Entrevistas
Agricultura
como meio e não como fim
Rubens Ricupero
Pesquisador
aposta no modelo agroecológico
Ademar Ribeiro Romeiro
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Agricultura como meio
e não como fim
Foto:
Neldo Cantanti
- Ascom - Unicamp |
A liberalização
do comércio agrícola ocupou um papel decisivo na agenda
de negociações da Organização Mundial do Comércio
(OMC), em reunião realizada no mês de setembro, na cidade
de Cancún, México. Nesta entrevista o embaixador brasileiro
e atual secretário-geral da Conferência das Nações
Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD, em inglês),
Rubens Ricupero, comenta o fracasso dessas negociações e
defende um sistema de comércio mundial equilibrado, que dê
oportunidades de desenvolvimento aos países pobres. Para ele, a
recusa dos Estados Unidos e de alguns países europeus em negociar
a redução das tarifas e barreiras comerciais agrícolas
com os países em desenvolvimento, reunidos no grupo denominado
G-20+, sob a liderança do Brasil, pode atrasar as negociações
futuras da OMC e, sobretudo, aquelas previstas para a implantação
da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
ComCiência
- O que o senhor achou do desfecho das negociações em Cancún?
Rubens Ricupero - Eu achei uma pena. O ideal teria sido que houvesse
um acordo que permitisse o prosseguimento das negociações
mais rapidamente, levando a uma liberalização da área
agrícola. Como isso não foi possível, porque houve
muita resistência justamente em torno da questão dos subsídios,
foi melhor então que não houvesse um acordo, o que significaria
abrir mão de um progresso na agricultura. É melhor aguardar,
se for necessário, mais do que tentar ter um resultado a qualquer
custo, o que deve significar um retrocesso.
ComCiência
- Que tipo de conseqüência isso pode causar para o Brasil e
em outros tipos de acordos comercias, como a Alca, por exemplo?
Ricupero - Acho que vai afetar bastante. Os americanos sempre manifestaram
que não querem negociar na Alca temas como esses dos subsídios
agrícolas e também das medidas que utilizam para barrar
o acesso de produtos como o aço - que são as medidas antidumping.
Eles querem negociar isso apenas na OMC. Como as negociações
na OMC agora têm um futuro incerto, é claro que isso vai
afetar o progresso da Alca, porque não é desejável
para o Brasil chegar a um resultado final na Alca se não houver,
concomitantemente, um avanço nessas áreas de subsídios
agrícolas e antidumping. Ainda não se sabe bem se isso atrasará
muito ou não as negociações da OMC. O provável
é que atrase, mas não há ainda certeza. Agora, caso
haja de fato esse atraso, não há dúvida de que será
necessário, no caso da Alca, que as negociações sejam
ajustadas ao calendário da OMC. Isso é necessário
para que se possa verificar se o que não se pode conseguir no âmbito
da Alca poderia avançar mais no âmbito da OMC.
ComCiência
- Como o senhor vê o papel que o Brasil acabou desempenhando na
formação do grupo G-20+, em Cancún?
Ricupero - Foi muito positivo e adequado porque esse grupo só
se formou depois que, no dia 13 de agosto, os europeus e os americanos
apresentaram uma posição conjunta em agricultura e verificou-se
que essa posição ficava muito aquém do que se desejava.
Ela era muito insatisfatória. Então, criou-se esse grupo
de vinte e poucos países em torno de uma contraproposta. Não
foi apenas uma rejeição do que propunham os americanos e
os europeus, mas foi uma contraproposta que procurou estabelecer um nível
de reduções desejadas em subsídios tanto internos
como de exportação. Foi uma proposta muito concreta e, apesar
de todas as manobras que os países industrializados fizeram para
tentar dividir o grupo, ele manteve a sua unidade até o fim. Foi
muito positivo para o Brasil a demonstração de sua capacidade
de articulação diplomática e que isso tenha permitido
uma defesa primorosa da nossa postura em matéria de agricultura.
ComCiência
- Qual o futuro desse grupo de países no cenário de negociações
da OMC?
Ricupero - O grupo foi formado em torno da agricultura e não
é permanente. Os ministros desse grupo sempre fizeram questão,
nas perguntas que foram feitas sobre outros temas, de dizer que a unidade
do grupo era em torno da agricultura e que eles nunca haviam discutido
outros temas. O grupo foi formado em função da situação
naquele dado momento e essa situação ainda não se
modificou. O impasse continua em torno da questão da agricultura
e nem os europeus nem os americanos anunciaram algo de novo quanto a isso.
Ao contrário, o que eles anunciaram dá a entender que eles
não vão tomar nenhuma iniciativa nesse particular.
ComCiência
- O senhor acredita que, ainda para essa rodada de negociações
da OMC, a chamada rodada de Doha, a liberalização da agricultura
é factível?
Ricupero - É difícil de prever algo nesse sentido. A
única coisa que se pode dizer é que Cancún não
foi positivo porque, para essa negociação terminar em tempo,
teria que terminar no fim do ano que vem [prazo previsto para o fim da
rodada de Doha]. Para isso, seria preciso que os problemas mais graves
já estivessem mais ou menos equacionados. Acontece que o ano que
vem vai ser um ano difícil, porque acontecerão as eleições
americanas e, de outro lado, em maio, haverá a expansão
da União Européia, que vai receber dez novos países
membros, todos os quais também com posições complicadas
em agricultura, como a Polônia.
ComCiência
- A perspectiva, então, é que a posição da
Europa endureça ainda mais? Isso não pode levar a algum
impasse mais definitivo para a OMC como instituição?
Ricupero - Pode ser que fique mais difícil a liberalização
agrícola, que é complicada. É uma perspectiva que
existe e que é muito real a não ser que haja, enfim, uma
disposição de mudar essa postura e de manter a agricultura
nas negociações.
ComCiência
- No caso de um impasse desse tipo e de a OMC tornar-se uma instância
de negociação cada vez mais difícil, qual será
o prejuízo para os países menos desenvolvidos?
Ricupero - Na verdade, para os países em desenvolvimento, o
sistema mundial de comércio é necessário, porque
são os países que têm menos força e menos poder
os que mais necessitam de um sistema de regras. Eu não acredito
que irá haver a possibilidade de uma situação catastrófica,
no sentido de um desaparecimento do sistema mundial de comércio.
O que pode acontecer é que talvez ele avance com menos rapidez
e aí, evidentemente, o desenvolvimento da liberalização
comercial vai ser mais lento.
ComCiência
- O senhor acha que o setor agrícola no Brasil deve ocupar, dentro
de um plano de desenvolvimento nacional, a mesma posição
de destaque no longo prazo que ocupa atualmente? O destino do Brasil é
ser agrícola?
Ricupero - O setor agrícola faz parte de uma estratégia
mas o país não devese basear exclusivamente nisso. Acho,
por exemplo, que não há razão nenhuma para que o
Brasil não explora o máximo as suas vantagens em agricultura.
Mas acho que isso não basta, porque a agricultura tem várias
desvantagens, duas das quais são muito importantes. Uma é
que normalmente os produtos agrícolas não são os
mais dinâmicos do comércio mundial, isto é, não
são aqueles cujo comércio cresce em ritmo mais rápido.
Isso em geral ocorre mais com os produtos eletrônicos, com as telecomunicações,
com os produtos químicos e de tecnologia avançada. E a segunda
desvantagem é exatamente essa que se patenteou em Cancún.
Como esses produtos são protegidos por lobbies muito poderosos,
a liberalização agrícola sempre é lenta, ela
deve ser perseguida com energia como estamos fazendo, mas sem muitas ilusões
de que vai se obter um resultado espetacular a curto prazo. O correto
para o Brasil é continuar a fazer um esforço de liberalização
em agricultura, mas tentar melhorar a sua competitividade em outras áreas,
e nisso o Brasil tem muito a fazer. O país está muito atrasado
hoje. Por exemplo, nas áreas mais dinâmicas, o Brasil tem
um déficit muito grande na balança comercial, pois ele importa
a maioria dos produtos numa área em que ele justamente não
é competitivo. Há indicações de que, com um
certo esforço e com políticas adequadas, o Brasil possa
melhorar as suas condições de competitividade. É
necessário que o governo e o setor privado tenham políticas
que levem a isso, inclusive, até mesmo no sentido de procurar atrair
investimentos estrangeiros nos setores que exigem mais tecnologia e que
permitem exportação de produtos mais avançados. Portanto,
acho que a agricultura é uma parte essencial de nosso esforço,
mas ela não basta. Ficar muito dependente da agricultura é
perigoso. Eu acho que a chave de tudo é o desenvolvimento de diferentes
setores e não somente das negociações. As negociações
são só para aqueles que têm boa capacidade de oferta,
não para países como o Brasil. O crescimento do Brasil tem
que ser maior na oferta, e o que nós produzimos mal dá para
o imenso consumo doméstico. Nesse momento, só há
oferta suficiente porque o Brasil está com um pouco de crescimento.
Na verdade, o que nós precisamos é investir mais e desenvolver
mais a oferta.
ComCiência
- Qual tem sido a atuação da UNCTAD?
Ricupero - A UNCTAD é um braço econômico da ONU.
Ela se ocupa, sobretudo dos países em vias de desenvolvimento e
dá uma atenção especial ao comércio como um
instrumento do desenvolvimento. Ela é a única das instituições
da ONU que tem quatro relatórios anuais. Um sobre comércio,
outro sobre os investimentos estrangeiros diretos no mundo, um terceiro
sobre os países menos avançados, que são os 49 mais
pobres - todos os países africanos, pois nós também
focalizamos muito essas economias mais pobres - e um quarto sobre comércio
eletrônico. Nós somos uma instituição de pesquisa
e de análise e de coleta de dados. Além disso, o que nós
fazemos é ajudar os países em desenvolvimento a se prepararem
para as negociações comerciais, a formularem posições
negociadoras, a treinarem negociadores, dando a eles argumentos tanto
econômicos como jurídicos, no caso da agricultura e em outros
campos também.
ComCiência
- Essa, inclusive, foi a alegação dos países menos
desenvolvidos ao se recusarem a negociar as chamadas "questões
de Cingapura", a falta de aparelhamento técnico para avaliar
os efeitos em suas economias.
Ricupero - Exato. Para que países possam se preparar, nós
procuramos justamente preencher essa necessidade.
ComCiência
- O quanto é dramática essa questão? Às vezes
é difícil imaginar que um país possa não ter
capacidade técnica para analisar questões desse tipo.
Ricupero - Mas isso é muito comum. A imensa maioria dos países
em desenvolvimento, eu diria quase todos - tirando alguns poucos países
asiáticos que são os que têm melhor posição
no comércio mundial - têm uma situação muito
precária. Às vezes, eles têm até alguns elementos
de valor na vida universitária, mas não têm instituições
de governo que sejam capazes de atrair tais pessoas, de pagá-las
convenientemente. A desvantagem é muito grande, mesmo na América
Latina, tirando um ou outro país. Mesmo o Brasil tem fraquezas
evidentes nessa área. É muito grande a disparidade entre
os países que integram a OMC. Por exemplo, no campo de agricultura
a Austrália - que tem liderado o grupo de Cairns, de países
agroexportadores - é um dos países que querem a liberalização
agrícola. Esse país tem, há trinta anos, uma instituição
que se chama Abare (Australian Bureau of Agricultural and Resource Economics
- Comitê Australiano de Economia Agrícola), que é
em parte financiada pelo governo, em parte financiada pelo setor privado.
A Abare tem um número grande de pesquisadores, dezenas e dezenas,
que preparam diversos tipos de estudos, dados e estatísticas. Quando
eu era embaixador do Brasil, nos anos oitenta, eles nos informavam até
sobre qual era o nível de subsídio para o arroz, coisa que
nem nós sabíamos.
ComCiência
- Nem o Brasil tinha esse cálculo?
Ricupero - O Brasil, pelo o que eu saiba, não tem isso. Hoje
existe o Instituto de Comércio e Negociações Internacionais
(Ícone), criado por um professor da USP, o Marcos Jank. Ele quer
fazer a mesma coisa no Brasil, prestando assessoria ao Ministério
da Agricultura. Mas isso é uma coisa recente, tem quatro ou cinco
meses. A Austrália tem uma tradição muito grande
nisso. Que eu saiba, não há nenhum outro país latino
americano que tenha algo comparável e é por isso que eles
levam muita desvantagem nas negociações, entre outras, em
agricultura. Eles não dispõem desses dados que os australianos
têm sobre qual é o nível de subsídios nos diversos
países, como funcionam os sistemas de apoio, por exemplo, para
o açúcar e para o algodão.
ComCiência
- Essas questões técnicas acabam tendo implicações
políticas também. Como a UNCTAD assessora esses países
sem que haja algum tipo de influência política? Como trabalhar
isso?
Ricupero - Nós procuramos mostrar qual é a realidade
dos subsídios e há sempre reações políticas,
às vezes negativas, dos países que fornecem os subsídios
e que não gostam de ver isso exposto. Mas, hoje em dia, são
muitos os organismos que procuram denunciar os subsídios; não
estamos nisso sozinhos. Por exemplo, alguns dos estudos mais interessantes
sobre subsídios em agricultura foram feitos pela Organização
de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
uma organização bastante importante dos próprios
países industrializados, com enorme orçamento, e cujos membros
são apenas os países mais ricos do mundo. Essa instituição,
com muita independência, é a que mais tem denunciado o nível
dos subsídios dos países industrializados. Recentemente,
o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional também
têm feito isso. Hoje, há um número maior de organismos
que fazem isso, porque todos consideram que é necessário
corrigir a política de subsídios que distorcem o comércio
mundial. É claro que há reações políticas,
mas, desde que a pesquisa seja objetiva e baseada em dados concretos,
embora provoque desagrado, não há como objetar.
ComCiência
- Mas a UNCTAD acredita que o comércio pode ser uma das únicas
oportunidades de desenvolvimento para os países subdesenvolvidos?
Ricupero - Não há dúvida. Essa é a nossa
própria razão de ser. Mas é claro que nós
consideramos ser necessário um comércio mais equilibrado,
que não pode ser o sistema comercial atual que exclui, por exemplo,
a agricultura, das regras do sistema mundial. Segundo as regras atuais
da OMC praticamente todos os subsídios antes vigentes em matéria
industrial e de manufaturas são ilegais. No entanto, os subsídios
agrícolas são quase todos perfeitamente admitidos. Porém,
o efeito econômico deles é exatamente igual, não há
nenhuma diferença. A única explicação para
essa discrepância no tratamento é, obviamente, o poder político
dos países que usam subsídios agrícolas e que não
usam subsídios industriais porque não precisam disso, pois
são áreas em que são mais fortes. É claro
que, com esse tipo de desequilíbrio, o comércio não
pode cumprir o seu verdadeiro papel porque, em muitos países em
desenvolvimento, a vantagem comparativa que possuem na área de
comércio está justamente na agricultura. Portanto, se eles
não podem exportar os produtos agrícolas, não têm
condições de utilizar as oportunidades do comércio.
É desse ponto de vista que é necessário ver o trabalho
que se faz para equilibrar o sistema, o que não é fácil,
como se viu, com o resultado do encontro de Cancún.
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