Entrevistas
Brasil
tem preparo técnico, mas é conservador em relação
à clonagem terapéutica
Volnei Garrafa
Cientista
pede maior liberdade para pesquisa com células-tronco
Glaci Zancan
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Cientista pede maior
liberdade para pesquisa com células-tronco
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Professora
da Universidade Federal do Paraná, Glaci Theresinha Zancan foi
presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),
de 1999 até 2003. Recentemente apresentou à câmara
dos deputados a proposta da comunidade científica pedindo a retirada
do artigo da Lei de Biossegurança, que proíbe o uso de células
de embriões humanos para pesquisas. Mesmo sabendo que o tema é
polêmico, pois envolve a morte e destruição de embriões
humanos, a pesquisadora defende o uso de verbas públicas para o
desenvolvimento de pesquisas usando células extraídas de
embriões humanos, que seriam descartados por clínicas de
reprodução assistida. A justificativa de Zancan é
que se as pesquisas forem feitas somente por grandes empresas multinacionais
da área de fármacos, teremos uma série de tecnologias
disponíveis, da qual a maioria da população vai estar
excluída. Para ela, "não podemos deixar de pesquisar
e ter o conhecimento de como isso é feito".
ComCiência
- A Lei de Biossegurança foi aprovada na câmara dos deputados
no dia 4 de fevereiro e mantém, devido principalmente à
pressão da bancada de evangélicos e católicos, a
proibição de manipulação de embriões
humanos. O que mudaria para as pesquisas se esse item fosse retirado da
Lei?
Glaci Zancan - Atualmente, o artigo oitavo da Lei 8.964 de 5 de janeiro
de 1995, no seu inciso quarto do Artigo 13, veda a produção
ou armazenamento de embriões humanos destinados a servir de material
biológico disponível. No meu entender, e se a minha interpretação
está correta, as clínicas de reprodução assistida
também não poderiam estar armazenando embriões, o
que é feito hoje. Essa lei regulamenta transgênicos, mas
não especifica se esses embriões seriam ou não transgênicos,
e nem poderiam ser se é proibido produzi-los. Portanto, a questão
que existe hoje é muito dúbia. A proposta da comunidade
científica, que o professor Antônio Campos de Carvalho, da
UFRJ e eu apresentamos ao congresso, é de retirar do texto este
inciso quarto, que penaliza quem trabalha no tema. Na verdade, estamos
solicitando a retirada desses incisos porque a manipulação
de embriões para a retirada de células-tronco não
tem nada a ver com produção de embriões transgênicos
e, portanto, não é do escopo da lei que regulamenta transgênicos.
Se nem o óvulo, nem o espermatozóide, nem o embrião
foram modificados geneticamente, não se trata de engenharia genética,
e sim de reprodução assistida.
ComCiência
- Deveria então ser criada uma nova lei para regulamentar estas
pesquisas separadamente?
Zancan - Sim. Já existe no senado federal um projeto de lei
de 1999, que trata de reprodução assistida e que deverá
também regulamentar o uso de células de embriões
humanos em pesquisas. Existe um outro projeto de lei de no. 2811, de 1997,
tramitando na câmara federal, que trata de clonagem humana e manipulação
de embriões. Mas a partir de agora não sei como será,
pois a bancada evangélica e a católica são contra
o uso de células-tronco de embriões humanos. Para os religiosos
existe um problema ético fundamental, que passa pela definição
do momento em que começa a vida humana. E no meu entender essa
discussão das questões éticas aparece no congresso
com todo o vigor.
ComCiência
- Vários setores da sociedade acreditam que a vida se inicia no
momento da fecundação. E para a senhora, em que momento
do desenvolvimento começa a vida humana?
Zancan - Por isso é que eu costumo dizer que o assunto é
muito importante, porque envolve a vida humana. É uma discussão
parecida como a que já existe sobre aborto. O que está se
propondo é trabalhar com células do embrião antes
do 14o dia, que é quando começa a formação
do sistema nervoso. É isso que está regulamentado na Inglaterra.
Os pesquisadores consideram que no momento em que o sistema nervoso começa
a ser formado, o embrião já é um novo ser humano.
ComCiência
- Então, para as pessoas que defendem o uso de embriões,
somente com a existência do sistema nervoso é que existiria
o problema ético?
Zancan - É. Para quem defende o uso dos embriões mantidos
nas clínicas de reprodução assistida é isso
que está posto.
ComCiência
- Como a senhora avalia a questão de se trabalhar em laboratório
com embriões que são considerados seres humanos por uma
parcela considerável da sociedade?
Zancan - Eu acho esse assunto muito polêmico. O problema é
que, como existem visões religiosas diferentes, é muito
difícil tratar disso. Por outro lado, você não pode
começar a fazer experiências e obter monstros. É a
mesma história da clonagem por transferência de núcleo
de células somáticas, em que o sucesso é de cerca
de 1/300 e além disso o indivíduo gerado, muitas vezes,
nem é são. Então, até agora não se
avançou. No caso das pesquisas com células pluripotentes,
que vêm do embrião, se estuda a fisiologia da célula
primeiro, ninguém vai colocar esses tecidos já no homem.
Existe um tempo que vai ter que decorrer entre a pesquisa que está
sendo feita no laboratório - para dominar o conhecimento sobre
a célula, saber como ela funciona, saber os benefícios e
como manipular os tecidos sem riscos por meio dessa técnica - até
se chegar a aplicar em seres humanos. Para isso vão existir alguns
anos de pesquisa. Nesse meio tempo, se houver avanços, terá
que acontecer uma discussão ética. Provavelmente esta não
será uma discussão fácil, porque existem milhões
de princípios religiosos. Mas eu acho que compete à comunidade
científica levar isso à discussão.
ComCiência
- E qual é o papel dos cientistas no sentido de esclarecer o público
não especializado sobre os riscos e potencialidades do uso de células
de embriões humanos?
Zancan - Precisamos primeiro permitir a pesquisa para saber se é
possível avançar, porque as pesquisas com uso de células
humanas são muito recentes, começaram em 1998. Assim, o
cientista deve levar para a sociedade a explicação do que
se está trabalhando, sem tabu, para não chegar de repente
e dizer: "clonei um homem", sabendo que isto tem um risco brutal.
Na realidade, você pode estar fazendo coisas antiéticas.
As experiências em ratos são promissoras, mas isso não
quer dizer que terão os mesmos resultados no homem. É um
caminho, não será feito de uma hora para outra. Os passos
que estão sendo dados com as pesquisas envolvendo o uso de células-tronco
adultas são fundamentais para se poder avançar no conhecimento
das outras. A grande diferença entre as células adultas
e as células pluripotentes é que as de adultos são
limitadas na diferenciação de um determinado tipo de tecido,
ao passo que as de embriões podem formar todos os tipos de tecidos.
Essa é a vantagem de poder trabalhar com células de embrião:
teremos mais possibilidades.
ComCiência
- Como a comunidade científica tem se posicionado com relação
a essa questão?
Zancan - Com relação às células-tronco
de embrião humano a posição formal, tanto das academias
de ciência, quanto da Sociedade Americana para o Progresso da Ciência,
é que se possa usar os embriões depositados, com o consentimento
prévio dos doadores desses embriões, e que seriam destruídos
em clínicas de reprodução assistida. Esta é
a proposta, mas que, nos Estados Unidos, não foi aprovada.
ComCiência
- Mas nos Estados Unidos já foram usadas células de embriões
para pesquisas. Como isso está regulamentado lá?
Zancan - As empresas é que estão podendo fazer tudo,
o acesso ao dinheiro público para fazer isso está proibido
e eles só autorizaram a pesquisa com alguns tipos de células.
Estas células já são de propriedade da instituição
que as produziu, inclusive, eles já pediram a patente delas. Se
não for permitido fazer pesquisa com o dinheiro público
todo o conhecimento produzido vai ficar nas mãos desses grupos.
Este é um outro problema: o de propriedade intelectual.
ComCiência
- Como deveria ser tratado o investimento estatal para pesquisas com células-tronco
de embriões humanos?
Zancan - Eu concordo com a posição da Sociedade Americana
para o Progresso da Ciência. Para eles essas pesquisas vão
gerar terapias extremamente caras, e caso não existam pesquisas
públicas, somente uma minoria terá acesso aos eventuais
tratamentos gerados por essas pesquisas. Se o conhecimento avançar
e permitir a existência de terapias, o Estado não vai poder
atender a população, que por sua vez, não vai ter
condições de pagar um tratamento desse tipo. A terapia gênica
também vai ser muito cara. Portanto, no caso de não existir
investimentos públicos, teríamos uma população
muito grande sem o acesso a esses benefícios.
ComCiência
- A proposta dos cientistas norte-americanos para o uso de células-tronco
de embriões humanos prevê uma série de restrições
para evitar, por exemplo, a venda dos embriões para eventuais pesquisas.
Além das restrições legais, quais seriam os outros
mecanismos para evitar este tipo de problema na realidade brasileira?
Zancan - Na realidade, para permitirmos pesquisas com células-tronco
de embriões humanos teríamos que ter toda uma estrutura
adequada. Inicialmente, já existe uma estrutura formada, por meio
da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, do Conselho Nacional
da Saúde do Ministério da Saúde. Este conselho tem
uma resolução pronta sobre isso, que disciplina todas essas
questões. Para usar células-tronco de embriões humanos
teríamos que adotar medidas já usadas para reprodução
assistida, por isso defendemos a regulamentação pela mesma
lei que trata de reprodução assistida. Não é
só o uso do embrião, é a própria reprodução
que tem que ser regulamentada, porque no Brasil ela não foi. Mas
a intenção é que sejam usados os embriões
congelados das clínicas de reprodução assistida que,
em determinado momento, serão descartados. Qualquer uso comercial
de embriões deve ser punido.
ComCiência - A senhora acredita que já temos estrutura
para uma legislação que permitisse pesquisas e uso de células-tronco
embrionária para tratamentos?
Zancan - A legislação que regulamenta a pesquisa eu
acho que está atrasada! Já o uso de eventuais tecnologias
decorrentes das pesquisas em humanos ainda demora. Tem que começar
elaborando protocolos experimentais, depois, é preciso dominar
toda a tecnologia de cultura de células humanas e, como já
disse anteriormente, começamos isso somente em 1998. Para produzir
células humanas em laboratório é preciso estar em
condições assépticas totais, pois existe uma série
de riscos. Precisamos de laboratório de segurança, por exemplo,
pois não pode haver nenhum tipo de contaminação.
Cada projeto tem que ser analisado individualmente, de maneira cuidadosa.
A Comissão de Ética em Pesquisa deverá ter comissões
institucionais que irão avaliar tudo, com procedimentos semelhantes
aos adotados para outras pesquisas com seres humanos. E o resultado vai
depender do domínio da técnica e do resultado das pesquisas
mundiais.
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