, para o que existe de africano ou de afro-brasileiro na cultura brasileira? A busca das nossas raízes, não apenas trata da inclusão, mas também trabalha com a auto-estima. Na hora que tivermos dados fundamentais para nossa valorização, a questão do estereótipo se acabará.

ComCiência - O senhor foi convidado pelo ministro da cultura para ser curador da exposição do Brasil na França em 2005. Como está sendo desenvolvido esse projeto?
Araújo -
A França faz, ao longo dos 10 últimos anos, a eleição de alguns países que possuem ligações culturais fortes com o país. O ano de 2005 será o ano do Brasil e o último ano em que esse projeto vai acontecer. É um projeto muito amplo, em que a cultura do Brasil será tema. O projeto é uma ampla exposição, simultânea em vários museus franceses, sobre a invenção do Brasil e estará integrada a outros acontecimentos já existentes na França, como por exemplo, o Festival de Dança de Lion e o Festival de cinema de Cannes. A trajetória da exposição vai desde Catarina Paraguaçu, quando começa o trânsito de pau-brasil para a França, e a presença dela e de Caramuru na Festa de Rouen, na França, até a arte contemporânea, que é a invenção do futuro. A exposição também contará com o barroco do século XVIII, não o barroco dourado, chamado nacional português, que já esteve na França há dois anos atrás, mas o barroco dos primeiros tempos do Brasil, chamado barroco jesuítico. Com isso será integrado não apenas uma vertente dos jesuítas, mas dos escultores beneditinos, que são Frei Agostinho da Piedade e Frei Agostinho de Jesus, em contrapondo aos jesuítas das missões da Bahia, e das missões do Pará. A exposição abordará também a missão francesa do século XIX, porque a exposição visa também a relação entre o Brasil e a França. Pintores românticos da França, que estiveram aqui na Academia da Missão Francesa. Há uma outra vertente ainda que trata dos franceses na época que estiveram na Universidade de São Paulo, na década de 40, como Roger Bastide e Levi Strauss. É um Brasil visto através do olhar dos franceses, assim como haverá a visão de fotógrafos franceses como Pierre Verger e Marcel Gautherot, sobre o Brasil. Os modernistas na França, Vicente do Rego Monteiro, Tarsila do Amaral, Cícero Dias e outros, também serão parte da exposição. Haverá uma alusão a esses artistas.

Atualizado em 10/11/03

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