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Justiça penal é mais severa com os criminosos negros
Sérgio Adorno

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Emanoel Araújo

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Justiça penal é mais severa com os criminosos negros


Foto: Neldo Cantanti - Ascom - Unicamp

O Brasil vive um cenário de profunda desigualdade social e econômica, em que grande parte de sua população é excluída dos direitos que lhes são garantidos constitucionalmente, segundo um processo marcado pelo preconceito e pela estigmatização de classes e etnias. Para o sociólogo Sérgio Adorno, da USP, dentro desse contexto, os negros são preteridos em praticamente todas as esferas de acesso ao bem-estar e, em especial, na justiça. Durante o 27º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizado no mês de outubro, em Caxambu (MG), Adorno concedeu esta entrevista para a ComCiência, explorando as relações entre justiça, igualdade jurídica e juízo, sob o ponto de vista da influência do racismo e dos preconceitos raciais na distribuição da justiça penal. Para ele, o crime não é um privilégio da população negra, mas a punição legal parece ser.

ComCiência - Por que grande parte da população brasileira é excluída de direitos garantidos constitucionalmente?
Sérgio Adorno -
Ainda somos uma sociedade profundamente desigual e a desigualdade não é apenas uma desigualdade de oportunidades mas é, sobretudo, uma desigualdade de direitos e de acesso às instituições promotoras de bem-estar e de distribuição da justiça. Acho que isso, de certo modo, não é um problema novo e, evidentemente, tem raízes históricas que vêm perdurando ao longo do tempo.

ComCiência - A cor é um elemento fundamental para a compreensão desse processo de exclusão?
Adorno -
As raízes da questão da cor estão, sem dúvida alguma, ligadas à escravidão e ao fato de que, após o fim da escravidão, não houve uma luta social, uma luta política para a reversão desse quadro. Não existiram lutas sociais no sentido de que os negros ex-escravos e filhos de ex-escravos, de alguma maneira, fossem incorporados ao mercado de trabalho, que fosse criada uma base para a sua escolarização etc. Acho que isso ocorreu no final do século XIX e, ao longo de todo o século XX, isso permaneceu como um grande desafio para toda a sociedade brasileira. De modo geral, os negros são preteridos em praticamente todas as esferas de acesso ao bem-estar, de promoção do bem-estar, de proteção dos direitos. Essa desigualdade não é apenas uma desigualdade sócio-econômica, é uma desigualdade racial. Ela tem fortes componentes que realmente alteram oportunidades de vida e de todos terem acesso aos direitos mínimos, inclusive à vida.

"Há uma idéia de que o crime está necessariamente ligado à pobreza e que a pobreza está necessariamente ligada com a cor. Nesse caso, a pobreza tem cor: a cor negra"

ComCiência - Como esse tipo de discriminação afeta o modo como a pessoa negra é percebida no sistema de justiça?
Adorno -
De certa maneira, todos aqueles que aparentam ter sinais de pertencimento às classes populares, sobretudo aqueles que se afiguram miseráveis, pobres, que não tenham sinais de pertencimento à ordem social, ao mercado de trabalho, à escola, a uma vida pública, de obediência e de respeitabilidade, de um modo geral, constituem grupos sociais que são discriminados do ponto de vista da lei e da ordem. Entre esses, os negros parecem mais preteridos do que os outros. Há um foco que vê grupos de cidadãos provenientes das classes populares, sobretudo negros, como potencialmente perigosos, como se associasse imediatamente a idéia de que o crime está necessariamente ligado à pobreza e que a pobreza está necessariamente ligada com a cor. Nesse caso, a pobreza tem cor: a cor negra.

ComCiência - Isso é um fenômeno tipicamente brasileiro?
Adorno -
Não. Acho que em todas as sociedades isso ocorre com muita freqüência. Por exemplo, na França, na Inglaterra e sobretudo nos EUA, os negros de origem africana são freqüentemente discriminados. O que me parece diferente é a atitude dos cidadãos e das cidadãs em relação a isso. Nos EUA, hoje, esse tipo de discriminação causa muita indignação. Há o preconceito, mas, de alguma maneira, existe uma indignação. O que me incomoda no Brasil é que esses segmentos indignados são muito pequenos, têm pouco peso para se expressar publicamente e a maioria das pessoas acha, muitas vezes, que isso é normal ou, se não é normal, que um dia vai mudar. Enfim, é como se fosse a ordem natural das coisas.

ComCiência - Como esse preconceito é refletido no funcionamento da justiça?
Adorno -
Quando falamos do racismo nas instituições de controle social, particularmente na polícia e nas instituições de justiça, é preciso levar em consideração que esse fenômeno não é específico dessas instituições, ele é uma expressão daquilo que acontece na sociedade. Você encontra o racismo no trabalho, nos espaços públicos, na escola, em coisas elementares da vida cotidiana. O que acontece é que estamos tratando de uma instituição de controle social, que tende, de alguma maneira, a distorcer a realidade no sentido da polarização entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre quem obedece e quem não obedece. Então, na justiça, a questão racial acaba adquirindo uma visibilidade que não necessariamente aparece tão visível fora dela.

"O racismo, nas instituições de controle social, particularmente na polícia e nas instituições de justiça, é uma expressão daquilo que acontece na sociedade"

ComCiência - Há quanto tempo o senhor lida com essas questões em suas pesquisas?
Adorno -
A questão da distribuição das sentenças comparativamente a brancos e negros, ou seja, a punição legal aplicada a brancos e negros, é um tema que me interessou porque, em contatos com o movimento negro e muitas vezes estudando diferentes questões sobre a justiça, eu vi que se tratava de uma área de absoluta evidência de racismo e sobre a qual não existiam estudos nesse sentido. Falava-se que a polícia perseguia mais o negro, que o negro era mais punido etc. Mas o que era isso na verdade? Foi a partir disso, com o apoio da Fundação Ford, que resolvi fazer uma pesquisa tomando processos penais do estado de São Paulo, no início da década de noventa. Assim, comparei rigorosamente a distribuição de sentenças penais para crimes rigorosamente idênticos, dentre os quais figuravam o roubo, o tráfico de drogas, o latrocínio, o tráfico qualificado e o estupro. Eu montei um sistema de controle de maneira que pude dizer que as diferenças de punição para brancos e negros não se deviam às tipificações penais.

ComCiência - Quais foram os resultados dessa comparação?
Adorno -
Ao fazer essa comparação, não pude verificar se, por exemplo, na porta de entrada da justiça, os negros cometem mais crimes do que os brancos. Isso é algo difícil de se fazer e envolveria outro tipo de pesquisa, mas cheguei à conclusão que isso não era muito relevante. Ao fazer essa comparação descobri, primeiro, que os negros eram proporcionalmente mais condenados do que brancos pelo mesmo crime. Não em termos da duração da pena, que não variava muito. Quer dizer, quando eles eram punidos, as sentenças eram muito próximas, não havia variações significativas. Mas, por exemplo, 59,4% dos brancos observados foram condenados e 68,8% dos negros foram condenados. A diferença foi de quase 10%. Outra coisa que eu percebi foi que os negros dependiam muito mais da justiça pública do que os brancos. Os brancos, de um modo geral, tinham mais condições de ter acesso à defesa particular contratada, sendo que os negros, muito pouco. Era uma coisa interessante porque o que chamou atenção foi o fato de que, se eu fosse olhar do ponto de vista sócio-econômico, os brancos e negros que estavam sendo objeto da justiça não eram muito diferentes. De modo geral, os negros tinham uma taxa maior de não ocupados, tinham uma escolaridade um pouco mais baixa, mas nada que dissesse que eu estava lidando com classes sociais, com segmentos de classes, completamente diferentes.

ComCiência - Nesse caso, se o perfil sócio-econômico de brancos e negros era bastante semelhante, o que explica essa diferença de acesso à justiça?
Adorno -
Aqui eu quero fazer uma nota, porque se trata de um assunto polêmico. Não posso dizer que é a qualidade de defesa de um e de outro, não tenho como avaliar isso. Eu só vi, e a tendência era essa, que com um bom advogado particular a tendência era a absolvição. Com um advogado do Estado a tendência maior era a condenação. Eu acho que o problema não é necessariamente a qualidade da advocacia, mas talvez tenha a ver com um caráter mais burocrático dos serviços públicos. Isso me chamou a atenção e era uma coisa que eu gostaria de ter pesquisado mais profundamente. O que me explicava isso era o fato de que era diferente a ligação de brancos e negros com o mundo do direito. Provavelmente, o que ocorre com brancos, é que alguém tem um conhecido que é advogado. Os brancos estavam numa malha de relações de direito que não existia necessariamente para os negros. Os negros dependiam do serviço do Estado, porque eles provavelmente não tinham essas referências no mundo da legalidade. Então, o caráter perverso está aí.

ComCiência - Perverso por quê?
Adorno -
Porque é aí que está o problema do acesso diferencial ao direito. Quer dizer, é fato você ter uma vida na qual, de alguma maneira, a proteção legal é mais presente para um e para outro ela é mais ausente. Ausente não só no sentido de que ela não é freqüente, mas as referências não são aquelas convencionais da lei. Eu acho que isso está mudando, porque hoje você tem mais advogados negros, já existem juízes negros.

ComCiência - De que maneira essa dinâmica de acesso diferencial aos direitos contribui na constituição da população carcerária?
Adorno -
Acho que isso ocorre de uma maneira muito sutil. Eu nunca cheguei a observar se havia hierarquias internas fundadas na cor e na etnia. Não posso dizer nem sim, nem não. Talvez até tivesse algum fundamento, mas não sei dizer. Nas prisões havia manifestações muito sutis por parte dos agentes penitenciários que sugeriam para nós que os negros eram potencialmente perigosos comparativamente aos brancos. É uma cultura que não é uma cultura da prisão, é uma cultura que vem de fora e que na prisão acaba sendo reforçada. Na prisão há uma sensação de que a vida é muito perigosa, de que todo mundo, de alguma maneira, está tentando atacar o outro. É uma vida cheia de tocaias. A vida na prisão é muito precária, tanto que nela o grande aprendizado é montar estratégias subjetivas para sobreviver num ambiente de perigo. O que me parecia, era que a cor, de algum modo, tornava a vida ainda mais perigosa. O negro era aparentemente aquele de quem se suspeitava ataques mais freqüentes, era aquela imagem de ser mais perigoso etc. Nas prisões também havia uma vigilância mais cerrada no sentido de ficar vigiando grupos de negros. Enfim, é um preconceito que vem da sociedade, mas que, pelas condições de controle social, é exacerbado na prisão. A prisão tem essa coisa de caricaturar as perversões da sociedade.

ComCiência - Entender a lógica desse sistema ajuda a desmistificar essa imagem do negro como um delinqüente em potencial?
Adorno -
Pelos estudos que eu fiz e pelo que eu li, não estou convencido de que negro seja potencialmente mais violento do que branco. Isso para mim é um mito construído em cima da idéia de raça. Uma segunda coisa que é fundamental: muitas pessoas falam que basta ir a uma prisão e ver que lá existem muito mais presos negros do que brancos. Quando você faz a comparação com a distribuição da cor e da etnia na população, você vê que proporcionalmente existem mais negros dentro da prisão do que na população. Grosso modo, nas prisões paulistas, era algo mais ou menos assim: 60% brancos e 40% negros. Na população de São Paulo, os negros representam mais ou menos 25% da população. Logo, você tem uma representação da população negra maior dentro da prisão do que fora. O meu argumento é que isso não se deve ao maior potencial criminal, mas à maior criminalização do comportamento delinqüencial de negros comparativamente a brancos. Isso parece muito evidente. Não é um olhar direto que pune os negros, mas sim porque ocorre uma falta de apoio de direitos. No fundo, é conjunto de falta de proteção social e jurídica que torna o indivíduo mais vulnerável à sanção penal. Por não poder se defender melhor, ele não tem como se defender bem. Eu não sei dizer para você se os negros são punidos na medida certa e os brancos são os privilegiados na punição ou se a punição correta seria, por exemplo, de 59% e você tem 10% de negros punidos acima da média. Isso eu não consegui verificar, seria preciso um outro tipo de controle de pesquisa para poder fazer isso. Mas, de qualquer maneira, seja uma coisa ou outra, a idéia é de que a distribuição da justiça é desigual segundo a cor.

"É preciso termos mais operadores negros no direito, para que os operadores brancos sintam-se constrangidos ao aplicarem suas sentenças e para que o olhar étnico também seja considerado na justiça"

ComCiência - O que significa essa distribuição desigual de direitos na justiça?
Adorno -
Isso significa que a tal universalidade dos direitos, inclusive da aplicação da justiça, está comprometida na base. Ora, se a cor é um poderoso instrumento de distribuição de sentenças, algo está errado. Minha pesquisa não permite dizer que isso se deve a um racismo dos operadores da justiça. Na verdade, isso se deve a um conjunto de fatores. Nos processos criminais de negros, por exemplo, foi possível notar que, no fundo, existem processos muito sutis de desqualificação frente aos direitos e isso é uma coisa muito evidente e forte. O problema é esse, como é possível restabelecer esta igualdade na sanção, igualdade na distribuição de lei e ordem? Eu acho que é preciso termos mais operadores negros no direito, para que os operadores brancos sintam-se mais constrangidos ao aplicarem suas sentenças e para que o olhar étnico também seja considerado na justiça. Considerado não para beneficiar alguém, mas para garantir a igualdade e para garantir que a cor não influencie a leitura de algum caso, ou que, de alguma forma, interfira numa decisão judicial.

Atualizado em 10/11/03

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