Entrevistas

Agricultura como meio e não como fim
Rubens Ricupero

Pesquisador aposta no modelo agroecológico
Ademar Ribeiro Romeiro

Entrevistas anteriores

Pesquisador aposta no modelo agroecológico

Ademar Ribeiro Romeiro é professor do Instituto de Economia da Unicamp na linha de pesquisa "Economia Agrária, Meio Ambiente e Recursos Naturais", é o atual chefe-geral da Embrapa Monitoramento por Satélite e coordena o projeto de pesquisa "Diagnóstico Ambiental da Agricultura em São Paulo: bases para um desenvolvimento rural sustentável", iniciado em julho de 2003, com financiamento da Fapesp. Romeiro, apesar de avaliar positivamente a legislação ambiental brasileira, afirma que falta crédito e assistência aos produtores rurais que queiram substituir as práticas predatórias. Para o pesquisador, o modelo ideal é o agroecológico. Nesta entrevista, ele fala sobre os novos caminhos possíveis para a agricultura no Brasil, sustentável do ponto de vista ambiental e social. Para isso, contudo, seriam necessários mais investimentos e mais pesquisas.


ComCiência - A agricultura sofreu fortes mudanças nas últimas décadas em sua forma de produção, o que causou inúmeros impactos ambientais, sociais e econômicos. Como fazer com que a atividade tenha menor impacto no meio ambiente?
Ademar Ribeiro Romeiro -
Uma das linhas de pesquisa que tenho seguido tem sido a questão do meio ambiente na agricultura, desde a minha tese de doutorado. O projeto que desenvolvi foi exatamente uma análise da modernização da agricultura no mundo e no Brasil do ponto de vista ambiental. A pergunta era: por que a agricultura seguiu essa trajetória de modernização? A resposta corrente a esta questão era simples: foi a trajetória mais eficiente, a mais produtiva (e lucrativa), a única possível para fazer face à pressão demográfica. Eu achava que essa era uma resposta insuficiente. Para mim, era preciso examinar quais foram as restrições e os estímulos que determinaram essa trajetória. Fiz um exame do histórico dessa modernização e cheguei à conclusão de que tecnicamente teria sido possível outra trajetória, menos agressiva do ponto de vista ambiental, mas capaz de atender à demanda crescente de excedentes agrícolas. A produtividade do trabalho - o rendimento da terra por hectare dividido pela quantidade de trabalho utilizado - teria sido um tanto menor, na medida que a agricultura ecológica é mais complexa e mais intensiva em trabalho.

Não há a possibilidade de fazer uma agricultura agroecológica sem o mínimo de biodiversidade, não se pode falar em equilíbrio ecológico com a monocultura. Mas isso deve ser compatível com a mecanização, pois não queremos voltar ao tempo da enxada. É preciso, entretanto, considerar que a pesquisa agropecuária é ainda quase toda voltada para a agricultura convencional e que, à medida que isso mude, a produtividade do trabalho certamente vai aumentar.

ComCiência - Como é possível fazer isso?
Romeiro -
Para que haja um sistema mecanizável e complexo existem alguns artifícios. Um deles é a rotação de culturas, que nada mais é do que a associação de culturas ao longo do tempo. Porém, essa associação de cultivos de várias plantas no mesmo espaço não permite a mecanização, pois cada uma tem um tipo de crescimento e um tipo de colheita diferente. Do ponto de vista ecológico, o certo seria associar uma série de plantas, pois uma ajuda a outra, complementa, equilibra o sistema, mas isso é limitado pela impossibilidade de mecanizar. Algumas associações são possíveis, como uma cultura perene com uma cultura temporária: um laranjal e, no meio das linhas, uma cultura temporária, assim consegue-se entrar com a máquina e colher. O ideal para a mecanização seria fazer uma rotação de culturas: num ano planta-se uma coisa, no seguinte uma outra, depois uma terceira e, depois, volta-se para a primeira. Uma seqüência de culturas que não é aleatória, que obedeça a regras agronômicas da complementaridade.

Essa complementaridade seria um dos princípios da agroecologia e dá uma idéia de como a agricultura agroecológica é complexa. Falei somente de um aspecto, que é a biodiversidade, o ideal seria que, além da rotação de culturas, houvesse também a criação animal integrada. Ao longo da história houve uma especialização. Antes, na Europa, tudo era feito no mesmo lugar: a produção animal e a produção vegetal de modo integrado: os animais se alimentavam com a produção que não ia para o mercado e o esterco era compostado [colocado para decompor e formar adubo orgânico] e usado como o adubo. O advento do fertilizante químico "libertou" os agricultores da necessidade de criar animais - digo "libertou" porque para os agricultores melhor posicionados no mercado, que tinham as melhores terras, ter que criar animais era tido como escravidão, porque o animal não tem sábado, domingo ou feriado.

É claro que, para que a produtividade do trabalho não caia, é preciso que a pesquisa avance em busca da mecanização de um sistema mais complexo. De qualquer modo, eu não diria que a produtividade do trabalho num sistema complexo alcançaria a produtividade do trabalho num sistema de monocultura, mas ainda temos que fazer uma conta: a menor produtividade do trabalho num sistema complexo tem como benefício uma proteção a longo prazo do meio ambiente, a sustentabilidade do ecossistema agrícola. Isso é que hoje não está na conta dos preços dos produtos agrícolas. No entanto, se colocarmos nos preços que se paga hoje pelo milho ou pela soja cultivados convencionalmente, o desgaste do solo pela erosão, a contaminação química, tudo o que está embutido de negativo ambientalmente, os preços seriam muito maiores.

ComCiência - Quais as vantagens da agroecologia?
Romeiro -
A agricultura agroecológica visa a sustentabilidade em longo prazo, em muito longo prazo; na agricultura é preciso pensar mil anos, dois mil anos. O Brasil tem 500 anos e se neste período tivéssemos cultivado o solo como foi feito durante algumas décadas e continua sendo feito ainda em muitas regiões, teríamos acabado com o solo tamanha a taxa de erosão. A agricultura chinesa está aí há cinco mil anos, e só sobreviveu esse tempo todo porque tinha sustentabilidade. Hoje, a agricultura chinesa moderna não é mais sustentável, porque, para aumentar o rendimento em curto prazo, estão usando tecnologias que degradam o ecossistema agrícola.

A especialização na agricultura seguiu uma lógica comercial-econômica que fazia sentido do ponto de vista do produtor. Aqueles que tinham maior potencial de produção podiam aproveitar melhor esse potencial só para um produto, a monocultura; a divisão do trabalho beneficiou aqueles que tinham as melhores terras e que se especializaram nas atividades que rendiam mais dinheiro e os que tinham menos terras se especializaram no que dava menos dinheiro e mais trabalho. Uma agricultura agroecológica liquidaria um pouco esse sistema e o benefício seria ter uma agricultura sustentável a longo prazo.

Mas ela não é boa apenas para o ecossistema agrícola, ela é favorável, também, aos consumidores. Um alimento produzido de modo correto, na agricultura agroecológica, é um alimento que tem um valor nutricional no sentido amplo da palavra. Isso é importante. Eu vejo as pessoas falando que não há diferença entre o milho produzido desse jeito ou de outro, que ambos tem a mesma quantidade de aminoácidos, de proteínas. Mas não é só isso que importa num alimento, se naquele produto há resíduos de agroquímicos que fazem mal à saúde, isso faz muita diferença. Você pode falar que isso depende do nível, mas isso muda com o tempo, o que é aceito como "mínimo tolerável" hoje não vai ser sempre assim. Tem problemas outros que a Ciência não sabe avaliar totalmente como, por exemplo, há uma mudança na composição dos aminoácidos do trigo quando você usa uma adubação química excessiva, desequilibrada. Isso é inócuo para a alimentação humana? Não sei, ninguém sabe. A qualidade do alimento produzido de uma forma ou de outra é importante não apenas nutricionalmente, mas em longo prazo, para a saúde humana.
Mas, tudo vai depender da quantidade de pesquisa que vai se dedicada a isso, as alternativas, de maneira a reduzir o custo da agricultura agroecológica.

ComCiência - E no Brasil, como são os incentivos para essas novas formas de produção agrícola?
Romeiro - Não tem incentivo nenhum, o que existe é um mercado, o preço de alguns produtos é maior, outros nem tanto, alguns tipo de verdura já custam apenas 20% a mais. Mas é um tipo de mercado muito pequeno no Brasil, embora seja um nicho que já chame a atenção. Algumas grandes redes de supermercado estão entrando e constituindo uma rede de fornecedores, é um mercado pequeno mas em rápida expansão.

A Embrapa tem uma unidade que trata disso hoje: a Embrapa-Agrobiologia, no Rio de Janeiro, que tem como missão estudar agricultura "alternativa". Outra, a Emabrapa Meio Ambiente, em Jaguariúna (SP), procura avaliar os impactos da agricultura no meio ambiente. Ou seja, as instituições públicas de pesquisa vêm, nos últimos anos, incorporando essa questão ambiental a ponto de criar unidades específicas para tratar dessa questão e, também, com orientações gerais para todas as unidades para uma maior preocupação com o meio ambiente.

Nos anos 1970-80 a Embrapa tinha relativamente pouca preocupação com a questão ambiental, a preocupação era realmente aumentar a produção, abrir o Cerrado, o que foi feito com enorme sucesso. Mas, a partir do final dos anos 1980 e início dos 1990, ela começou a refletir sobre a questão ambiental e foi criando unidades para isso, começando a pensar na redução dos impactos da agricultura convencional, em primeiro lugar, e também pensando em manter unidades que fazem estudos específicos sobre práticas ecológicas na agricultura, desenvolvendo tecnologias que um dia poderão ser utilizadas por outras unidades. Eu não acho que seja suficiente o que é feito, mas é um início muito importante.

ComCiência - E essas propostas incluem um trabalho com agricultura familiar ou há a possibilidade de uma agricultura agroecológica em maior escala?
Romeiro -
Pode ser em qualquer escala, mas a agricultura agroecológica exige mais cuidados, ela é mais complexa, exige mais trabalho. Portanto, ela é mais adaptada à agricultura familiar. Para o agricultor não-familiar gerir um sistema complexo com base em trabalho assalariado é mais difícil. É um trabalho difícil de supervisionar. Eu diria que um sistema realmente agroecológico, bem complexo, só é viável com produção familiar.

O que a grande escala pode fazer é incorporar vários procedimentos agroecológicos, como a rotação de culturas. Alguns grandes agricultores já o fazem, com milho e soja, por exemplo, mas essa não é a rotação ideal. Para inserir outras culturas seria preciso um ajuste de mercado. O ideal seria ter uma regulação de forma a não destruir agroecossistemas equilibrados, além de uma política de proteção governamental para assegurar uma renda mínima ao produtor, um tipo de financiamento especial para a época de baixo valor da cultura. Seria preciso, também, que existissem alternativas no próprio sistema de produção para que, caso o preço de uma cultura caia, outra possa substituí-la. E alternativas de transição na forma de comercialização porque, quando há a monocultura, tudo na região fica voltado para aquele produto - em um sistema mais complexo, o sistema de comercialização também seria mais complexo.

O agricultor agroecológico deve ter a sensação e a gratificação de ser um gestor da natureza, não simplesmente um produtor deste ou daquele produto. Ele é mais do que um agricultor, é o gestor de um ecossistema. Essa é a concepção que é cada vez mais predominante na Europa, embora infelizmente isso seja usado como argumento para justificar uma política de subsídios que prejudica os países pobres.

ComCiência - Nem mesmo essa existência de um mercado para produtos agroecológicos fora do Brasil favorece a mudança ou a manutenção do trabalho das pessoas que têm esse tipo de cultura?
Romeiro -
O Brasil não precisa exportar para ter mercado, a produção já não atende o mercado interno. O preço interno só não aumenta porque não se pagaria por um preço maior; se o preço atual for diminuido, tudo o que for produzido será, com certeza, vendido. A questão é que existem alguns bloqueios do lado da oferta. Em primeiro lugar porque a conversão para a agricultura agroecológica leva tempo e custa dinheiro. O agricultor que usava agrotóxico precisa deixar o solo descansar dois ou três anos para descontaminar. Existe, também, a barreira de informação: como o sistema de pesquisa ainda é voltado para a agricultura convencional, falta assistência e informação para outro sistema de agricultura. Essa lacuna é preenchida, insuficientemente, pelas organizações privadas sem fins lucrativos que atuam na área, como a Associação de Agricultura Orgânica e o Instituto Biodinâmico. O indivíduo quer converter sua produção para uma agricultura agroecológica sofre, primeiro, com a falta de informações - qual o custo de reconversão, quais os canais de comercialização adequados. É preciso investir mais pesadamente nisso: informação, difusão tecnológica, organização das cadeias de comercialização. Existe, ainda, o problema da certificação. Esses produtos precisam ser certificados e poucas instituições o fazem, além de a fiscalização ser limitada. É preciso mudar isso para que se aumente a oferta e os produtos caiam de preço.

Atualizado em 10/10/03

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2003
SBPC/Labjor
Brasil