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Projeto usa arqueologia para desvendar origem de língua
Stephen Shennan

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Projeto usa arqueologia para desvendar origem de língua


Foto: Rodrigo Cunha

Em entrevista concedida à ComCiência, Stephen Shennan, professor de arqueologia teórica e diretor do Centro para Análise Evolutiva do Comportamento Cultural, do Instituto de Arqueologia da University College London, fala do crescente interesse em pesquisas sobre cultura tradicional arqueologicamente traçável e de sua recente viagem à Amazônia com pesquisadores da USP, para estudar a viabilidade de um projeto que une estudos lingüísticos e arqueológicos.

ComCiência - O projeto interdisciplinar que estuda a dispersão dos povos falantes de línguas do tronco Tupi na América do Sul envolve pesquisadores brasileiros e europeus. Qual é a participação do seu Centro nesse projeto?
Stephen Shennan -
Esse projeto é o Tupi Comparativo, um projeto em lingüística. A questão é [estudar] qual é a origem das línguas Tupi e como as línguas se espalharam pelo Brasil, Paraguai, onde existem línguas Tupi. Há um debate já muito antigo sobre porque essas línguas se espalharam, com idéias muito diferentes. Os lingüistas têm uma idéia, os arqueólogos, no passado, tinham outra. Um arqueólogo do Rio Grande do Sul, por exemplo, o [José Joaquim Justiano Proenza] Brochado, escreveu, nos anos 70, uma dissertação onde sugeriu que a origem das línguas desses povos Tupi foi na Amazônia Central, na região de Manaus, talvez há três mil anos atrás. Mas é claro agora, por causa dos trabalhos de Eduardo Neves [da USP], que essa idéia não funciona mais. A cerâmica que o Brochado achava ser muito antiga, agora sabemos que é muito mais recente, entre dois mil e dois mil e quinhentos anos atrás. Mas mesmo que isso não seja verdade o problema que fica é: "onde essas línguas tiveram sua origem?" Alguns lingüistas, no passado, achavam que teria sido no Rio Grande do Sul, área que hoje tem grupos Guarani. Mas isso também não é possível pois não há muita diversidade de línguas Tupi no sul do Brasil. Só há línguas da família Tupi-Guarani e isso é típico do sul e da costa leste do Brasil. Parece que a maior diversidade de línguas está em Rondônia, ondem existem representantes de dez famílias diferentes do tronco Tupi. Deve haver uma conexão entre os padrões lingüísticos que vemos, hoje e no passado recente, com os padrões arqueológicos, a cultura material.

ComCiência - Como surgiu a idéia de ligar estudos arqueológicos com estudos linguísticos?
Shennan -
Isso é importante e não interessa só a arqueólogos e lingüistas da América do Sul. Nos últimos vinte anos, na Europa e na Ásia, as conexões entre cultura material e línguas ressurgiram. Os antropólogos, no começo do século XX, já se interessavam por essas questões mas acho que, talvez depois do meio do século, os pesquisadores perderam o interesse nelas, pareciam difíceis demais para abordar. Na Europa, vivia-se o problema ideológico também. O exemplo mais famoso de tentativa de estabelecer ligações entre línguas e cultura material foi o das línguas indo-européias. Essas tentativas de ligar arqueologia e o estudo das línguas eram usadas pelos nazistas para justificar as expansões dos alemães, por exemplo, para a Europa do leste. Pode-se dizer que havia uma sombra sobre tentativas de ligar arqueologia e lingüística. Hoje a idéia é que a razão principal da expansão das línguas foi, na verdade, a expansão das populações.

ComCiência - E com isso, surgiram novas línguas?
Shennan -
Exatamente. Enquanto os grupos se afastavam uns dos outros por causa dos processos de expansão e migração, perdiam-se as ligações sociais entre os diferentes grupos. Muitos pesquisadores têm tentado estabelecer uma conexão entre a origem das línguas e a origem da agricultura nas diferentes regiões do mundo. A idéia é que, com a expansão da agricultura, as populações cresceram e se espalharam para novas regiões. A expansão da agricultura para Europa foi um processo de expansão das populações, com línguas novas. Na América do Sul também, a questão é "qual foi o processo de expansão das línguas Tupi?". Ao que parece houve expansão de populações. Mas ninguém entende esse processo, o lugar de origem, as razões para o espalhamento. Não sabemos o suficiente sobre o modo de subsistência dos povos antigos do Brasil.

ComCiência - Além de fazer a relação com agricultura também se faz a relação com a cerâmica...
Shennan -
A idéia é que se pode explicar a cerâmica como um traço dos povos no passado. As línguas têm uma continuidade temporal porque os pais ensinam para os filhos, por gerações contínuas. Com a cerâmica é o mesmo, as mães ensinam para as filhas. A questão para os arqueólogos é [saber] se há paralelo entre os padrões de transmissão linguística e os padrões de transmissão do conhecimento da cerâmica. Se as ligações entre esses dois padrões for muito estreita haverá uma correlação entre as distribuições das cerâmicas e as distribuições das línguas. Se esse for o caso, os arqueólogos podem usar a cerâmica como modo de inferência da história das línguas. Mas isso é muito controverso. Acho que, em alguns casos, existe uma boa correlação mas é claro que, em outros casos, ela não existe. A Fabíola [Silva], do MAE/USP, uma etnoarqueóloga, trabalha com a cerâmica dos Assurini do Xingu de hoje, estudando sistemas de ensino e aprendizagem da cerâmica. Parece que eles têm regras muito bem definidas para fazer a pasta de cerâmica, para decorá-la. As mulheres ensinam essas regras para as filhas com muito cuidado, as quais devem aprender a fazer a cerâmica [de forma] correta. Eles não gostam de erros na cerâmica. Se isso é verdade, o arqueólogo vai achar uma tradição que não vai mudar muito durante o tempo. E talvez exista a possibilidade de mostrar uma conexão entre o tipo de cerâmica no presente e a língua no presente. Há palavras particulares para a cerâmica, existe uma mitologia para ela também.

ComCiência - Mas esse cuidado com a cerâmica não existe para todos os povos...
Shennan -
Isso ninguém sabe. Nossa idéia é estender esse tipo de estudo para outras famílias do tronco Tupi, porque o projeto só pode funcionar se for comparativo, exatamente como o projeto linguístico. É preciso estudar ou a cerâmica de hoje, onde as pessoas ainda a fazem, ou é preciso falar com os velhos que ainda lembram como se fazia a cerâmica. Podemos perguntar sobre as decorações, sobre as pastas da cerâmica, sobre as palavras especiais da cerâmica, sobre a mitologia da cerâmica nos diferentes grupos. Assim podemos construir um quadro mais amplo das semelhanças e diferenças entre os grupos, comparar com as semelhanças e diferenças lingüísticas. Da mesma maneira como os lingüistas constroem árvores das relações entre as línguas, podemos tentar construir árvores das relações entre as cerâmicas dos diferentes grupos. Mas, claro, tudo isso é presente. O problema, para os arqueólogos, é investigar se é possível achar o mesmo tipo de cerâmica que esses grupos ainda fazem hoje ou faziam no passado recente, no registro arqueológico do passado. Para isso, é preciso fazer escavações arqueológicas.

ComCiência - Um dos povos com quem vocês pretendem trabalhar, os Karitiana, poderão se beneficiar do estudo arqueológico para aumentar suas terras?
Shennan -
Exatamente. Os arqueólogos podem visitar essas supostas aldeias antigas para confirmar que são, na verdade, aldeias antigas dos índios [Karitiana]. Podem, por exemplo, colecionar amostras de cerâmica e definir as fronteiras dos sítios das aldeias antigas. É muito difícil encontrar os sítios arqueológicos na mata, mas quando se encontra o sítio arqueológico, é muito fácil reconhecer porque, além da cerâmica, existe essa terra preta, que é uma evidência boa da ocupação humana no passado. No ano passado, um cacique, que nasceu nesse lugar que os Karitiana querem de volta, entrou na terra acompanhado por primos e construiu uma casa tradicional. Quando chegamos, a casa tinha sido completamente queimada por fazendeiros e parece que isso só aconteceu apenas dois dias antes, porque ainda tinha fumaça lá. Foi trágico ver os restos da casa.

ComCiência - Esse tipo de conflito pode inviabilizar o projeto?
Shennan -
É possível. Estou com medo que isso vá tornar o projeto muito difícil, pelo menos com os Karitiana. Tem outros lingüistas do Projeto Tupi Comparativo trabalhando com outros grupos, talvez seja possível continuar o projeto trabalhando com eles. Mas ainda não sei exatamente qual deve ser o próximo passo.

ComCiência - Que impacto o projeto pode causar nas teorias já existentes sobre a dispersão dos povos Tupi?
Shennan -
Eu acho que a única possibilidade de entender a origem dos povos Tupi é fazer um projeto arqueológico ao lado do projeto lingüístico. Deve haver uma contrapartida arqueológica para esse projeto lingüístico. Senão, acho que vai ser simplesmente impossível encontrar soluções para os problemas das origens Tupi.

ComCiência - Mas algumas teorias terão que ser revistas?
Shennan -
Acho que ninguém aceita mais as teorias existentes. Elas estão completamente inviabilizadas. E hoje em dia, não existe uma alternativa. Acho que a única possibilidade de construir uma alternativa é fazer um projeto desse tipo, com os arqueólogos trabalhando junto com os lingüistas. E também fazendo etnoarqueologia, essa arqueologia do presente, onde ainda é possível estudar os sistemas de ensino e aprendizagem da cultura tradicional dos grupos.

Atualizado em 10/09/03

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