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Física e política influenciaram a trajetória de Roberto Salmeron
Roberto Salmeron

Físico de raios cósmicos fez sonar para a marinha
Marcelo Damy

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Físico de raios cósmicos fez sonar para a marinha

 

Marcelo Damy é um dos principais cientistas brasileiros. Deixou a engenharia para se dedicar à Física quando ficou encantado pelas aulas do professor Gleb Wataghin, que reconhecendo sua forte aptidão para a física aconselhou-o a mudar os rumos de sua formação. A relação entre os dois foi extremamente rica e resultou em um grande salto científico para o Brasil no ramo da Física. O primeiro reator nuclear da América do Sul foi desenvolvido no Brasil graças a Damy, que também realizou descobertas científicas incríveis e ainda colaborou com a Marinha Mercante Brasileira na Segunda Guerra Mundial construindo sonares para detectar submarinos. Foi também professor de alunos que se tornaram grandes cientistas brasileiros, como Cesar Lattes. Nascido em Campinas em 14 de junho de 1914 ele apresenta uma história de trabalho incessante em prol da ciência, que continua desenvolvendo até hoje juntamente com outros pesquisadores do Instituto de Pesquisas em Energia Nuclear (Ipen). Nesta entrevista à ComCiência, ele fala sobre a sua importante atuação no desevolvimento das pesquisas brasileiras sobre raios cósmicos

ComCiência - Qual o seu interesse pelos raios cósmicos?
Marcelo Damy -
Os raios cósmicos sempre me interessaram muito porque foi o ponto de partida das minhas pesquisas depois que graduei-me pela Universidade de São Paulo (USP). O professor Gleb Wataghin, que depois foi patrono do Instituto de Física da Unicamp, estava muito interessado em raios cósmicos, que apresentavam uma vantagem muito grande para serem pesquisados. Era um campo aberto para pesquisas. Além disso, o equipamento que se utilizava nas pesquisas de raios cósmicos, na época, podia ser construído no laboratório sem uma dificuldade maior, enquanto as pesquisas de física nuclear exigiam investimentos muito altos que não poderíamos pagar. Foi assim que, com o professor Wataghin, eu comecei a trabalhar em raios cósmicos, construindo todo o equipamento necessário para a observação dos mesmos. Na época, eu era o único assistente de Wataghin e trabalhava experimentalmente nesse campo. Mas antes disso, nos meus tempos de estudante, eu já havia consertado muitos aparelhos de rádio para melhorar o orçamento, por isso conhecia um pouco de eletrônica e já tinha o interesse despertado para essa área.

ComCiência - Naquela época, quais eram as linhas de pesquisa em raios cósmicos? O que se desejava descobrir estudando os raios cósmicos?
Damy -
Nos raios cósmicos nós procurávamos estudar a natureza da componente penetrante da radiação cósmica. A radiação cósmica tem uma radiação que é chamada de radiação mole - absorvida por 2 a 3 cm de chumbo - e a radiação penetrante, que pode atravessar metros de chumbo. Na época, sabia-se que atravessava várias dezenas de centímetros, mas nunca metros. O propósito inicial das pesquisas era estudar a natureza dos chuveiros penetrantes de raios cósmicos [chuveiros penetrantes são raios cósmicos que atingem a Terra e são acompanhados por um grupo de partículas]. Observava-se que nos chuveiros cósmicos apareciam partículas que depois foram identificadas como mesons que tinham um grande poder de penetração, assim, podiam penetrar várias dezenas de centímetros sem perder parte apreciável de sua energia. Então começamos a estudar intensidade da radiação cósmica em São Paulo, como variavam esses chuveiros e a sua extensão. Nosso estudo era muito importante na época, porque os chuveiros normalmente eram estudados com equipamentos que retratavam o fenômeno que ocorre no máximo até 30 ou 40 cm de distância. Eu, Wataghin e Pompéia [Paulus Aulus Pompéia] descobrimos que esses chuveiros são muito penetrantes, e o trabalho foi publicado no exterior.

ComCiência - Era possível estudar chuveiros penetrantes com os equipamentos disponíveis na época?
Damy -
Não, a descoberta dos chuveiros penetrantes só foi possível devido a um aparelho que desenvolvi quando estava na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Eu tinha construído o aparelho e íamos iniciar essas pesquisas na Inglaterra quando surgiu a guerra e fechou o laboratório. Fiquei com o aparelho parado sem poder iniciar as pesquisas. Mas o conselho britânico e a direção do laboratório foram extremamente corretos e doaram o aparelho para a USP, me autorizando a trazê-lo em minha viagem de volta ao Brasil. Então eu voltei com essa aparelhagem toda em uma caixa de aço. Foi tudo bem até chegar aqui no Brasil. Quando o navio parou no Rio, foi vistoriado pela alfândega, a bagagem dos brasileiros desceu e o inspetor da alfândega - que era muito sabido - olhou o aparelhos e encontrou umas válvulas de rádio lá dentro e falou "Não, isso é um transmissor de rádio, está preso!" (Risos). Então, levaram o aparelho e para mostrar que era um transmissor de rádio ele retirou algumas válvulas, resistências, condensadores - que são as componentes que normalmente você usa em um receptor. Com isso eu fiquei com ao aparelho desmontado em parte na alfândega do Rio, onde ficou cerca de 2 meses até que fosse possível convencê-los de que aquilo não transmitia nada porque não tinha nem bobina para transmitir... Mas esse aparelho depois foi utilizado aqui no Brasil para medir os chuveiros penetrantes.
Durante essas pesquisas, havia sido observado no exterior que um elétron, mesmo de energia extremamente grande, não poderia atravessar vários centímetros de chumbo, então verificou-se que deveria existir uma outra partícula responsável por esse processo, e assim foi descoberto o meson, que aparentemente seria uma única partícula. Construímos contadores de partículas especiais que nos permitia detectar chuveiros de grande divergência nos contadores até alguns metros de distância um do outro.

ComCiência - Como foram desenvolvidas as pesquisas?
Damy -
Fizemos medidas na cidade de São Paulo, e depois no fundo da mina de Morro Velho. Isso porque sabia-se que o meson era uma partícula que podia atravessar vários centímetros de chumbo sem ser praticamente absorvida. O professor Wataghin teve a idéia de estudar a natureza dos chuveiros em profundidade. A mina de Morro Velho (MG) está a cerca de 1000 m de profundidade. Em conseqüência, uma partícula que chegue até lá só poderia ser um meson porque elétrons ou prótons, mesmo de energia quase infinita, não atravessariam essa profundidade de Terra. Nós fizemos as medidas (não seria medições?) e encontramos chuveiros lá embaixo. Descobrimos então a simultaneidade de mesons que poderiam ser produzidos em um único processo nuclear, isso porque entre a descarga de um contador e outro decorria um tempo menor que um milionésimo de segundo, logo, era um processo simultâneo que acontecia pela interação da radiação cósmica primária com o núcleo. Seriam então, emitidos elétrons e prótons, como ocorre normalmente, e mais os mesons. Essa pesquisa foi publicada e teve grande repercussão no exterior.

ComCiência - Qual a importância desses chuveiros de raios cósmicos?
Damy -
A importância é que esses chuveiros penetrantes são uma chuva de partículas - daí o nome de chuveiro - mas, nesse chuveiro penetrante, as partículas responsáveis pelo processo são os mesons ou mésotrons que haviam sido descobertos, antes, por Lattes (veja reportagem que fala da participação de César Lattes), Giuseppe Occhialini e Cecil Powel (ganhador do Nobel de física em 1950). Eles descobriram essas partículas também na radiação cósmica, mas por métodos diferentes. Mostramos que os chuveiros penetrantes - que já eram conhecidos - eram constituídos por meson, responsável pela penetração a grandes profundidades. Antes, achava-se que eram constituídos somente de prótons - o que criava dificuldades incríveis para a teoria.

ComCiência - Como estão os estudos sobre raios cósmicos hoje ?
Damy -
Os raios cósmicos até hoje continuam sendo estudados no mundo inteiro porque ainda há uma porção de problemas a serem resolvidos. Depois que eu fiz essa pesquisa e o Wataghin voltou para a Itália, veio a guerra e eu fui trabalhar para a Marinha, juntamente com Paulo Pompéia. Fomos encarregados de estudar métodos de detecção de submarinos (risos). E nós passamos o tempo da guerra estudando isso e resolvemos o problema para a marinha desenvolvendo sonares que foram instalados nas corvetas que acompanhavam os comboios, e nos submarinos também. Aliás, funcionaram muito bem. Depois desse período na marinha eu não voltei a trabalhar em raios cósmicos porque, após a guerra, eu passei a me interessar por aceleradores. Eu tinha que construir um acelerador de partículas aqui no Brasil e acabei instalando um bétatron. As pesquisas de raios cósmicos que eram realizadas no Brasil ocorreram graças ao prestígio de Wataghin e ao apoio da Fundação Rockfeller, que costumava mandar bolsistas do Brasil para o exterior. Foi assim que o Lattes foi para o exterior.

ComCiência - O senhor também recebeu apoio da Rockfeller?
Damy -
Eu recebi, mas não como bolsista. Depois de terminada a guerra e o reconhecimento que a marinha brasileira recebeu, permitindo que os comboios americanos tivessem escolta americana até as Guianas, e das Guianas para baixo, escolta realizada brasileira com detectores feitos por nós, a Fundação Rockfeller deu uma bolsa ao Wataghin e a mim para viajarmos para os EUA e escolhermos um acelerador para o Brasil. Depois de percorrer vários laboratórios nos EUA, chegamos à conclusão de que entre todos os aceleradores existentes o mais interessante era o bétatron porque permitia trabalhar em um novo ramo de pesquisas nucleares. O bétatron era uma novidade pois permitia estudos de fenômenos de fotodesintegração em altas energias. Então, resolvemos instalar aqui em São Paulo um betatron para uma energia na ordem de 26 a 28 milhões de elétrons volts - que era uma energia muito boa para a época. Naquela viagem, encontramos parte dos laboratórios fechados por causa dos 'segredos de guerra', apesar da guerra já ter terminado. Mas o de Ilinois estava aberto. Estivemos lá e resolvemos que montaríamos em São Paulo um bétatron para 28 milhões de elétrons volts. Esse bétraton foi construído nos EUA pela empresa que construiu os bétatrons da Universidade de Ilinois onde trabalhava o professor Kirts, o seu descobridor. E assim, veio um betatron para São Paulo, e chegou em uma ocasião muito oportuna porque o betatron é um aparelho muito caro.
Além disso, em 1955, conseguimos também o primeiro reator. Naquele ano, houve a primeira conferência de átomos para a paz, em Genebra, e nessa ocasião o governo norte-americano prometeu que doaria um reator para o país que primeiro fosse capaz de instalá-lo. E nós ganhamos esse prêmio.

ComCiência - Então, além do acelerador, o senhor também conseguiu trazer um reator para o Brasil?
Damy -
Foi uma corrida contra o tempo. Quando chegamos ao Brasil procuramos o então presidente Jânio Quadros que aceitou imediatamente a idéia. Começamos então a construção do prédio do reator na cidade universitária, que naquele tempo era um campo onde existiam vacas e cavalos que serviam para fazer vacinas para o Butantã. Naturalmente, se fôssemos os primeiros, os EUA pagariam as despesas, mas se fôssemos o segundo, o governo brasileiro teria que arcar com as responsabilidades. Mas mesmo assim, o Jânio topou: "Confio em vocês, trabalhem que terão todo o nosso apoio". Trabalhamos dia e noite, e conseguimos o reator.

ComCiência - Esse foi o primeiro reator nuclear do Brasil?
Damy -
Eu acho que foi primeiro do Hemisfério Sul. Da América do Sul, foi o primeiro, sem dúvida nenhuma.

Atualizado em 09/05/03

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