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Valoração econômica da proteção ambiental

Crédito: Acervo ISA

Apesar das novas opções econômicas que surgem para o Brasil com o mercado de seqüestro de carbono, o interesse econômico para o país não é muito significativo na opinião de Márcio Santilli. Antropólogo, indigenista e membro do conselho diretor do Instituto Socioambiental em Brasília, Santilli, que participou recentemente das reuniões preparatórias da Rio+10, ressalta que se critérios relacionados com o desmatamento evitado tivessem sido adotados, haveria um estoque bruto de carbono que permaneceria nas florestas. Para ele este seria um mecanismo que traria muito mais ganho, inclusive para as comunidades tradicionais, do que o ganho residual que se dá pela via do seqüestro de carbono. Em entrevista concedida a ComCiência, Santilli tratou de questões relevantes em relação ao meio ambiente que deverão ser abordadas em Joanesburgo, na Conferência Mundial sobre Meio Ambiente. A relação entre meio ambiente e clima também será tema da oitava Conferência das Partes (COP 8) que ocorrerá em novembro na Índia.

ComCiência: A valoração econômica da natureza dialoga com vários assuntos polêmicos, que vão desde a quantificação da biodiversidade brasileira, passando pelos conhecimentos tradicionais, até as indenizações às populações e ao meio ambiente contaminados por resíduos químicos industriais. Neste cenário, o mercado de crédito de carbono começa a tomar forma no plano internacional. Como o senhor vê esse processo de valoração do intangível, em especial no que diz respeito a questão do carbono?
Márcio Santilli:
Tanto o mercado de carbono, como o próprio mercado de projetos na área ambiental necessariamente segmentam uma realidade e uma situação, que em si mesma é muito mais abrangente que a condição geral da natureza. No entanto, apesar desse dado intangível, a valoração econômica acaba dando um parâmetro objetivo. No caso do mercado de carbono, há um esforço técnico de quantificação de emissões e de desenvolvimento de critérios e de técnicas que permitam objetivar isso. A contradição entre o intangível e o quantificável é uma coisa que vai além da coisa específica do carbono

ComCiência: E como essa valoração se relaciona ao valor da proteção ambiental, que não é algo quantificável?
Márcio Santilli:
O que temos é um mercado que tenta compensar o prejuízo, na medida em que ele segmenta e fragmenta uma relação que, na verdade, é muito mais abrangente e diz respeito à proteção ambiental. Corta-se numa fatia o problema e, evidentemente, só se pode atender o problema em parte. É nesse sentido que o mercado procura compensar.

ComCiência: E o que essa valoração e quantificação da natureza significam para o imaginário sobre o meio ambiente?
Márcio Santilli:
Acredito que a valoração econômica, pelo menos nos padrões atuais, só é acessível por segmentos muito específicos da sociedade e as empresas levam uma vantagem muito maior do que as pessoas e as organizações ambientalistas no sentido dessa quantificação, de receberem compensações pelo passivo ambiental. Acho que ela cria uma diversifiação desse imaginário, na medida em que estabelece também uma relação economicista que acaba por condicionar uma leitura possível desse imaginário.

ComCiência: Quantifica-se uma natureza que tem outro significado para a maioria das pessoas e para as comunidades tradicionais. Não existe aí um confronto de culturas?
Márcio Santilli:
Sem dúvida, mas esse imaginário não é algo monolítico. Podemos pensar o que é o imaginário do ponto de vista de um segmento empresarial, que passa a retomar a natureza numa perspectiva de transformar aquilo que historicamente sempre foi visto como um obstáculo ao desenvolvimento e ao crescimento econômico, como algo positivo. Não é a minha opinião, mas imagino que seja a de muitos.

ComCiência: A abstração necessária para se compreender a valoração econômica da natureza, não é algo que diminui ainda mais a participação da população em questões ambientais?
Márcio Santilli:
Se tomarmos por referência a questão do carbono e das regras internacionais, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) e outros instrumentos de compensação, que conformam o mercado do carbono, realmente é inacessível à grande maioria da população, em especial dos países do terceiro mundo. São mecanismos extremamente complexos que exigem uma verificação de larguíssimo prazo, e que acabam sendo conformados de um maneira mais apropriada para projetos de grandes empresas e grandes empreendimentos. Então eu prevejo pouca participação, no plano econômico, das populações nesse processo. Mas acho que existem outras áreas de reflexão e de atuação, que estão relacionados à questão de proteção ambiental e que são mais acessíveis a população de uma forma geral.

ComCiência: Mas em casos como a proposta da plantação de florestas secundárias que realizariam o seqüestro de carbono, como fica a decisão de uma comunidade sobre participar ou não dessa atividade, ou ainda, se deseja a plantação em determinada área ou não?
Márcio Santilli:
A questão da plantação de florestas que se coloca neste contexto do seqüestro do carbono é algo que só tem sentido econômico efetivo se ocorrer em grande escala, que vai além das pequenas propriedades e, provavelmente, daquilo que pode ser passível de recuperação ou de regeneração nas áreas ocupadas por comunidades tradicionais. Esse tipo de mecanismo não é para elas, tal como está desenhado. O seqüestro de carbono implica um ganho que é quase residual e deve se estender por cinqüenta anos ou mais. Na verdade é um instrumento muito limitado para pequenas comunidades e pequenas organizações da sociedade civil. Se no contexto do Protocolo de Quioto, outros critérios relacionados com o desmatamento evitado, por exemplo, tivessem sido adotados eles abririam uma possibilidade maior de inserção de comunidades nesse processo. O critério do desmatamento evitado significaria remunerar a redução do índice de desmatamento, de tal maneira que estaríamos falando de um estoque bruto de carbono que hoje está na floresta e que continuaria lá se não fosse desmatado, versus um ganho residual que se dá pela via do seqüestro e que é algo de longo prazo. A forma como o MDL acabou sendo desenhado é limitadora para projetos significativos de comunidades tradicionais.

ComCiência: Qual o impacto do mercado de carbono na idéia de responsabilidade dos países poluidores? A possibilidade de comercialização de permissões de emissão não é um mecanismo que perpetua antigas atitudes com relação à poluição?
Márcio Santilli:
Temos aqui uma questão paradoxal, porque a responsabilidade maior é deles e, em princípio, eles deveriam fazer as reduções diretamente no seu próprio território, sem lançarem mão de mecanismos de compensação. No entanto, promover essas reduções diretamente nesses países significa um volume muito maior e imediato de investimentos, como na mudança da matriz econômica, da matriz energética, de transportes, e assim por diante. Um custo que coloca em questão a própria viabilidade de um esforço internacional de redução das emissões. É aceitável que, numa primeira etapa, criem-se condições para que esses países possam promover a redução a um custo mais baixo, mas acho que para os períodos de compromisso que se sucederão, o Protocolo de Quioto tem que ter critérios mais rigorosos, tanto em relação aos países do primeiro mundo - que deveriam ser levados a promover reduções mais significativas diretamente, como da parte dos países em desenvolvimento - que hoje não têm metas a cumprir e na minha opinião devem ser estimulados a dar contribuições mais concretas também com relação às suas emissões.

ComCiência: O senhor acha que é possível se desenvolver sem aumentar as emissões de gás carbônico?
Márcio Santilli:
Acho que, no caso do Brasil, inegavelmente. O principal fator de emissão brasileiro não está relacionado ao setor energético, mas com o desmatamento e nós já dispomos de tecnologia, conhecimento e áreas abertas suficientes para implementar o desenvolvimento econômico do país, inclusive agrícola, sem a necessidade de manter níveis tão escandalosos de desmatamento. As emissões brasileiras atualmente não são baixas na minha opinião. Há pelo menos três países em desenvolvimento, que são a China, a Índia e o Brasil, que se incluem entre os 10 maiores emissores atuais do planeta. As emissões que são baixas no Brasil são aquelas oriundas da matriz energética, porque o Brasil tem uma matriz considerada relativamente limpa, já que está fortemente assentada na energia hidrelétrica. No entanto, dois terços das emissões brasileiras são provenientes de desmatamentos, queimadas e uso inadequado do solo, emissões que colocam o Brasil numa posição destacada entre os principais emissores atuais.
Há um conceito de emissores históricos, que são aqueles países que vêm emitindo grandes quantidades de gases de efeito estufa desde a Revolução Industrial e, portanto, têm uma responsabilidade diferenciada com relação aos países em desenvolvimento sobre o acúmulo dessas emissões na atmosfera terrestre. Um outro conceito é o relacionado aos emissores atuais. E, nesse contexto, o Brasil se coloca em quinto ou sexto lugar, depois dos EUA, do Japão, Alemanha e China. E essa posição se deve basicamente às emissões oriundas do desmatamento.
O presidente Bush tentou utilizar esse argumento de forma a não assumir as responsabilidades, mas evidentemente não há nenhum critério ou parâmetro que possa, sequer de longe, equiparar-se ao nível de responsabilidade que os EUA têm nessa história, pois apenas eles são responsáveis por 25% das emissões do planeta. O fato de que apenas uma lista de países têm metas de reduções de emissões a cumprir no primeiro período de compromisso do Protocolo de Quioto, relaciona-se com o fato de que esses países são emissores históricos, e que ao longo de 150 anos, acumularam uma quantidade muito superior de gases na atmosfera do que a quantidade que tem sido emitida nos últimos 50 anos pelos países em desenvolvimento. Portanto, não há dúvida de que compete aos países desenvolvidos a primeira atitude concreta de redução de emissões. Não se pode equiparar o Brasil ao nível de responsabilidade histórica que esses outros países têm.
Mas olhando para o futuro não podemos ignorar o fato de que vários países em desenvolvimento são hoje responsáveis por volumes grandes de emissão e que isso também é insustentável com relação ao futuro da humanidade. Portanto, sem o mesmo grau de responsabilidade dos emissores históricos, os emissores atuais também precisam começar a implementar estratégias que levem à redução das suas emissões.

ComCiência: É possível identificar entre a Rio 92 e hoje, sinais de que o movimento sustentável é viável?
Márcio Santilli:
Temos, nesse período de 10 anos, coisas a contabilizar de forma muito positiva para a questão ambiental, mas que, no entanto, não foram ainda suficientes para reveter tendências históricas. Não há dúvida de que o nível de consciência da sociedade brasilera com relação a questão ambiental cresceu nesses 10 anos, não há dúvida que aumentou-se o nível de organização com o terceiro setor, as organizações empresariais criaram também instrumentos, fundos e projetos voltados para a questão ambiental numa quantidade muito mais significativa do que tínhamos há 10 anos atrás. Tivemos um avanço inegável na legislação relacionada ao meio ambiente. Podemos citar várias leis promulgadas nesses últimos anos, que significam um avanço histórico importante para o país, como a Lei de Crimes Ambientais, a lei que instituiu o sistema nacional de unidades de conservação, o novo código florestal e várias outras. Esses são os saldos positivos, mas se olharmos para o chão veremos que, ao longo desses anos, o Brasil segue mantendo um patamar elevadíssimo de desmatamento, especialmente na região amazônica. A qualidade ambiental da vida urbana deteriorou-se nas grandes cidades e, portanto, houve um aumento do passivo ambiental e não uma redução.
Eu quero crer que o acúmulo até aqui existente ainda foi insuficiente para reverter as tendências históricas mas, seguindo esse mesmo caminho, chegaremos ao ponto de poder colocar de forma objetiva como parte do projeto nacional brasileiro, da estratégia de desenvolvimento econômico do país, a perspectiva de reversão dessa tendência.

ComCiência: A Amazônia, durante muito tempo, foi vista como o pulmão do mundo. Hoje com a questão das emissões discute-se se a região emite ou absorve gás carbônico. Qual é a posição que a Amazônia assume no plano internacional atualmente?
Marcio Santilli:
A posição oficial brasileira do Itamaraty e que se assume nos foros internacionais é sempre uma posição muito defensiva. O governo brasileiro tem a consciência de que o desmatamento tem níveis absurdos e que isso é o calcanhar de Aquiles do Brasil no plano internacional. No entanto, já acumulamos experiências no país que demonstram que é perfeitamente posível reduzir esses índices sem comprometer a estratégia de desenvolvimento econômico. Se examinarmos o que ocorre no Mato Grosso, que é o estado onde historicamente mais ocorre desmatamento, existe, hoje, a implantação um sistema de licenciamento de grandes propriedades rurais que vem dando ao estado condições de controle que nunca houveram anteriormente e que apontaram uma tendência de redução do índice. Essa experiência ainda não está disseminada por toda a região amazônica, mas indica que uma política do governo federal, no sentido de se disseminar esse tipo de sistema em toda a região, fatalmente resultará numa redução do índice. Portanto, existe uma estratégia concreta, tecnologia e maneira política de se proceder com relação a essa questão, que coloca pela primeira vez viabilidade objetiva de redução. O Mato Graosso tem reduzido esses índices ao mesmo tempo que mantém o nível de desenvolvimento econômico muito acima da média nacional. Uma coisa pode conviver com a outra, então não há uma justificativa consistente para que o Brasil continue adotando uma posição defensiva. É preciso pleitear condições de apoio e financiamento, para que se possa de uma forma mais rápida mudar o jogo internamente com relação ao desmatamento. Está na hora do governo brasileiro rever essa posição defensiva.

ComCiência: As metas de redução de gás carbônico abrem novas opções de mercado para as regiões tropicais? Isso é algo estratégico para o país?
Marcio Santilli:
Não há dúvida de que se abrem novas opções, existem países que terão interesse em compensar reduções de emissões que eles não têm como fazer com baixo custo no tempo previsto. O Brasil, especialmente para o Japão, pode ser visto como um país interessante para isso, pois tem uma base territorial que permite imaginar projetos em escala necessária para o seqüestro de carbono. Mas acredito que o interesse econômico disso é pequeno, pois a remuneração do mercado ao seqüestro de carbono é muito baixa, diferentemente do que seria a remuneração pelo desmatamento que nós poderíamos evitar. Evidentemente que no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo há projetos no setor de transportes e de energia para o Brasil. Mas a Índia e a China, pelo volume imenso de emissões oriundos desse setor, teriam, em princípio, mais competitividade que o Brasil para acessar esses recursos. Sem dúvida há novas oportunidades, mas não devemos fazer disso uma panacéia.

Atualizado em 10/08/02

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