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Inventário
mostrará emissões brasileiras
José Miguez
Valoração
econômica da proteção ambiental
Márcio Santilli
Futuro
da Humanidade passa por uma solução pactuada
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Acervo ISA
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Apesar das
novas opções econômicas que surgem para o Brasil com
o mercado de seqüestro de carbono, o interesse econômico para
o país não é muito significativo na opinião
de Márcio Santilli. Antropólogo, indigenista e membro do
conselho diretor do Instituto Socioambiental em Brasília, Santilli,
que participou recentemente das reuniões preparatórias da
Rio+10, ressalta que se critérios relacionados com o desmatamento
evitado tivessem sido adotados, haveria um estoque bruto de carbono que
permaneceria nas florestas. Para ele este seria um mecanismo que traria
muito mais ganho, inclusive para as comunidades tradicionais, do que o
ganho residual que se dá pela via do seqüestro de carbono.
Em entrevista concedida a ComCiência, Santilli tratou de
questões relevantes em relação ao meio ambiente que
deverão ser abordadas em Joanesburgo, na Conferência Mundial
sobre Meio Ambiente. A relação entre meio ambiente e clima
também será tema da oitava Conferência das Partes
(COP 8) que ocorrerá em novembro na Índia.
ComCiência:
A valoração econômica da natureza dialoga com vários
assuntos polêmicos, que vão desde a quantificação
da biodiversidade brasileira, passando pelos conhecimentos tradicionais,
até as indenizações às populações
e ao meio ambiente contaminados por resíduos químicos industriais.
Neste cenário, o mercado de crédito de carbono começa
a tomar forma no plano internacional. Como o senhor vê esse processo
de valoração do intangível, em especial no que diz
respeito a questão do carbono?
Márcio Santilli: Tanto o mercado de carbono, como o próprio
mercado de projetos na área ambiental necessariamente segmentam
uma realidade e uma situação, que em si mesma é muito
mais abrangente que a condição geral da natureza. No entanto,
apesar desse dado intangível, a valoração econômica
acaba dando um parâmetro objetivo. No caso do mercado de carbono,
há um esforço técnico de quantificação
de emissões e de desenvolvimento de critérios e de técnicas
que permitam objetivar isso. A contradição entre o intangível
e o quantificável é uma coisa que vai além da coisa
específica do carbono
ComCiência:
E como essa valoração se relaciona ao valor da proteção
ambiental, que não é algo quantificável?
Márcio Santilli: O que temos é um mercado que tenta
compensar o prejuízo, na medida em que ele segmenta e fragmenta
uma relação que, na verdade, é muito mais abrangente
e diz respeito à proteção ambiental. Corta-se numa
fatia o problema e, evidentemente, só se pode atender o problema
em parte. É nesse sentido que o mercado procura compensar.
ComCiência:
E o que essa valoração e quantificação da
natureza significam para o imaginário sobre o meio ambiente?
Márcio Santilli: Acredito que a valoração econômica,
pelo menos nos padrões atuais, só é acessível
por segmentos muito específicos da sociedade e as empresas levam
uma vantagem muito maior do que as pessoas e as organizações
ambientalistas no sentido dessa quantificação, de receberem
compensações pelo passivo ambiental. Acho que ela cria uma
diversifiação desse imaginário, na medida em que
estabelece também uma relação economicista que acaba
por condicionar uma leitura possível desse imaginário.
ComCiência:
Quantifica-se uma natureza que tem outro significado para a maioria das
pessoas e para as comunidades tradicionais. Não existe aí
um confronto de culturas?
Márcio Santilli: Sem dúvida, mas esse imaginário
não é algo monolítico. Podemos pensar o que é
o imaginário do ponto de vista de um segmento empresarial, que
passa a retomar a natureza numa perspectiva de transformar aquilo que
historicamente sempre foi visto como um obstáculo ao desenvolvimento
e ao crescimento econômico, como algo positivo. Não é
a minha opinião, mas imagino que seja a de muitos.
ComCiência:
A abstração necessária para se compreender a valoração
econômica da natureza, não é algo que diminui ainda
mais a participação da população em questões
ambientais?
Márcio Santilli: Se tomarmos por referência a questão
do carbono e das regras internacionais, o Mecanismo de Desenvolvimento
Limpo (MDL) e outros instrumentos de compensação, que conformam
o mercado do carbono, realmente é inacessível à grande
maioria da população, em especial dos países do terceiro
mundo. São mecanismos extremamente complexos que exigem uma verificação
de larguíssimo prazo, e que acabam sendo conformados de um maneira
mais apropriada para projetos de grandes empresas e grandes empreendimentos.
Então eu prevejo pouca participação, no plano econômico,
das populações nesse processo. Mas acho que existem outras
áreas de reflexão e de atuação, que estão
relacionados à questão de proteção ambiental
e que são mais acessíveis a população de uma
forma geral.
ComCiência:
Mas em casos como a proposta da plantação de florestas secundárias
que realizariam o seqüestro de carbono, como fica a decisão
de uma comunidade sobre participar ou não dessa atividade, ou ainda,
se deseja a plantação em determinada área ou não?
Márcio Santilli: A questão da plantação
de florestas que se coloca neste contexto do seqüestro do carbono
é algo que só tem sentido econômico efetivo se ocorrer
em grande escala, que vai além das pequenas propriedades e, provavelmente,
daquilo que pode ser passível de recuperação ou de
regeneração nas áreas ocupadas por comunidades tradicionais.
Esse tipo de mecanismo não é para elas, tal como está
desenhado. O seqüestro de carbono implica um ganho que é quase
residual e deve se estender por cinqüenta anos ou mais. Na verdade
é um instrumento muito limitado para pequenas comunidades e pequenas
organizações da sociedade civil. Se no contexto do Protocolo
de Quioto, outros critérios relacionados com o desmatamento evitado,
por exemplo, tivessem sido adotados eles abririam uma possibilidade maior
de inserção de comunidades nesse processo. O critério
do desmatamento evitado significaria remunerar a redução
do índice de desmatamento, de tal maneira que estaríamos
falando de um estoque bruto de carbono que hoje está na floresta
e que continuaria lá se não fosse desmatado, versus um ganho
residual que se dá pela via do seqüestro e que é algo
de longo prazo. A forma como o MDL acabou sendo desenhado é limitadora
para projetos significativos de comunidades tradicionais.
ComCiência:
Qual o impacto do mercado de carbono na idéia de responsabilidade
dos países poluidores? A possibilidade de comercialização
de permissões de emissão não é um mecanismo
que perpetua antigas atitudes com relação à poluição?
Márcio Santilli: Temos aqui uma questão paradoxal, porque
a responsabilidade maior é deles e, em princípio, eles deveriam
fazer as reduções diretamente no seu próprio território,
sem lançarem mão de mecanismos de compensação.
No entanto, promover essas reduções diretamente nesses países
significa um volume muito maior e imediato de investimentos, como na mudança
da matriz econômica, da matriz energética, de transportes,
e assim por diante. Um custo que coloca em questão a própria
viabilidade de um esforço internacional de redução
das emissões. É aceitável que, numa primeira etapa,
criem-se condições para que esses países possam promover
a redução a um custo mais baixo, mas acho que para os períodos
de compromisso que se sucederão, o Protocolo de Quioto tem que
ter critérios mais rigorosos, tanto em relação aos
países do primeiro mundo - que deveriam ser levados a promover
reduções mais significativas diretamente, como da parte
dos países em desenvolvimento - que hoje não têm metas
a cumprir e na minha opinião devem ser estimulados a dar contribuições
mais concretas também com relação às suas
emissões.
ComCiência:
O senhor acha que é possível se desenvolver sem aumentar
as emissões de gás carbônico?
Márcio Santilli: Acho que, no caso do Brasil, inegavelmente.
O principal fator de emissão brasileiro não está
relacionado ao setor energético, mas com o desmatamento e nós
já dispomos de tecnologia, conhecimento e áreas abertas
suficientes para implementar o desenvolvimento econômico do país,
inclusive agrícola, sem a necessidade de manter níveis tão
escandalosos de desmatamento. As emissões brasileiras atualmente
não são baixas na minha opinião. Há pelo menos
três países em desenvolvimento, que são a China, a
Índia e o Brasil, que se incluem entre os 10 maiores emissores
atuais do planeta. As emissões que são baixas no Brasil
são aquelas oriundas da matriz energética, porque o Brasil
tem uma matriz considerada relativamente limpa, já que está
fortemente assentada na energia hidrelétrica. No entanto, dois
terços das emissões brasileiras são provenientes
de desmatamentos, queimadas e uso inadequado do solo, emissões
que colocam o Brasil numa posição destacada entre os principais
emissores atuais.
Há um conceito de emissores históricos, que são aqueles
países que vêm emitindo grandes quantidades de gases de efeito
estufa desde a Revolução Industrial e, portanto, têm
uma responsabilidade diferenciada com relação aos países
em desenvolvimento sobre o acúmulo dessas emissões na atmosfera
terrestre. Um outro conceito é o relacionado aos emissores atuais.
E, nesse contexto, o Brasil se coloca em quinto ou sexto lugar, depois
dos EUA, do Japão, Alemanha e China. E essa posição
se deve basicamente às emissões oriundas do desmatamento.
O presidente Bush tentou utilizar esse argumento de forma a não
assumir as responsabilidades, mas evidentemente não há nenhum
critério ou parâmetro que possa, sequer de longe, equiparar-se
ao nível de responsabilidade que os EUA têm nessa história,
pois apenas eles são responsáveis por 25% das emissões
do planeta. O fato de que apenas uma lista de países têm
metas de reduções de emissões a cumprir no primeiro
período de compromisso do Protocolo de Quioto, relaciona-se com
o fato de que esses países são emissores históricos,
e que ao longo de 150 anos, acumularam uma quantidade muito superior de
gases na atmosfera do que a quantidade que tem sido emitida nos últimos
50 anos pelos países em desenvolvimento. Portanto, não há
dúvida de que compete aos países desenvolvidos a primeira
atitude concreta de redução de emissões. Não
se pode equiparar o Brasil ao nível de responsabilidade histórica
que esses outros países têm.
Mas olhando para o futuro não podemos ignorar o fato de que vários
países em desenvolvimento são hoje responsáveis por
volumes grandes de emissão e que isso também é insustentável
com relação ao futuro da humanidade. Portanto, sem o mesmo
grau de responsabilidade dos emissores históricos, os emissores
atuais também precisam começar a implementar estratégias
que levem à redução das suas emissões.
ComCiência:
É possível identificar entre a Rio 92 e hoje, sinais de
que o movimento sustentável é viável?
Márcio Santilli: Temos, nesse período de 10 anos, coisas
a contabilizar de forma muito positiva para a questão ambiental,
mas que, no entanto, não foram ainda suficientes para reveter tendências
históricas. Não há dúvida de que o nível
de consciência da sociedade brasilera com relação
a questão ambiental cresceu nesses 10 anos, não há
dúvida que aumentou-se o nível de organização
com o terceiro setor, as organizações empresariais criaram
também instrumentos, fundos e projetos voltados para a questão
ambiental numa quantidade muito mais significativa do que tínhamos
há 10 anos atrás. Tivemos um avanço inegável
na legislação relacionada ao meio ambiente. Podemos citar
várias leis promulgadas nesses últimos anos, que significam
um avanço histórico importante para o país, como
a Lei de Crimes Ambientais, a lei que instituiu o sistema nacional de
unidades de conservação, o novo código florestal
e várias outras. Esses são os saldos positivos, mas se olharmos
para o chão veremos que, ao longo desses anos, o Brasil segue mantendo
um patamar elevadíssimo de desmatamento, especialmente na região
amazônica. A qualidade ambiental da vida urbana deteriorou-se nas
grandes cidades e, portanto, houve um aumento do passivo ambiental e não
uma redução.
Eu quero crer que o acúmulo até aqui existente ainda foi
insuficiente para reverter as tendências históricas mas,
seguindo esse mesmo caminho, chegaremos ao ponto de poder colocar de forma
objetiva como parte do projeto nacional brasileiro, da estratégia
de desenvolvimento econômico do país, a perspectiva de reversão
dessa tendência.
ComCiência:
A Amazônia, durante muito tempo, foi vista como o pulmão
do mundo. Hoje com a questão das emissões discute-se se
a região emite ou absorve gás carbônico. Qual é
a posição que a Amazônia assume no plano internacional
atualmente?
Marcio Santilli: A posição oficial brasileira do Itamaraty
e que se assume nos foros internacionais é sempre uma posição
muito defensiva. O governo brasileiro tem a consciência de que o
desmatamento tem níveis absurdos e que isso é o calcanhar
de Aquiles do Brasil no plano internacional. No entanto, já acumulamos
experiências no país que demonstram que é perfeitamente
posível reduzir esses índices sem comprometer a estratégia
de desenvolvimento econômico. Se examinarmos o que ocorre no Mato
Grosso, que é o estado onde historicamente mais ocorre desmatamento,
existe, hoje, a implantação um sistema de licenciamento
de grandes propriedades rurais que vem dando ao estado condições
de controle que nunca houveram anteriormente e que apontaram uma tendência
de redução do índice. Essa experiência ainda
não está disseminada por toda a região amazônica,
mas indica que uma política do governo federal, no sentido de se
disseminar esse tipo de sistema em toda a região, fatalmente resultará
numa redução do índice. Portanto, existe uma estratégia
concreta, tecnologia e maneira política de se proceder com relação
a essa questão, que coloca pela primeira vez viabilidade objetiva
de redução. O Mato Graosso tem reduzido esses índices
ao mesmo tempo que mantém o nível de desenvolvimento econômico
muito acima da média nacional. Uma coisa pode conviver com a outra,
então não há uma justificativa consistente para que
o Brasil continue adotando uma posição defensiva. É
preciso pleitear condições de apoio e financiamento, para
que se possa de uma forma mais rápida mudar o jogo internamente
com relação ao desmatamento. Está na hora do governo
brasileiro rever essa posição defensiva.
ComCiência:
As metas de redução de gás carbônico abrem
novas opções de mercado para as regiões tropicais?
Isso é algo estratégico para o país?
Marcio Santilli: Não há dúvida de que se abrem
novas opções, existem países que terão interesse
em compensar reduções de emissões que eles não
têm como fazer com baixo custo no tempo previsto. O Brasil, especialmente
para o Japão, pode ser visto como um país interessante para
isso, pois tem uma base territorial que permite imaginar projetos em escala
necessária para o seqüestro de carbono. Mas acredito que o
interesse econômico disso é pequeno, pois a remuneração
do mercado ao seqüestro de carbono é muito baixa, diferentemente
do que seria a remuneração pelo desmatamento que nós
poderíamos evitar. Evidentemente que no âmbito do Mecanismo
de Desenvolvimento Limpo há projetos no setor de transportes e
de energia para o Brasil. Mas a Índia e a China, pelo volume imenso
de emissões oriundos desse setor, teriam, em princípio,
mais competitividade que o Brasil para acessar esses recursos. Sem dúvida
há novas oportunidades, mas não devemos fazer disso uma
panacéia.
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