Entrevistas
Física
e política influenciaram a trajetória de Roberto Salmeron
Roberto Salmeron
Físico
de raios cósmicos fez sonar para a marinha
Marcelo Damy
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Física e política
influenciaram a trajetória de Roberto Salmeron
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Um
dos primeiros físicos brasileiros a estudar os raios cósmicos
no Brasil foi Roberto Salmeron, que hoje é Diretor de Pesquisa
Emérito no Centre National de la Recherche Scientifique e físico
na École Polytechnique, na França. Tendo iniciado seu trabalho
nessa área, acompanhando Gleb Wataghin, físico italiano
que inaugurou a física de partículas no Brasil, Salmeron
deixou o país na década de 60 porque se viu impedido de
desenvolver sua atividade, devido às interferências do governo
militar. Aceitou, então, o convite para trabalhar no Centro Europeu
de Pesquisas Nucleares (Cern), na Suíça, mas transferiu-se
posteriormente para a Ecole Polytechnique, Paris, cidade onde vive até
hoje.
ComCiência - O senhor foi um dos pioneiros nas pesquisas com
raios cósmicos no Brasil. O senhor poderia contar como foi esse
início?
Roberto Salmeron - Lembremos que raios cósmicos são
partículas atômicas que chegam do Universo sobre a Terra:
elétrons, prótons, neutrons, fótons, e muitas outras.
Foi grande sorte para nós brasileiros termos tido como orientador
da Física na ex-Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
da USP um grande físico italiano, Gleb Wataghin. Ele pertencia
à última geração de físicos que conheciam
toda a física e tinha as qualidades científicas e humanas
para criar um departamento de alto nível: era excelente físico
teórico, excelente físico experimental, apaixonado pela
ciência e tinha excepcional interesse em orientar jovens. Iniciou
a física em São Paulo a partir de nada, criando os alicerces
para a pesquisa em física moderna no Brasil. É muito raro
ver, em qualquer país, uma única pessoa que tenha tido,
numa ciência, influência tão grande quanto Gleb Wataghin
teve na física brasileira. Formou físicos que se tornaram
por sua vez líderes no país.
Na parte experimental, Gleb Wataghin dedicou-se a trabalhos sobre raios
cósmicos e criou na USP um grupo que gozava de prestígio
internacional. Comecei a trabalhar em pesquisa em raios cósmicos
sob a sua orientação, fui seu último colaborador
antes dele voltar para a Itália. Havia dois tipos de pesquisa;
um era o estudo de raios cósmicos em si, isto é, investigar
o número e a natureza das partículas que chegam à
Terra. Outro era utilizar raios cósmicos como fontes de partículas
atômicas, para estudos de propriedades dessas partículas
e de suas interações. Gleb Wataghin dedicava-se ao segundo
tipo de investigação, ao qual me introduziu. Algum tempo
depois dele ter retornado à Itália, fui trabalhar em raios
cósmicos para meu doutorado na Universidade de Manchester, na Inglaterra,
lugar de maior prestígio nesses estudos. Depois de vários
anos em raios cósmicos passei a trabalhar com aceleradores de partículas.
ComCiência
- Na sua opinião, qual a situação do Brasil frente
a essas pesquisas, comparado a outros países? Se existe algum desnivelamento,
a que se deve?
Salmeron - Há no Brasil atualmente somente um grupo trabalhando
em raios cósmicos, que tem nível internacional, dirigido
por Carlos Ourívio Escobar <###link para artigo do Escobar###>na
Unicamp. Esse grupo participa do grande experimento chamado "Projeto
Auger", que por razões geográficas é situado
na Argentina, onde cobre uma área de 3000 quilômetros quadrados,
proposto por James Cronin, Prêmio Nobel de Física, no qual
trabalham mais de 200 físicos de 19 países. Trata-se de
um experimento de vanguarda da Astrofísica. O seu objetivo é
detectar raios cósmicos de altíssimas energias, para investigar
de que parte do Universo vêm essas partículas e qual o processo
físico que lhes imprime essas altíssimas energias. Alguns
físicos de outras universidades brasileiras estão associados,
a título individual, ao grupo da Unicamp.
Infelizmente não há nenhum outro experimento sobre raios
cósmicos no Brasil atualmente. Digo infelizmente, porque Astrofísica
é um dos cinco assuntos considerados os mais importantes da Física
deste século XXI. Há desnivelamento em relação
à Europa e aos Estados Unidos, onde há muitos grupos participando
em colaborações internacionais, com experimentos em andamento
e outros em construção ou em planejamento.
O principal fator do atraso do Brasil é o seguinte. As técnicas
utilizadas são as da física de partículas elementares;
a maioria dos físicos que se dedicam a raios cósmicos atualmente
vêm deste campo da Física. No Brasil, são poucos os
que fazem partículas elementares, e nessa comunidade, assim como
entre os que se dedicam a outros campos, não tem havido interesse
em se converter para raios cósmicos. Está faltando no Brasil
troca de idéias e informação a respeito do valor
e das possibilidades de pesquisa nesse campo. O grupo coordenado por Carlos
Escobar teve essa formação; trabalhou com sucesso vários
anos em física de partículas elementares no Fermilab, em
Chicago, nos Estados Unidos.
ComCiência
- O senhor fez parte do corpo docente da UnB, mas abriu mão da
cadeira em repúdio à perseguição de professores
durante o regime militar recém-implantado no país. O que
o senhor diria a respeito desse tipo de intervenção na ciência?
Salmeron - Depois do golpe militar de 1964, a UnB foi a universidade
mais duramente atingida no país; teve reitores impostos pelas autoridades
militares, perseguição a docentes com demissões arbitrárias
e a estudantes, prisões. Os coordenadores dos institutos e departamentos
lutaram unidos durante dois anos pela sobrevivência da universidade
e pela autonomia acadêmica. Explicavam às autoridades o que
se fazia na UnB, seu progresso e seus planos. Esforço feito em
vão, pois não havia o mínimo interesse daquelas autoridades,
inclusive do ministro da Educação, em saber o que se fazia;
as perseguições continuavam com ignorância completa
do que era a Universidade de Brasília. Depois de muitos incidentes,
um reitor, nomeado em setembro de 1965, seis semanas depois de assumir
suas funções pediu ao general Diretor do Departamento Federal
de Segurança Pública que enviasse tropas policiais militares
à universidade. Foi essa a segunda invasão da UnB por tropas
militares. Alguns dias depois, mais 15 professores foram demitidos. Convencidos
de que não era possível construir uma universidade com dignidade
naquelas condições, 223 docentes pediram suas demissões
coletivamente. Eu fui um deles.
O que eu diria a respeito desse tipo de intervenção na ciência?
Evidentemente é catastrófico. A ciência no Brasil
sofreu muito com a intervenção nas universidades por parte
dos militares e dos seus aliados civis. Com a demissão de pesquisadores,
programas científicos foram interrompidos, instituições
sofreram terrível retrocesso; para citar somente alguns exemplos,
o Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, a UnB, alguns departamentos
da USP e da UFRJ. A nova geração de universitários
não sabe que as pesquisas em certas disciplinas ficaram interrompidas
no país durante toda uma geração, cerca de 20 anos.
ComCiência
- O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) foi implantado
com interesses militares indiretos, qual a influência disso no direcionamento
das pesquisas?
Salmeron - O CBPF, assim como o CNPq, foram fundados com muita ambigüidade,
com interesses militares mantidos com discreção. Na época,
a maioria das pessoas não percebia isso. As duas instituições
foram fundadas nos anos em que a física nuclear ganhava prestígio
com as inúmeras aplicações que já tinha e
outras previsíveis, invenção de reatores nucleares
para obtenção de energia elétrica, utilização
de isótopos radioativos etc. Os militares queriam ter sob controle
os físicos, especialmente os físicos nucleares, porque estavam
interessados na bomba atômica. No entanto, não houve influência
no direcionamento das pesquisas, salvo num projeto de cíclotron.
ComCiência
- Também na CBPF o senhor teve problemas em relação
à política, não é?
Salmeron - A respeito de meus problemas no CBPF, foi pouco depois
da sua fundação, quando era jovem, antes de ter meu doutorado
na Universidade de Manchester e antes de ter trabalhado no Cern, laboratório
internacional europeu situado em Genebra, na Suíça. O CNPq
tinha iniciado um plano para construir no CBPF um cíclotron, com
auxílio técnico de físicos e engenheiros da Universidade
de Chicago. O presidente do CNPq, almirante Alvaro Alberto, considerava
que o CBPF era um antro de comunistas subversivos controlados por Moscou,
como declarava em reuniões da direção do CNPq registradas
em atas hoje acessíveis ao público. Era uma espécie
de delírio da parte de círculos militares que, ao mesmo
tempo, revelava o interesse que tinham em controlar os físicos.
O almirante então me proibiu de entrar no prédio do CBPF
onde se trabalhava para o cíclotron. Minha reação
imediata foi de me demitir, o que provavelmente significaria abandonar
a carreira de físico. Mas, por coincidência no tempo, naqueles
dias obtive uma bolsa da Unesco para fazer doutorado na Universidade de
Manchester, o que me permitiu continuar trabalhando em Física.
Aquele projeto de cíclotron era fora da realidade e nunca foi realizado.
ComCiência
- Isso deixou, no senhor, alguma mágoa com o país? Sua opção
por continuar vivendo em Paris tem relação com esse período
da década de 60, ou as razões são outras?
Salmeron - Devido às minhas funções na UnB, eu
tinha contatos com membros do governo, inclusive com os militares que
dominavam a administração, cuja força pude avaliar.
Saí da UnB convencido de que ficariam no poder pelo menos durante
20 anos - ficaram 21 anos - e que durante muito tempo eu dificilmente
teria chance de fazer algo no Brasil. Depois de me demitir da UnB, fui
novamente contratado pelo Cern, onde poderia ter permanecido até
me aposentar, mas depois de um ano e meio aceitei o convite para trabalhar
na École Polytechnique, em Paris. Minha esposa e eu organizamos
a vida da família sabendo que deveríamos permanecer no exterior
muito tempo. Passados os anos, o regresso se torna cada vez mais difícil,
por vários motivos. Em resumo, as razões do meu exílio
são devidas ao regime que se estabeleu no Brasil com o golpe militar
de 1964.
ComCiência
- Apesar da aposentadoria, o senhor continua colaborando com vários
centros, na França e em outros países. O que o leva a manter
o vínculo com a pesquisa?
Salmeron - Tive a sorte de ter tido professores profundamente interessados
em pesquisa, em ensino e em formação de jovens, que me transmitiram
esse interesse. Continuo colaborando com vários centros e universidades,
especialmente no Brasil, procurando estimular e promover colaborações
internacionais em pesquisa e em ensino universitário. Com os contatos
que tenho devido aos anos de trabalho no Cern e na École Polytechnique
estou bem situado para promover tais colaborações, o que
faço pelo prazer de ser útil.
Sempre mantive esse contato com o Brasil. Mesmo durante a ditadura militar,
continuei colaborando com amigos e colegas de vários de nossos
centros, pelos quais sempre tive respeito e admiração, que
faziam trabalho importante em condições extremamente difíceis
materialmente e moralmente.
ComCiência
- O senhor continua envolvido na busca do plasma quark-glúon? Qual
o estágio dessa pesquisa? O que isso pode significar para a física
moderna?
Salmeron - Não estou mais envolvido em nenhum experimento sobre
a procura do plasma de quarks e glúons. Mas continuo interessado
na interpretação dos resultados, não somente do meu
antigo experimento, mas também de outros que estão em andamento,
e tenho publicado trabalhos nesse sentido. Em minha opinião, até
o presente nenhum experimento provou que o plasma existe.
Se for provado que o plasma existe, a conclusão física mais
importante será em nosso conceito sobre o movimento dos quarks
e glúons dentro das partículas. Pensamos que eles são
confinados dentro das partículas sem poder escapar; mas se o plasma
existisse eles poderiam romper o confinamento, o que traria conseqüências
teóricas. Outra conclusão, abriria campo para experiências
sobre propriedades do plasma, que acreditamos ter existido nos primeiros
instantes da criação do Universo. Poderíamos reproduzir
no laboratório condições do início do Universo,
e estudar essas condições.
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