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Brasil tem preparo técnico, mas é conservador em relação à clonagem terapéutica
Volnei Garrafa

Cientista pede maior liberdade para pesquisa com células-tronco
Glaci Zancan

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Brasil tem preparo técnico, mas é conservador em relação à clonagem terapéutica

Um país com preparo técnico, mas excessivamente conservador. É assim que o professor Volnei Garrafa, presidente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), define o Brasil com relação às pesquisas com células-tronco. Apesar de católico, Garrafa defende a utilização de embriões de seis a oito dias na obtenção das células com fins terapêuticos. Para a legislação brasileira, o período já caracteriza a existência de um ser humano. Por isso, a destruição do feto é considerada crime.
Em meio à polêmica, o presidente da SBB alerta que a demora nas discussões sobre o tema pode custar caro ao país e defende a urgência na criação da Comissão Nacional de Bioética. Em novembro, o Governo deu o primeiro passo nessa direção: editou uma portaria que prevê a criação de um grupo de trabalho, que irá apresentar uma proposta de modelo de comissão. A SBB tem três representantes nesse grupo. Nesta entrevista, Garrafa fala sobre a a posição da Sociedade, a situação do Brasil e de outros países com legislação mais avançada sobre o assunto.

ComCiência - O Brasil está preparado para realizar pesquisa com células-tronco?
Volnei Garrafa -
Sim, do ponto de vista técnico, o Brasil está preparado. Temos grupos de pesquisa de alta qualificação e, com a globalização, maior acesso à informação; temos centros de investigação qualificados e pesquisadores dessa área com capacidade reconhecida.

ComCiência - E do ponto de vista legal, como está a situação do Brasil?
Garrafa -
Há um longo caminho a se percorrer. Infelizmente, o Brasil é um país extremamente conservador e atrasado nas discussões nesse campo. Os mecanismos de que dispomos são projetos de lei com um perfil de moralidade extremamente conservador. Temas como aborto e eutanásia, por exemplo, respondem a uma legislação de 1940. O mundo evoluiu muito mais de 1940 para cá do que toda a história até 1940.

ComCiência - O que impede o andamento das discussões no Congresso Nacional?
Garrafa -
Quando essas discussões vão para o Congresso Nacional, formam-se dois grupos de parlamentares: os absolutamente favoráveis e os absolutamente contrários. Há uma radicalização que causa uma grande intransigência e nenhum avanço. Esse é o motivo por que os países latino-americanos são os mais atrasados do mundo em termos de legislação com relação ao aborto, por exemplo. No Brasil, as discussões são absolutamente proibitivas com relação à manipulação de células-tronco embrionárias e embriões humanos.

ComCiência - Qual é a situação atual da regulamentação de pesquisas com células-tronco no Brasil?
Garrafa -
As leis brasileiras não são específicas para a clonagem terapêutica (com finalidade de curar determinadas doenças, e não de reproduzir seres). Elas proíbem a manipulação de células germinativas humanas.

ComCiência - Mas o país faz pesquisas com células-tronco.
Garrafa -
Mas não com embriões humanos.

ComCiência - Existe alguma exceção para o uso de células-tronco embrionárias no Brasil, no caso de aborto espontâneo ou de embriões descartados por clínicas de fertilização, por exemplo?
Garrafa -
Não, não se pode manipular célula desse tipo. Pode-se até extraí-la, mas não alterá-la.

ComCiência - Que país soube resolver essa questão de forma adequada?
Garrafa -
A Inglaterra, por exemplo, em 1984, nomeou uma comissão para definir uma legislação sobre o tema. A lei inglesa prevê que, até o 14o dia de desenvolvimento, não se tem um embrião, e sim um pré-embrião, que pode ser manipulado. A partir do 15o dia, surgem os primeiros indícios do sistema nervoso, então o embrião já não pode mais ser usado em pesquisas. Nos Estados Unidos, a utilização de embriões humanos é proibida. Por isso, muitos pesquisadores americanos estão migrando para a Inglaterra.

ComCiência - Que tipos de células-tronco não embrionárias podem ser usadas em pesquisas no Brasil?
Garrafa -
Existem três fontes de células-tronco humanas: indivíduos adultos (elas podem ser retiradas de órgãos como fígado e baço, ou da medula óssea, por exemplo), cordão umbilical e embriões. Nos dois primeiros casos, não há conflito moral. Mas são as células do embrião, de seis a oito dias, que têm a maior potencialidade para a clonagem terapêutica. E para a legislação brasileira, ele já é vida. Como se trata de um ser humano, sua utilização para a retirada de células é considerada aborto, e isso é crime.

ComCiência - O senhor discorda dessa visão?
Garrafa -
Para mim, como cientista, mesmo sendo católico, acho que o embrião não é uma pessoa. Somente a partir do terceiro mês, quando começam a surgir elementos constitutivos de um ser humano, é que ele pode ser considerado um ser humano. Até então, é um conglomerado de células. Por isso, sou favorável ao aborto até a 12a semana. Quase todos os países avançados têm legislação que permite o aborto. A proibição é um resquício da América Latina, um continente extremamente atrasado sob o ponto de vista da moralidade, principalmente devido a injunções religiosas.

ComCiência - Esse atraso pode prejudicar as pesquisas no Brasil?
Garrafa -
Muitíssimo. A clonagem terapêutica (feita a partir de células-tronco) é uma das saídas para doenças como a distrofia muscular, por exemplo, que leva à morte. Se a Inglaterra descobrir um medicamento que resolva o problema de uma criança portadora da doença, certamente o Brasil vai permitir a importação desse medicamento, que terá royalties caríssimos. Quando esse remédio estiver na prateleira das farmácias, ninguém vai questionar se a matéria-prima foi uma célula-tronco de um embrião humano.

ComCiência - Como a bioética vê essa questão?
Garrafa -
Trata-se de um problema prático, que é a vida de uma pessoa, e moral, que é a utilização de células-tronco de um embrião. A bioética laica (desvinculada de dogmas religiosos) defende que sejam resolvidos primeiro as questões práticas, depois as morais.

ComCiência - Mas não há o perigo se criar um comércio de embriões?
Garrafa -
Defendemos a utilização de células-tronco embrionárias humanas para pesquisa, mas não queremos que qualquer laboratório faça essa manipulação. Aí entra o papel regulatório e controlador do Estado. O Ministério da Saúde deve indicar e credenciar alguns laboratórios, que poderão dispor de dois ou três embriões que seriam descartados ou viriam de um aborto espontâneo. A vida humana vai continuar sendo respeitada.

ComCiência - Qual a posição da Sociedade Brasileira de Bioética com relação a essas pesquisas?
Garrafa -
O mundo hoje não é mais canônico, nenhuma religião tem o direito de impor a sua visão moral. O Estado deve ser laico e pluralista. Por isso, a Sociedade Brasileira de Bioética defende fortemente a criação de uma Comissão Nacional de Bioética, que deve ter uma formação multidisciplinar, com relação aos seus integrantes, e pluralista, quanto à visão moral de seus componentes.

ComCiência - Qual seria a vantagem de uma comissão como essa?
Garrafa -
Como seus integrantes serão acadêmicos, com uma visão de tolerância maior, certamente vamos conseguir aproximar pólos opostos. As propostas sobre utilização de células-tronco embrionárias, assim como genômica, transplante de órgãos etc, avançam mais significativamente numa comissão desse tipo. A idéia é que essa comissão encaminhe para o executivo a proposta já adiantada. O Congresso vai trabalhar em cima de superações, evitando aquela polarização atrasada entre parlamentares.

ComCiência - Qual é a disposição do governo em criar essa comissão?
Garrafa -
Em 27 de novembro, o governo editou uma portaria para a criação de um grupo de trabalho, que irá elaborar uma proposta de criação da Comissão Nacional de Bioética. O coordenador será o ministro da saúde, Humberto Costa. A Sociedade Brasileira de Bioética tem três representantes nesse grupo. Vamos estudar todos os modelos internacionais de Comissão de Bioética. A idéia é que a comissão seja criada já no ano que vem.

ComCiência - Na sua opinião, que país serve como exemplo para o Brasil?
Garrafa -
A França, que tem um modelo muito democrático desde 1981, denominado Comissão Nacional de Ética para Ciências da Vida. É um comitê permanente, mas renovado periodicamente. Seus integrantes elaboram documentos de discussão moral.

ComCiência - Mas recentemente, a câmara baixa do parlamento francês aprovou um projeto de lei que proíbe a clonagem humana tanto para fins reprodutivos quanto terapêuticos.
Garrafa -
É importante não confundir as posições do parlamento francês com as posições da comissão francesa, que é apenas consultiva. Essa, aliás, é uma característica fundamental dessas comissões, que não são decisórias. Elas avançam nas discussões de forma que o poder executivo possa encaminhar propostas mais avançadas para o legislativo. Os modelos francês, italiano e canadense são parecidos. Já o norte-americano é muito centralizado nas mãos do presidente da república.

ComCiência - O que deve constar numa lei brasileira sobre células-tronco?
Garrafa -
Espero que o Brasil tenha uma visão moral aberta. Essas pesquisas vão beneficiar vidas humanas. A clonagem terapêutica é uma esperança muito grande para o futuro. Se questões morais começarem a criar obstáculos, irão atrasar o país nessa questão. Isso vai custar caro.

ComCiência - Qual a importância da informação sobre essas pesquisas para a população?
Garrafa -
Na semana em que nasceu a ovelha Dolly, em 1997, surgiram nove projetos de lei de deputados conservadores, todos contrários à clonagem, sem sequer saber direito o que era. Somos contrários à clonagem reprodutiva, não há justificativa para fazê-la. Mas é preciso haver discussão, para que as pessoas fiquem mais bem instrumentalizadas para tomar decisões e romper tabus e preconceitos.

Atualizado em 10/02/04

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