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Projeto usa arqueologia para desvendar origem de língua
Stephen Shennan

Arqueologia subaquática ganha espaço no Brasil
Gilson Rambelli

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Arqueologia subaquática ganha espaço no Brasil

A arqueologia subaquática vem ganhando espaço no Brasil e um dos responsáveis por isso é Gilson Rambelli, doutorando em arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. No ano passado foi premiado pela Sociedade de Arqueologia Brasileira, em reconhecimento por sua preocupação com a preservação dos sítios subaquáticos e no mesmo ano lançou o livro de divulgação científica Arqueologia até debaixo d'água, que trata em linguagem simples e contagiante das principais questões que envolvem esta ramificação da arqueologia. Nesta entrevista Rambelli fala de sua experiência profissional e discute a legislação que regulamenta a atividade. Segundo ele, houve um retrocesso ao se permitir que o explorador do sítio obtenha algum tipo de lucro - 40% do que for encontrado no fundo do mar.

ComCiência - A legislação que rege a arqueologia subaquática foi alterada. A lei vigente é a 10.166, de 2000, que transformou a Lei 7.542, de 1986. Qual a principal mudança?
Gilson Rambelli -
É essa lei que vigora hoje. Existe uma discussão desde a Convenção do Direitos do Mar, da ONU [Organização das Nações Unidas], que criou alguns artigos que demonstram essa preocupação com o patrimônio cultural subaquático e sugeriu que a Unesco trabalhasse melhor a questão, criando uma Convenção exclusiva para tratar de questões como a quem pertence os bens encontrados, o que foi encontrado, quem pode explorar. E o que aconteceu? O Brasil, que é signatário dessa convenção e que já tinha essa lei de 1986, com uma portaria de 1989 que proibia a exploração abusiva dos sítios, retrocedeu. Na visão do mundo estávamos bem, mas como a indústria da caça ao tesouro é muito forte e ameaçadora inclusive, começou a fazer um lobby no Congresso Nacional para que essa lei fosse alterada e no dia 27 de dezembro de 2000, foi aprovada a modificação que abriu a nossa lei para a caça ao tesouro. Isso ocorreu entre o Natal e o Ano Novo. Quando a Sociedade de Arqueologia Brasileira descobriu e começou a se articular, era início de janeiro; tentou acionar o Ministério Público mas estavam todos de férias.

Mas a lei até agora não foi regulamentada, o que vai acontecer somente quando alguém fizer com que ela seja cumprida. O problema é que ela tem um furo. Quando alguém encontra um sítio tem que declarar que o encontrou e tem que dizer o que encontrou lá. Abre-se então uma licitação. O descobridor do sítio tem prioridade nessa licitação. Porém, quando surgem as exigências para esse tipo de intervenção, que não são científicas e sim técnicas (tecnologia, equipamentos), o pequeno não consegue, mas as empresas que têm grandes navios, muitas delas multinacionais, conseguem. O que ocorre é que ninguém está declarando ter encontrado sítios com receio de não poder explorar. Ou seja, a lei não resolveu o problema e a exploração continua sendo feita na clandestinidade. Por sorte até, pois por onde a caça ao tesouro oficializada passou não deixou nada para contar a história, e enquanto isso não é oficial, ocorre um saque aqui, outro ali, mas não é tão devastador.

ComCiência - E a Convenção da Unesco?
Rambelli -
Aí saiu a Convenção em 2001 e a nossa lei ficou contraditória em relação ao resto do mundo. Ela dá as diretrizes de como deve ser feita uma pesquisa. Se um mergulhador, mesmo sem a formação em arqueologia, quiser explorar o sítio ele pode, mas tem que seguir as regras e procedimentos que a Convenção sugere, que preza pela arqueologia de conservação. Dá uma liberdade mas respondendo a exigências, como acontece em terra. Hoje, para se fazer uma pesquisa arqueológica em terra, é preciso entrar com uma documentação especificando quem irá trabalhar no projeto, quem é o arqueólogo responsável, o currículo desses profissionais, senão não consegue e em água não era assim. Nos outros países passou a ser e, no Brasil, ainda não é assim. Por isso estamos brigando para mudar isso. Só aqui e em Moçambique o lobby desses caçadores foi mais forte. Mas quando damos alguma palestra ou realizamos cursos de mergulho, vemos mudanças na forma das pessoas encararem a arqueologia subaquática. Em vez do mergulhador pensar em ter a peça em casa, já considera melhor ter o nome em uma pesquisa ou em um livro como um dos descobridores daquele material.

ComCiência - Desses achados, nem tudo tem valor comercial, certo?
Rambelli -
Não, mesmo porque a maioria dos sítios já foi explorada pelos contemporâneos do acidente. Eles tinham técnicas de mergulho de profundidade que, para nós ainda são difíceis, mas eles desciam e limpavam esses naufrágios. A caça ao tesouro vive hoje não desses artefatos que podem ser encontrados, mas sim dos investidores. Esses caçadores procuram investidores, uma espécie de mecenas da atualidade, e dizem que encontraram um navio que tem isso e aquilo, o que muitas vezes é pura especulação. Por vezes até encontram a embarcação e depois dizem aos investidores que não tinha nada. Cabe a nós, arqueolólogos, descobrir qual a estratégia para fazer com que esses mecenas invistam também nas nossas pesquisas. O nosso trabalho é produção de conhecimento enquanto o deles é uma aventura lucrativa mas que, na maioria das vezes, não dá em nada. Para conseguirmos uma roupa de mergulho é difícil enquanto nesse outro tipo de negócio gasta-se muito. Acho que depende do discurso. Eu tenho um comprometimento com a seriedade e não posso prometer que vou achar a Atlântida, enquanto tem gente que faz isso. O fundo do mar mexe com o inconsciente das pessoas, tem pessoas que têm adoração por isso. Se conseguíssemos convencer esses investidores, teríamos mais uma forma de financiamento para pesquisa.


Madeira sendo embalada para ser retirada
Foto: F. Alves/CNANS Portugal

ComCiência - Quais são os cuidados que se deve ter para retirar os artefatos do fundo do mar?
Rambelli -
Uma das coisas condenadas pela convenção, e que faz parte do discurso dos caçadores de tesouros ou mesmo de souvenirs, é que, se o material ficar submerso, ninguém vai ver. Mas essa retirada do material é problemática pois a conservação desse acervo exige cuidados especiais que são caríssimos. Hoje questionamos se vale a pena tirar tudo e ficar gastando anos e muito dinheiro, ou se é melhor estudar, desenhar, fotografar, fazer moldes e enterrar de novo para que gerações futuras possam trabalhar isso melhor do que nós. E aí vem o discurso de que as pessoas têm o direito de ver o que foi encontrado, mas quantas pessoas vão aos museus? São poucas pessoas.

ComCiência - E o turismo patrimonial subaquático?
Rambelli -
Essas visitas são estimuladas pela convenção da Unesco, desde que não coloquem em risco o sítio. Prepara-se alguns lugares para o visitante, como se faz com os sítios terrestres. Faz-se um plano de visita ao sítio antes de mergulhar, com indicações do que é cada coisa e essa é uma forma de incentivar o mergulho, criando um mercado melhor. Estamos desenvolvendo isso na região do Vale do Ribeira, incluindo Cananéia, Ilha do Cardoso, Ilha do Bom Abrigo e as ilhas da ponta sul do baixo Vale. E tem sido bem legal. Por exemplo, uma das fortificações estudadas foi construída no início do século XIX e havia ali seis canhões. No final do século, começou a ter uma série de erosões e aquilo foi se perdendo. Três canhões foram recuperados e levados para Cananéia. Desses, um eles tentaram fazer funcionar em uma comemoração qualquer e acabaram estourando o canhão. Os outros dois estão expostos na praça central de Cananéia. Os outros três ficaram embaixo d'água. Nós começamos a trabalhar na localização desses canhões e encontramos um. Mas, depois de mais de cem anos dentro da água do mar, ele sofreu alterações na sua composição química. Se for retirado da água salgada, vai sofrer um processo de corrosão de dentro para fora. É possível tentar interromper esse processo por eletrólise, mas não se tem garantia. Ao mesmo tempo, sem isso, pode se deteriorar em poucos anos. Cerca de cinco, seis anos, dependendo do estado que se encontre.

Para ver o canhão de Cananéia o melhor é mergulhar. Cria-se aí o incentivo para a população local aprender a mergulhar, para que possam atuar como guias, levando visitantes a esses sítios submersos. Quando se criam mecanismos que geram renda integrados à população local, cria-se uma conscientização da necessidade de preservar.

ComCiência - Além de vocês do MAE, que outras universidades estão envolvidas em projetos de arqueologia subaquática?
Rambelli -
Tem um pessoal de Santa Catarina que veio fazer curso comigo, tem um pessoal de Salvador e outro de Recife, todos ligados à universidade. O bom de estar ligado à academia, não desmerecendo quem não está, é o caráter de seriedade que é obrigado a ter. Como a universidade é responsável pela produção do conhecimento, quem trabalha dentro disso, acaba tendo uma exigência maior. Hoje os nosso trabalhos do MAE têm sido a referência maior, até internacionalmente, mas isso está sendo ampliado.

ComCiência - Como surgiu seu interesse pela arqueologia subaquática?
Rambelli -
Desde que li na juventude o livro Deuses, túmulos e sábios, fiquei com vontade de fazer arqueologia, mas sempre vi isso muito distante da minha realidade. Tanto que fui fazer engenharia, jogava basquete profissionalmente e isso ficou ainda mais longe. Mas quando deixei o basquete, voltei a estudar e comecei a pensar que se gostava da arqueologia deveria me dedicar a isso. Nessa mesma época apareceu a oportunidade de fazer um curso de mergulho que era um outro sonho antigo. Quando o instrutor do curso me perguntou por que eu me interessei pelo mergulho, disse que sempre gostei de mergulhar, mas não tinha tempo e que sempre gostei de arqueologia e que naquele momento estava pensando em fazer arqueologia, o que me levou a pensar em fazer arqueologia subaquática. Aí ele me disse que dei muita sorte, pois ao meu lado estava sentada uma arqueóloga, a professora Maria Cristina Scatamacchia, que é minha orientadora até hoje. Foi nesse momento que tive o insight. Aí eu resolvi estudar história, depois o mestrado já fiz em arqueologia e hoje estou terminando o doutorado, também em arqueologia subaquática.


Arqueólogo evidencia casco de embarcação do século XV
Foto: G. Garcia/CNANS Portugal

ComCiência - Você trabalhou no Vale do Ribeira, litoral de São Paulo. Como foi esse trabalho?
Rambelli -
A minha questão era: como iniciar uma pesquisa arqueológica subaquática no Brasil tentando ser o mais científico possível para não cair no sensacionalismo da caça ao tesouro? Como a Scatamacchia trabalha na região do Baixo Vale do Ribeira, estudando o processo de ocupação da região, vimos a possibilidade de estender o domínio dos sítios que estavam na beira d'água para dentro d'água, como se fosse uma coisa só. Era o mesmo sítio, tanto fora como dentro d'água; o que diferencia uma pesquisa da outra são alguns métodos e técnicas. Fiz o mestrado com três tipos de sítios, sem tocar no sítio de naufrágio, que era uma outra coisa. Primeiro queríamos fortalecer a idéia de continuidade do sítio terrestre.

ComCiência - E quais foram as suas descobertas?
Rambelli -
Eu trabalhei em três tipos de sítios. Um deles foi o Sambaqui do Prefeito. Embora eu tivesse muitos problemas de visibilidade - porque mergulhar no rio Ribeira é como mergulhar num caldo de feijão - consegui localizar os matacões, que são pedras de dois a três metros que fazem parte do habitat, e a calha do rio que ficava mais para o meio do que está hoje. Isso deu a idéia de que o grupo que viveu ali fazia a captação de recursos nesses matacões e como ficavam na interface água e terra, deu para saber que ali era um mangue, onde havia ostras e coisas do gênero.

O outro estudo foi no Porto Grande, área portuária localizada em Iguape. Localizamos estruturas que estavam sob a edificação da cidade e depois parti para buscar o que estava sob a água. Conseguimos encontrar alguns artefatos. Foi importante constatar a ocupação aquática dessa área e não só a terrestre.

E o terceiro exemplo foi um sítio conhecido no local como Toca do Bugio, uma área onde já havia sido encontrado um material arqueológico indígena do período de contato com os europeus, tais como miçangas de vidro e peças de faiança entre a cerâmica indígena. Dentro d'água foi possível encontrar evidências de que as embarcações ficavam atracadas numa enseada. Eles desciam, faziam o primeiro momento de exploração e depois voltavam. Com isso produziram lixo, dejetos e conseguimos mapear algumas coisas também ligadas à alimentação. Sempre fazendo essa ligação com o que estava em terra. Eu queria mostrar que era a mesma ciência, com a única diferença que, para a pesquisa embaixo d'água, é preciso levar o ar para respirar.

ComCiência - E no doutorado você continuou a trabalhar no Vale do Ribeira?
Rambelli -
Sim, levantamos todos os sítios arqueológicos submersos na região. O doutorado tem a ver com o amadurecimento da arqueologia subaquática e hoje somos reconhecidos pela Sociedade de Arqueologia Brasileira não mais como lunáticos ou pessoas que queriam ficar ricas encontrando tesouros. Começamos a ministrar cursos com aulas em piscina e no campo, o que deu uma outra dinâmica para os trabalhos que realizamos. Isso nos permitiu também avançar em relação aos métodos e técnicas. Fizemos agora contatos com o Instituto Oceanográfico e com o Instituto de Astronomia e Geofísica para utilizar equipamentos de efeito geofísico, tais como o magnetômetro e o sonar de varredura lateral para melhorarmos o desempenho das nossas pesquisas. A minha pesquisa agora aborda um vapor que naufragou em 1858. O interessante é que ele está na cara da cidade, ao lado da balsa, todo mundo conhece, já foi dinamitado na década de 30, foi saqueado, mas escolhi para fazer uma investigação arqueológica como ciência social, perguntando o que é possível conhecer de uma embarcação que naufragou em 1858 no universo de Cananéia.

ComCiência - E havia algum registro desse naufrágio?
Rambelli -
Sim, na literatura da época, de viajantes que passaram por ali que contam e também nos relatos do historiador Antônio Paulino de Almeida. Com o estudo do naufrágio inauguramos a arqueologia subaquática com essa abordagem náutica, nos moldes da arqueologia, obedecendo todos os critérios e conseguindo uma intervenção de acordo com a Convenção da Unesco, com baixo impacto, o que foi uma nova abertura para a área. O doutorado envolve também as questões legais em relação à exploração dos sítios arqueológicos subaquáticos.

Atualizado em 10/09/03

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