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Novas tecnologias sob o olhar da antropologia
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Novas tecnologias sob o olhar da antropologia

Nos últimos anos algumas pesquisas na área de ciências sociais têm focalizado os avanços das biotecnologias para analisar diferentes aspectos como seu consumo ou recepção, seu impacto na sociedade, no imaginário e nos valores, e também as relações de poder que as perpassam. Para o antropólogo e ex-diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro Luiz Fernando Dias Duarte, apesar de intensa e diversificada, essa produção científica brasileira é pouco integrada aos circuitos internacionais e, por conta do "paroquialismo" das hard sciences, tem pouca visibilidade nesse meio científico. Em entrevista à ComCiência ele abordou essa questão e sua experiência como coordenador do grupo de trabalho (GT) da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) Pessoa e corpo: novas tecnologias biológicas e novas configurações ideológicas, que seleciona periodicamente pesquisas sobre o tema a serem apresentadas na reunião anual da entidade.

ComCiência - Grande parte das discussões e dos questionamentos sobre as novas biotecnologias estão centradas na bioética. Como o senhor avalia esse foco das discussões?
Luiz Fernando Duarte -
O que se chama de bioética hoje é certamente a reação emergencial possível aos desafios surpreendentes que a rápida evolução das biotecnologias impôs ao pensamento ocidental moderno no final do século XX. Esses fenômenos são, porém, muito mais graves e desafiadores do que tem sido possível pensar até agora no âmbito da bioética. A rapidez e complexidade dos acontecimentos nessa área e a sua relativa imprevisibilidade são os aspectos que mais dificultam a organização de uma reflexão abrangente e profunda, capaz de dar conta tanto de seus aspectos mais comportamentais e programáticos quanto dos mais estruturais e cosmológicos.

ComCiência - A bioinformática traz mudanças para nossas representações de mundo e do homem?
Duarte -
A extensão e intensidade das novidades aportadas pelas novas tecnologias da vida não correspondem necessariamente a alterações profundas nas linhas centrais das representações do mundo e do homem correntes ou hegemônicas no âmbito da cultura ocidental moderna. Na verdade, as novas descobertas representam realizações de desejos e ambições contidos na cosmologia ocidental desde sua inflexão moderna, em torno do século XVIII. Penso em valores como o do universalismo, essa disposição de conhecer e dominar o universo através da razão aplicada, que veio atender - através do empreendimento científico - ao ideal de uma ilimitada "perfectibilidade" humana. Um dos pontos básicos do universalismo original era o do seu fisicalismo linear, que hoje ressurge com toda força, na recusa às interpretações mentalistas ou simbolistas da experiência humana. Isso não significa negar importância às novas tecnologias, já que elas não atualizam simplesmente esses velhos anseios. Elas lhes dão formas específicas, atualizando inclusive potenciais tensões estruturais antigas. É fundamental entender como essas versões do nosso potencial de conhecimento e intervenção sobre o mundo acabaram por se manifestar e impor-se à dinâmica social contemporânea.

ComCiência - E qual a influência dessas novas tecnologias sobre conceitos como normal e anormal?
Duarte -
As classificações de normalidade no ocidente moderno modificaram-se várias vezes - e em diferentes direções - desde o século XVIII. A tendência fisicalista atual na psiquiatria, por exemplo, antecede os grandes e recentes avanços das biotecnologias. A DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), com sua disposição empirista radical e ingênua, já vinha impondo uma completa releitura das perturbações humanas, com a recusa das interpretações psicogênicas, e uma agenda estritamente dependente das inovações farmacológicas dos grandes laboratórios. É um dos temas mais urgentes e inquietantes da pesquisa contemporânea, pelo seu potencial de intervenção desqualificante da complexidade do humano ou pelo seu mecanicismo empobrecedor da potência simbólica.

ComCiência - As novas tecnologias potencializam a discursividade científica?
Duarte -
A crença na ciência é um fenômeno antigo na cultura ocidental moderna, como mencionei. O que se alterou entre os séculos XIX e XX foi a extensão da legitimidade dessa crença. No final do século XX, pode-se afirmar que a legitimidade da ciência atingiu um ápice de sua divulgação e extensão, embora ainda não universal. Não pode se esquecer, por outro lado, que a cada movimento da disposição universalista, de que a ciência é a ponta de lança, corresponde uma reação "romântica", ou seja, comprometida com a totalidade, o fluxo, a relação entre sujeito e objeto etc. Isso faz com que as novas tecnologias, que não são senão a última fronteira conhecida do universalismo, convivam hoje com um conturbado horizonte de novas religiosidades, novas disciplinas "holísticas", tanto quanto no começo do século XIX. O resultado dessa tensão é hoje imprevisível, mas muitas pesquisas tópicas em curso podem nos trazer sinais de interpretação bem-vindos.

ComCiência - Pensando nas novas tecnologias, o senhor acha possível dizer que a arte e a ficção científica antecipam feitos da ciência?
Duarte -
O fundamental da visão antropológica a esse respeito é a compreensão de que todos esses fenômenos, científicos, artísticos, literários etc, são manifestações de uma mesma cultura, por menos razoável que isso pareça ao senso comum contemporâneo, que tem os olhos embaçados pela aparente diversidade intra-ocidental, e que há, portanto, uma profunda e inevitável solidariedade entre todos eles. Não são coisas que pudessem ter acontecido com os antigos gregos, os chineses clássicos, os iatmul ou os carajá. É compreensível assim que a arte ocidental tenha profundas relações com a ciência ocidental hoje, assim como teve outrora com a religiosidade ocidental ou com a filosofia ocidental. O romance de Mary Shelley sobre o Frankenstein certamente já continha, por exemplo, muitos dos pontos cruciais de uma disposição de constituir uma biotecnologia autonomizada dos antigos limites da "criação" divina. O papel da arte ocidental, aí incluídas a literatura e o cinema, sempre foi o de dar voz aos anseios e percepções mais profundos e sensíveis de nossa cultura. Ela não poderia deixar assim de ter expressado os temas graves do controle humano sobre os processos vitais - hoje aparentemente propiciados pelas biotecnologias.

ComCiência - O senhor poderia falar um pouco sobre os trabalhos que têm sido enviados para a Anpocs?
Duarte -
Um ponto importante da atitude da antropologia a respeito das novas tecnologias é o de considerá-las, como todos os demais fenômenos humanos, em seu contexto cultural. Essas novidades não ocorrem no vácuo ou num suposto vase clos exclusivo e asséptico da ciência. Elas correspondem a uma vasta organização de disposições, ansiedades, desejos culturalmente modelados, que se institucionalizam em laboratórios, vocações, bolsas, dotações para pesquisa, pareceres de comissões e academias, espaço em revistas etc. É visualizando esse campo, que os trabalhos apresentados no GT articulam pesquisas sobre biomedicina, genética ou novas tecnologias. Algumas pesquisas interessantes têm sido debatidas no GT. Cito como exemplo os resultados atingidos por Jane Russo, do Instituto de Medicina Social, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, (IMS / UERJ) e sua equipe a respeito das premissas ideológicas e das condições políticas da emergência da nova psiquiatria biológica, em função da relevância prática dessas novidades no atendimento às perturbações humanas. Também me impressiona o trabalho de Naara Luna, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, sobre o universo das "novas tecnologias reprodutivas" e seu consumo social contemporâneo no Brasil. São fronteiras dessas "novidades" cujas repercussões já podem ser observadas e descritas.

ComCiência - Como está a produção das ciências humanas no Brasil sobre essas questões?
Duarte -
A produção brasileira já é intensa e diversificada, como se está vendo nos encontros de nosso GT na Anpocs. Tivemos neste ano a maior dificuldade de selecionar os doze trabalhos possíveis de serem apresentados dentre cerca de cinqüenta propostas interessantes. Ela se ressente, como em todas as ciências humanas brasileiras, de uma maior integração com os circuitos internacionais (o problema da inacessibilidade da língua portuguesa é grave) e, talvez, de uma falta de visibilidade nos meios científicos hard, aqueles que nós observamos, descrevemos e criticamos. Mas isso se deve mais ao paroquialismo dos cientistas hard e seu desinteresse e ignorância da reflexão filosófica, sociológica ou antropológica do que a características de nossa própria comunidade.

ComCiência - Quais são os teóricos mais clássicos que podem ser recuperados para uma discussão sobre as biotecnologias?
Duarte -
Diferentemente das ciências hard (naturais, físicas e matemáticas), as ciências humanas não operam pela superação absoluta das hipóteses, mas pela sua contínua contraposição e contraste. Raramente uma importante proposta em ciências humanas desaparece totalmente do horizonte de debates e discussões legítimo. Isso significa que, assim como para qualquer outro assunto, todo o nosso acervo de reflexão historicamente sedimentado, encontra-se à disposição para a interpretação de novos fenômenos ou questões. Dentro desse acervo, é claro que algumas teorias ou obras podem ser mais imediatamente pertinentes ou relevantes. No caso das biotecnologias, penso particularmente em Marcel Mauss, em Margaret Mead, em Clifford Geertz, em Claude Lévi-Strauss, mas estou consciente do fato que eles poderiam ser invocados para muitos outros níveis de dúvidas antropológicas hoje.

ComCiência - De forma mais geral, as ciências sociais, a filosofia e a história têm dado conta dos avanços da biologia e das mudanças das novas tecnologias?
Duarte -
Não, por mais que se faça nessa área, a velocidade, a complexidade e a imprevisibilidade desses avanços torna inviável uma cobertura crítica completa, ou mesmo razoável. A verdade é que o horizonte das novidades biotecnológicas é apenas uma fração dos muitos aspectos problemáticos de que têm que dar conta as ciências humanas no mundo contemporâneo. Não há nem pessoas, nem instituições, nem recursos suficientes para produzir uma cobertura exaustiva da realidade corrente. E, se houvesse, ainda assim a realidade escaparia para mais além dos nossos esforços, já que o próprio esforço de pesquisa precisaria ser observado, analisado, criticado. Uma estrutura em abismo nos espreita continuamente nesse sentido.

ComCiência - Como o senhor vê o papel da biologia na atualidade e suas uniões com outras disciplinas, como a computação e a física? Pode-se dizer que essas disciplinas exercem um papel de destaque no panorama da ciência hoje?
Duarte -
Essa é uma questão muito interessante e de difícil resumo. Há uma história da construção, hegemonia e legitimidade diferencial das ciências na cultura ocidental moderna desde o século XVII. A biologia esteve no centro dinâmico em meados do século XIX e perdeu essa posição estratégica para a física posteriormente. Hoje parece que a biologia retoma o cetro perdido. Mas "biologia" é hoje uma categoria insuficiente para dar conta da complexidade do campo, dividido em múltiplas especialidades e focos de pesquisa. Qualquer afirmação mais sistemática a esse respeito exigiria uma pesquisa centrada no tema geral. A interpretação sociológica das ciências hard é relativamente nova, ainda incipiente, localizada, incapaz de nos apresentar um quadro mais abrangente de sua organização interna, de sua dinâmica e de sua progressão.

ComCiência - O crescimento das biotecnologias pode ser relacionado com um maior destaque ou financiamento mais direcionado para as ciências aplicadas?
Duarte -
A ciência aplicada foi uma dimensão crucial do empreendimento científico ocidental moderno desde seus primeiros passos. A legitimidade adquirida pela ciência dita pura jamais teria se estabelecido sem o aval dos avanços tecnológicos percebidos pela massa da população. Nós, pesquisadores, podemos saber que não se faz tecnologia (sobretudo de ponta, sofisticada, como a que prevalece hoje) sem os fundamentos do saber crítico da ciência pura, mas isso não corresponde ao sentimento coletivo de nossas sociedades. Creio, porém, que os dilemas do financiamento dirigido ou "a fundo perdido", do direcionamento público ou privado, dependem hoje menos da oposição entre ciência pura e aplicada e mais da tensão entre interesses nacionais e interesses comercial-industriais.

Atualizado em 10/08/03

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