Entrevistas

É tempo de incentivar a presença das mulheres na ciência
Fanny Tabak

Participação no Genoma garantiu sucesso à pesquisadora
Marie-Anne Van Sluys

Entrevistas anteriores

Participação no Genoma garantiu sucesso à pesquisadora

Marie-Anne Van Sluys, 42 anos, três filhos, professora do Instituto de Biociências e coordenadora do grupo de pesquisas em biologia molecular de plantas no Departamento de Botânica da Universidade de São Paulo (USP), está convencida de que as relações entre as pessoas na área científica são "muito mais definidas pelo nível de formação do indivíduo" do que por questões de gênero. Para ela, o número crescente de mulheres cientistas no Brasil está diretamente ligado ao próprio processo de desenvolvimento da ciência no país, e não há alguma outra razão. Respeitada e reconhecida por seu trabalho no projeto pioneiro da pesquisa genômica nacional, o da bactéria Xylella fastidiosa, causadora da clorose variegada dos citros (CVC), doença das laranjeiras conhecida como "praga do amarelinho", ela participa hoje de outros três projetos genoma, também financiados, como o primeiro, pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). A repercussão nacional e internacional do primeiro projeto genoma brasileiro, iniciado em 1997 e concluído em 2000, entre outras láureas valeu a todos os pesquisadores que dele participaram (192) medalhas do Mérito Científico e Tecnológico concedidas pelo governo do estado de São Paulo. Mas a um seleto grupo de seis cientistas mulheres, entre elas Van Sluys, o sucesso do projeto rendeu também o prêmio "Mulheres do Ano", concedido pela revista Cláudia, da Editora Abril, em 2000. Nesta entrevista, a pesquisadora fala de sua carreira e de sua visão da participação das mulheres na ciência brasileira.

ComCiência - Como a senhora avalia a sua carreira como pesquisadora?
Marie-Anne Van Sluys -
A biologia me instiga uma série de perguntas. Eu tive a oportunidade de fazer uma faculdade e de desenvolver uma série de trabalhos que sempre me estimularam. Sempre fui movida pelas perguntas, e por isto me sinto tão confortável na carreira acadêmica, que é impulsionada pela elaboração de perguntas e pela busca de respostas, sem o quê você fica parado no tempo. Nesse ponto, eu me encontrei muito bem. Por outro lado, essa é uma carreira em que você é avaliado permanentemente, e talvez disso eu não tivesse uma noção clara no momento em que fiz a minha opção. Quando me formei em biologia, isso há 20 anos, os biólogos podiam atuar na área acadêmica, como laboratorista em clínicas, e como professores de primeiro e segundo grau. Na época, optei por iniciar pela pesquisa, mas sempre gostei muito de dar aulas. Queria dar aulas no primeiro e segundo graus, mas é incompatível estar na universidade e dar aulas fora dela, então acabei me dedicando à docência na universidade. Eu me considero uma pessoa bem sortuda nesse aspecto.

ComCiência - Gostaríamos de saber mais detalhes sobre seu trabalho de pesquisa.
Sluys -
Eu atuo na área de biologia molecular de plantas, estudando o controle da expressão gênica de genes de interesse. Os genes de interesse do nosso grupo são aqueles envolvidos no reparo da molécula de DNA ou os envolvidos na mobilização de seqüências, que são os transposons ou retro-transposons, conhecidos como elementos genéticos móveis. Fora isso, nós estamos envolvidos em praticamente todos os projetos Genoma bacterianos e nos de células eucarióticas, no seqüuenciamento de genes expressos de cana-de-açúcar, café e eucalipto, todos financiados pela Fapesp. O projeto Genoma é feito em grupo. São vários grupos que trabalham em conjunto e realizam, em paralelo, o seqüenciamento de vários fragmentos de DNA que serão agrupados usando ferramentas de bioinformática. Isso viabiliza o seqüenciamento de uma seqüência de DNA bastante longa, por exemplo, o genoma completo de um organismo. Dentro do projeto Genoma, nós participamos de todas as fases, desde construir as bibliotecas até o seqüenciamento propriamente dito, passando pela interpretação da seqüência quando ela entra no banco de dados e a formulação das hipóteses. Essas hipóteses situam como aquele organismo lida com o ambiente, quais são as estratégias que ele utiliza e porque um determinado tipo de organismo pode ser patogênico.

ComCiência - Como você chegou a ser pesquisadora desse tema? Qual foi seu ponto de partida?
Sluys -
Nosso grupo está situado dentro do que chamamos de estudos do funcionamento do genoma. Você pode estudar como ele é organizado e como ele funciona, e nosso grupo tem atuado nas duas áreas. Essa área de interesse, para mim, vem desde a graduação, quando eu estudava biologia. O que me fascinava era como a molécula de DNA, que é formada por quatro "letras" (A, C, G, T, ou adenina, citosina, guanina e tinina) , pode ser conservada em organismos que vão de bactérias a seres humanos. E como a transformação dessa informação genética, que está contida no genoma, é passada para RNA, para proteína, e garante as funções da célula. Isso sempre me chamou a atenção. Eu tentei, ao longo da minha formação, aprimorar conhecimentos nessas áreas. Assim, selecionei na minha iniciação científica, ainda na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde fiz minha graduação, estudar mecanismos de reparo de DNA. Depois, quando fui fazer pós-graduação [na Universidade de Paris XI em Orsay, na França], eu queria estudar particularmente as plantas. Foi assim que comecei a trabalhar no meu doutorado. E, então, tive a oportunidade de interagir com alguns pesquisadores que trabalhavam com elementos de transposição, que são seqüências que estão presentes no genoma e que a maioria dos pesquisadores, na época, considerava que era um genoma lixo, que não servia para nada a não ser a sua própria multiplicação, um gene egoísta. Tinha uma outra vertente de pesquisadores que achava que essas seqüências estavam lá porque tinham uma função. Eu fiquei intrigada por esse sistema, inclusive porque essas seqüências estão presentes nos mais diversos organismos e nas mais variadas proporções. Pensei que, se tivesse a oportunidade, gostaria de estudar um pouco mais. Tive, então, a sorte de poder me associar no doutorado a um projeto que desenvolveu um estudo desses em plantas. Quando voltei para o Brasil, prestei concurso no Departamento de Botânica da USP e eles queriam que montássemos um laboratório de pesquisa molecular. Foi assim que cheguei aqui.


ComCiência - E como foi a experiência de participar do projeto Genoma e como foram as relações de trabalho dentro do projeto, considerando que eram muitos pesquisadores trabalhando em rede?
Sluys -
O projeto foi um marco da pesquisa no estado de São Paulo e para muitos jovens cientistas. A tendência dos pesquisadores é desenvolver o seu trabalho em seu laboratório, e os momentos de congregação vão acontecer em congressos ou em reuniões científicas específicas. Mas no caso do projeto Genoma registrou-se um momento ousado da pesquisa, em que se criou um grupo extra-muros de um instituto e extra-muros de áreas de conhecimento. Ou seja, o projeto juntou pessoas que trabalham com parasitas, com estrutura molecular de plantas, com filogenia [estudo da classificação] de algas, com reparo de DNA em diferentes organismos, com câncer, e colocou todos na mesma sala para trabalhar com um determinado projeto. Isso é uma estratégia muito diferente da que nós estamos acostumados em ciência. Foi um momento muito enriquecedor, porque tivemos que aprender a fazer esse trabalho juntos e a passar por cima de manias de laboratório. Por exemplo, tem gente que gosta de guardar um clone bacteriano na forma de DNA, outros preferem guardar a bactéria congelada (um clone bacteriano é a bactéria que contém a sequência de DNA de interesse - um gene, por exemplo. Essa bactéria é "cultivada" até que se obtenha uma boa quantidade de "clones/bactérias" com o DNA que se quer estudar). Houve uma parte do projeto em que foi necessário homogeneizar as estratégias para podermos usar uma única linguagem. Em outra parte, percebemos que não seria necessário, pois, de uma forma ou de outra, você manteria o material igual, sem conseqüências maiores. Isso facilitou o trabalho com tantas pessoas envolvidas.

ComCiência - Quais foram as dificuldades e as facilidades de ser mulher nessa experiência?
Sluys -
Acho que a área acadêmica é uma área em que as relações são um pouco diferentes das relações de ser homem ou ser mulher. Você tem as relações muito mais definidas pelo nível de formação do indivíduo do que pelo fato de ser homem ou mulher. Eu não tenho, particularmente, uma visão que separa homem e mulher, eu enxergo mais o trabalho em si, no contexto científico. Dentro do projeto Genoma eu nunca tive nenhum problema em relação ao qual eu possa dizer: aconteceu isso porque sou mulher. Acho que o que faz parte do desenvolvimento de um projeto científico é a busca, é a pergunta que você tem. Se você tem isso bem embasado cientificamente, se estiver publicando e divulgando seus trabalhos, tanto faz se é homem ou mulher. Essa é a minha visão. Talvez seja mais a confluência do momento do que se é homem ou mulher que importe.

ComCiência - Os cargos de chefia estavam, ao menos inicialmente, sob a responsabilidade de homens, mas as mulheres foram gradativamente conquistando esses espaços. A seu ver, isso foi uma decorrência "natural" da qualidade do trabalho dessas pesquisadoras, que aconteceria em qualquer área ou, sendo a pesquisa em genômica uma área relativamente nova, houve uma maior possibilidade das mulheres participarem desses cargos de chefia?
Sluys -
Eu acho que esse é um movimento mais amplo do que particularmente da área da genômica. Acho que é uma decorrência do aumento do número de pesquisadoras na área científica em geral, não uma decorrência de a genômica ser uma área nova. Dentro da Fapesp os coordenadores eram homens, mas isso depende do nível que você pensar. Se pegarmos os coordenadores dos subprojetos agregados ao projeto genoma da Xyllela, por exemplo, tem várias coordenadoras mulheres, e de trajetórias completamente distintas. O número de mulheres na área de pesquisa, em geral, tem aumentado nos últimos anos. Se pensarmos que uma pessoa, depois de formada, leva no mínimo 25 anos até chegar a uma posição em que tenha autonomia para exercer um cargo de chefia, estamos falando de pessoas que foram formadas há 30 anos. Falamos de um momento em que a realidade da sala de aula era diferente, talvez não tivesse um número maior de mulheres em relação a homens na graduação em biologia, como agora. Isso acaba se refletindo no número de homens e mulheres nos cargos de chefia atualmente. Acho que a entrada das mulheres na academia faz parte do desenvolvimento da ciência no Brasil, que se formos comparar com outras partes do mundo é relativamente recente. Com relação à França e Estados Unidos, onde tive experiências de trabalho, acho que é muito parecido. De um modo geral, penso que é mais uma questão da mulher sair de casa e assumir um papel profissional, fato este que tomou grande impulso na década de 60, do que efetivamente uma questão da área de biologia ou da genômica. Existem áreas que vão ter mais atrativos do que outras, no caso da biologia, você pode considerar a escolha de dar aulas e conciliar melhor a família com trabalho.

ComCiência - Como foi ser indicada ao prêmio Cláudia?
Sluys -
Foi muito gostoso ganhar esse prêmio. Eu acho que o projeto Genoma nos trouxe um grande desafio, não só de montar a competência nacional para um projeto em larga escala como foi o genoma da Xyllela e os demais que o seguiram, mas na forma de trabalhar, que juntou diferentes laboratórios. Foi também o reconhecimento do trabalho desenvolvido e da dedicação que o grupo de meninas teve naquele momento do projeto. Acho que o desafio maior foi passar por cima da sua maneira de fazer, conseguir encarar que as várias maneiras de fazer estão corretas e conseguir chegar a um resultado positivo no final. Foi muito enriquecedor!

Atualizado em 10/12/03

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2003
SBPC/Labjor
Brasil