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Pesquisador critica MST, mas diz apoiar sem terra
Zander Navarro

Dirigente do MST defende plano nacional para RA
Gilmar Mauro

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Dirigente do MST defende plano nacional para RA

Os números da reforma agrária feita até hoje no Brasil demonstram que está ocorrendo uma reforma agrária às avessas, ou uma concentração de terras nas mãos de poucos. Isso é o que afirma Gilmar Mauro, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e integrante do movimento desde 1985. Em entrevista concedida à revista ComCiência, Gilmar Mauro afirmou também a necessidade premente de um plano nacional para a reforma agrária e da modificação da visão que se tem do movimento.

ComCiência: Como o senhor vê o tratamento que os governos têm dado a questão da reforma agrária no Brasil?
Gilmar Mauro:
A reforma agrária não se faz num tempo indefinido. Uma das grandes figuras que defendeu a Reforma Agrária no Brasil, José Gomes, dizia que a reforma agrária deve ser maciça, tem que ter um tempo determinado, com uma ação centralizada do Estado para resolver a questão fundiária do nosso país. Isso não aconteceu. Então, não existe um projeto de reforma agrária. E, infelizmente, no início deste governo Lula ainda não se tem um projeto de reforma agrária que resolva a estrutura fundiária brasileira. Porque para a elite brasileira não existe um problema agrário a ser resolvido.
O problema não é de agora, vem desde a década de 70, quando o Brasil pensou o modelo de modernização da agricultura brasileira, que instaurou uma agricultura para a exportação, visando também a produção de matéria-prima para as indústrias, a liberação de mão-de-obra do campo para a cidade e a produção de alimentos para o mercado.
Hoje existem uma série de questões agrárias que não foram resolvidas. A concentração fundiária, por exemplo, é um problema porque um por cento dos proprietários detém quase 50% das terras. A utilização das terras também é problemática, pois dos 850 milhões de hectares que o Brasil tem, quase 400 milhões de hectares são terras férteis, e hoje nós plantamos em 42 milhões de hectares. O restante ou é utilizado para a pecuária extensiva ou estão ociosos e agora o ministro da agricultura está querendo vender terras para agricultores norte-americanos. Outro fator é o modelo tecnológico, que é um modelo depredador do meio ambiente, não adaptado à nossa realidade. É preciso repensar isso no nosso país. Outros problemas ainda são a política agrícola que sempre beneficiou a grande agricultura para exportação e que é difícil modificar, o modelo de agroindústria; e os modelos de comercialização agrícola, que são extremamente exploradores. Além disso tudo ainda tem as condições de vida e de trabalho no campo, onde a maioria dos camponeses não têm acesso à sequer à carteira de trabalho e benefícios da previdência, onde 35% da população é analfabeta, onde existe trabalho escravo, onde as condições de vida das mulheres são extremamente precárias e, ainda, não há trabalho o ano todo.
Enfim, esses são alguns dos problemas agrários que, ao nosso ao ver, uma reforma agrária deve resolver. Nesse sentido, nós ainda não temos um projeto no nível governamental para resolver essas questões.

ComCiência: Desde o início do MST até agora, é possível dizer que a reforma agrária teve avanços?
Mauro:
Efetivamente do nosso modo de ver, nós não estamos avançando na verdadeira reforma agrária. De 1985 até hoje foram assentados 458 mil famílias em todo o Brasil. No governo Fernando Henrique Cardoso foram assentadas 385 mil famílias. Mas de 1985 até hoje, 1 milhão e 500 mil agricultores perderam a terra. Só no governo Fernando Henrique, quase 1 milhão de pequenos agricultores perderam a terra e mais de dois milhões de pessoas perderam seus empregos. De 1990 a 2000, 4 milhões de camponeses deixaram o campo e foram para a cidade. Paralelamente, enquanto o governo desapropriava em torno de 12 a 15 milhões de hectares, os fazendeiros concentraram em suas mãos 57 milhões de hectares. O que está ocorrendo no Brasil é uma reforma agrária às avessas, porque não consegue sequer diminuir a quantidade de pessoas que estão saindo do campo. O problema está muito mais grave do que se imagina, e esse era o nosso grande debate com o governo Fernando Henrique. E para nosso movimento, essa conjuntura ainda perdura.
A reforma agrária é vista como uma questão policial, a luta dos trabalhadores é vista como um caso de polícia. Veja o caso do projeto de atuação da polícia federal entre 2003 e 2006, que estabeleceu uma ordem de prioridades, na qual o MST constava como sua nona prioridade, enquanto que o narcotráfico estava na trigésima terceira prioridade. Isso permanece como uma carga sobre o movimento social, é um problema que nós enfrentamos, como muitos outros movimentos sociais nesse país.

ComCiência: As invasões de terra podem tornar-se um problema na relação do movimento com o atual governo?
Mauro:
As invasões de terra são uma forma de pressão, elas nunca foram um problema, elas são a solução. Quem as vê como um problema tem o mesmo preconceito da elite brasileira, aquele que também está expresso na medida provisória do governo Fernando Henrique Cardoso, estabelecendo que terra ocupada não será desapropriada e quem ocupa não será assentado. É o mesmo preconceito do período colonial, que estabelecia que o escravo que fugisse da propriedade não teria direito à liberdade.
Na verdade, o grande problema da elite brasileira e de alguns intelectuais, que tem essa carga preconceituosa com relação aos problemas sociais, não é a ocupação. A questão real para a elite brasileira, e para esses intelectuais, é que nós somos pobres organizados, os que é
um problema e um perigo para a elite brasileira.
É só verificar a história dos movimentos sociais que foram desfeitos pela cooptação, pela divisão interna, ou pela repressão. Mas o movimento pela terra manteve-se, não se deixou cooptar, não se deixou dividir e continua firme nos seus propósitos de luta. As ocupações têm o papel de ajudar o governo a fazer a reforma agrária rompendo com esses resquícios do preconceito histórico social, econômico e político no Brasil.

ComCiência: Mas o senhor vê possibilidades de que agora, com o governo atual, as reivindicações do grito da terra 2003 (pauta de reivindicações entregue ao governo) sejam atendidas?
Mauro:
Eu acho que há possibilidades, mas uma das questões que temos defendido com muita firmeza é que se estabeleça um plano nacional de reforma agrária. Nenhum país vai conseguir fazer reforma agrária sem estabelecer um plano nesse nível, concreto, com metas estabelecidas, alocação de recursos e orçamento para isso. Eu acho que com isso é possível avançar, pensando em alocar mais recursos, pensando nas regiões reformadas, isso poderá, por exemplo, criar empregos dentro da perspectiva do governo de criação de 10 milhões de empregos. Aqui em São Paulo o preso custa aos cofres públicos, considerando todos os custos, até com construção de presídio, mais ou menos 30 mil reais por ano. Para assentar uma família inteira o governo do estado de São Paulo não gastou mais do que 28 mil reais.

ComCiência: Qual a posição do MST frente a liberação pelo governo da comercialização de transgênicos no país?
Mauro:
Isso nos causa muitos problemas. Inclusive causa transtornos econômicos para o país, porque são divisas que os EUA e suas empresas conseguem. Os agricultores terão problemas para exportação para a Europa e outros países do mundo, que proibiram a entrada de transgênicos. Esse receio advém, é claro, da falta de certeza sobre que tipos de danos os transgênicos podem causar para o meio ambiente, a saúde humana e animal. Não há nada, nenhuma pesquisa de fato conclusiva com relação a isso. Além disso, há problema do monopólio das sementes. As grandes empresas têm o monopólio das sementes que, para nós, são patrimônio da humanidade. A terra e as sementes devem ser tratadas de modo diferente da economia capitalista, porque os seres humanos que habitam este planeta dependem do sol, do ar, da água e da terra para sobreviver e, fundamentalmente, as sementes e os alimentos não podem ser simplesmente considerados mercadorias como forma de obter lucro. O capital está querendo avançar sobre esse terreno cada vez mais. Para nós, elas devem ter um tratamento particular e especial. Na medida em que se liberou a comercialização, deu-se mais uma passo para a liberação da produção de transgênicos, e isso significa liberar aos grandes grupos a possibilidade de monopólio das sementes. O comércio de alimentos já é controlado por poucos grupos no mundo todo. Isso é um problema para o nosso modelo de agricultura e para o futuro da humanidade.
Nós orientamos os agricultores sobre os transgênicos, mas não estamos livres da contaminação das nossas plantações. Além disso, ainda existem casos como o do Rio Grande do Sul, em que revendedores de sementes fizeram questão de vender sementes transgênicas a um baixo preço, com condições de financiamento muito melhores, contaminando a agricultura e sujando a nossa imagem. Esse é um jogo sujo e esses revendedores de sementes deveriam ser punidos por esse tipo de venda ilícita que pode criar problemas para o governo e para toda a nossa sociedade. No entanto, a questão dos transgênicos deve ser um trabalho de convencimento de toda a sociedade, dos agricultores aos consumidores, para que estejam atentos. É necessário também que existam leis rígidas como a exigência de altas multas para quem descumprir as leis. Uma posição firme como alguns governos já assumiram, como é o caso de Santa Catarina e agora do Paraná.

ComCiência: E a agroecologia pode ser uma opção viável para os assentamentos?
Mauro:
Nós pretendemos desenvolver a agroecologia como uma alternativa. Mas sem dúvida é muito difícil a competitividade da pequena produção num momento de mercados globalizados. Basta pensar que a cada ano surgem 3 mil novos tipos de produtos alimentares no mundo, com pequenas alterações em relação ao que já existia, e a cada ano desaparecem mil tipos. 70% dos custos dessa grandes empresas que promovem esses produtos é destinado à propaganda. São os produtos que aparecem na televisão todo o dia e que seu filho vai pedir à você que compre. É muito difícil competir com esses grandes grupos econômicos que monopolizam tudo. É por isso que a agricultura deve se desenvolver de forma alternativa, seja através de nichos ou construindo um novo modelo tecnológico voltado para a agroindústria que permita uma rentabilidade para os pequenos agricultores e uma propaganda junto a sociedade para que não consumam produtos transgênicos, ou que não utilizem alimentos com agrotóxicos, hormônios e antibióticos. É uma disputa que se deve fazer aliando produtor e consumidor.

ComCiência: O modelo da pequena agricultura está em declínio? Quais são as possibilidades de conciliar a pequena propriedade e a agroindústria?
Mauro:
Dentro do mercado, tal como está, é muito difícil que a pequena propriedade se mantenha, mesmo pensando que ela gera bastante mão-de-obra e emprego e sustenta-se com a produção de alimentos. O problema é justamente que a competitividade é muito desleal, se é que se pode falar essa palavra "competitividade", porque frente aos grandes grupos não há competição. Se pensarmos nos subsídios que a agricultura norte-americana ou européia recebem, em oposição a uma pequena agricultura brasileira sucateada, sem pesquisa, sem programa de extensão rural, chegaremos à conclusão de que os nossos pequenos agricultores são heróis por conseguir sobreviver até hoje.
A pequena agricultura só vai ter viabilidade se houver efetivamente políticas direcionadas para sua sustentação, políticas agrícolas que garantam créditos para produzir, e mercado para venda dos seus produtos. No governo passado pouco apareceram os investimentos, mas o governo investiu e subsidiou a grande agricultura e grande parte da pesquisa tecnológica foi privatizada. O investimento em redes de satélites ou em hidrovias permitiu que a grande propriedade se estabelecesse no centro oeste e no norte do Brasil, enquanto a pequena propriedade ficou completamente abandonada. A reforma agrária deve resolver isso além da distribuição de terras, afinal são necessárias políticas que garantam a sobrevivência da pequena produção e também a distribuição e a tecnologia para isso. Uma outra forma de tornar a competição menos desleal é a descentralização das agroindústrias. A Parmalat paga em algumas regiões 0,40 ou 0,45 centavos por um litro de leite ao pequeno produtor. Depois vende a mais de um real no mercado. Então para fazer xixi na rodoviária de São Paulo gasta-se 3 litros e meio de leite. Essa é a grande diferença, a perda de renda do pequeno agricultor e o que esses grandes grupos agroindustriais ganham em cima do pequeno produtor. Por isso é importante descentralizar isso, os pequenos agricultores podem ser estimulados a industrializar os seus produtos, agregando valor aos produtos para ter maior rentabilidade. Se ficarmos apenas na produção, a pequena agricultura não vai conseguir se sustentar, até porque no setor lácteo há um processo de modernização muito grande e cada vez mais se exige padrão tecnológico. A descentralização pode ocorrer de várias formas, o que não significa criar uma pequena agroindústria junto a cada pequeno agricultor, mas estimular o associativismo ou o cooperativismo.

ComCiência: Alguns críticos do movimento afirmam que dirigentes do MST têm um perfil autoritário e até intimidatório com relação aos integrantes do movimento, além de agir de forma pouco transparente. Qual sua opinião sobre essas afirmações?
Mauro:
O MST é hoje uma das organizações mais horizontais e democráticas do país, mesmo comparando a partidos políticos e movimento sindical. Existem muitos intelectuais fechados em suas salas com ar condicionado, ganhando 5 ou 6 mil reais por mês e aí é fácil criticar quem está trabalhando no sol e tentando construir uma alternativa de mudança real, de democratização do país.
A primeira forma de organização dentro de um acampamento é a organização das famílias em grupos, cada um com quinze, vinte famílias escolhe um coordenador (a) responsável por setores como higiene, educação e segurança, entre outros. É impressionante como as pessoas sentem-se importantes ao receberem tarefas. Porque uma sociedade como a nossa, que exclui os mais pobres como se não tivessem utilidade, destrói a auto estima. Quando, num acampamento, as pessoas podem contribuir, sentem-se úteis aos demais e isso é um verdadeiro resgate da sua auto estima e da sua dignidade. É assim que essas pessoas voltam a se inserir num processo e constroem uma identidade. Nós construímos uma identidade própria e procuramos uma participação sempre maior e cada vez mais temos militantes, que atuam dentro ou fora dos assentamentos. Nessa construção da nossa identidade uma das nossas grandes conquistas foi ganhar autonomia perante às igrejas, ao movimento sindical, aos partidos políticos e aos intelectuais. Essa independência significou estipularmos os nossos próprios quadros.

ComCiência: E vocês fazem algum investimento para formar esses quadros?
Mauro:
O investimento em formação é um dos mais importantes para nós. Hoje temos 1700 escolas espalhadas pelo Brasil, pelo menos 4 cursos de segundo grau, que formaram mais de 500 técnicos de administração de cooperativas, ou pessoas que vão dar aulas nos assentamentos, técnicos de saúde ou técnicos em comunicação. Temos parcerias com várias universidades em todo o Brasil para cursos como pedagogia, agronomia, história, filosofia e temos em torno de 50 pessoas estudando medicina em Cuba. Isso é investimento na formação, uma prioridade, porque quanto mais se investe nessa formação, na escolarização mais possibilidade essas pessoas têm para intervir. Isso é construção de democracia.

Atualizado em 10/06/03

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