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uma experiência verdadeiramente musical e romper
com os estereótipos sobre a infância. Essa
é a proposta dos músicos Paulo Tatit e Sandra
Peres que se uniram no projeto Palavra Cantada, em 1994, dispostos a encarar o desafio de
fazer música de qualidade para crianças.
Atualmente, o selo musical conta com 20 títulos
em seu catálogo. Pé
com pé é o trabalho mais recente,
um álbum duplo – um deles, apenas instrumental
– com 15 canções inéditas,
cada uma delas baseada num ritmo brasileiro. Na história
do selo, quatro trabalhos ganharam o Prêmio Sharp
de melhor álbum infantil.
Canções de
ninar foi o primeiro disco de Peres e Tatit, lançado em
1994. Em seguida, veio Canções
de brincar – que contou com parceiros como Arnaldo
Antunes, Luiz Tatit e Edith Derdyk. No CD Cantigas de roda foram feitas
releituras das cantigas infantis que fazem parte do folclore
brasileiro. Em 1999, o Palavra Cantada lançou dois
álbuns de músicas com narração de
histórias: Mil
pássaros, em parceria com a escritora Ruth Rocha, e Noite feliz, com histórias
de Cândido de Alencar Machado. Em 2001, foi a vez do
CD-Livro Canções
do Brasil - O Brasil cantado por suas crianças, concebido
a partir de pesquisa e gravação de músicas
infantis feitas pelos 26 estados do país. Nesta entrevista
à ComCiência, Paulo Tatit fala sobre os
princípios que permeiam o processo de criação e a
trajetória da Palavra Cantada.
ComCiência
- O selo Palavra Cantada já tem 11 anos e mais de 20
discos lançados. Qual a sua avaliação sobre a
trajetória do projeto?
Paulo Tatit – A essência do trabalho do Palavra Cantada é
procurar fazer uma música que convença à
criança, aos seus pais e educadores, ou seja, uma
música que seja boa, que tenha qualidade musical.
Não adianta só ter boas idéias ou
querer passar uma “mensagem” para a criança.
O Bob Marley, por exemplo, ao defender suas idéias
em relação aos afrodescendentes; ou o John
Lennon pregando a paz em suas letras: se no trabalho desses
ícones não houvesse qualidade na sua linguagem
musical, eles não conseguiriam imprimir nas pessoas
as idéias presentes nas letras de suas canções.
Preocupar-se apenas em passar uma mensagem para as crianças
não é suficiente se não houver um
trabalho com a canção. Sandra Peres, eu
e nossos outros parceiros não mergulhamos na “idéia”,
nós mergulhamos na criação. Além
disso, no Palavra Cantada nós procuramos um mundo
de intersecção entre a criança e
o adulto. Buscamos uma ligação entre esses
dois universos. Não fazemos música só
para crianças. Muitas das nossas músicas,
na verdade, comentam a infância e transmitem uma
espécie de nostalgia da infância.
(Ouça
Pé
com Pé, música do novo CD do Palavra
Cantada. Você precisa ter o RealOne
Player instalado em seu computador)
ComCiência
- Atualmente, existe todo um mercado em torno do que seria o
entretenimento infantil. O senhor acredita que o trabalho do Palavra
Cantada vai num sentido contrário ao dessa
segmentação, buscando uma música que seja mais
universal?
Tatit - Nós já começamos com essa
preocupação. Nosso primeiro disco foi o Canções de ninar.
Quando lembramos do ato de ninar, estamos sempre pensando na
relação de um adulto com uma criança: quem nina
uma criança é um adulto. A partir daí, no nosso
trabalho, nunca pensamos numa criança sozinha mas sempre
acompanhada de um adulto. A ênfase nessa relação,
como eu já disse, é uma característica do nosso
trabalho e isso se reflete na nossa platéia, sempre dividida
entre adultos e crianças. É bonito observar que os pais,
por exemplo, ficam felizes pelo fato de seus filhos estarem assistindo
ou ouvindo um trabalho que eles – os pais – consideram de
qualidade. Quem dá a qualidade é o adulto porque a
criança ainda não tem muito critério. O
critério da criança são os pais – se minha
mãe gosta, eu também vou gostar – ou os
professores. É preciso lembrar que as crianças se
espelham nos adultos e, por isso, elas tendem a gostar do que os pais
ou os irmãos mais velhos gostam. Nesse sentido, durante a nossa
trajetória, percorrendo o Brasil todo, nós também
percebemos a importância da figura do educador. Ele é quem
faz a criança virar alguém. Pela minha experiência,
eu acredito que é o educador, muito mais do que o pai ou a
mãe, quem faz a criança se transformar num
cidadão. Muitas vezes a criança passa a educar os
próprios pais a partir do que ela aprende na escola.
ComCiência - O Palavra cantada realiza oficinas com educadores?
Tatit - Nós
fazemos, mas nossas oficinas estão sempre atreladas ao show.
Porque nós não queremos ficar no plano teórico,
nós queremos tocar, mostrar o nosso trabalho. Durante a oficina,
nós também costumamos tocar. Nós fazemos oficinas
somente nos lugares em que já marcamos um show, porque queremos
permanecer na nossa área que é a arte e a cultura.
Não queremos ensinar a ninguém como é que a
criança deve aprender através da música, por
exemplo. Isso diz respeito à área da
educação. Nas oficinas, estamos mais preocupados em
falar, por exemplo, sobre o que nós pensamos ao fazer uma
determinada música: em termos formais, em relação
ao conteúdo, na interpretação.
ComCiência -
Como é o processo de criação do Palavra Cantada? Qual o papel da pesquisa musical nesse
processo?
Tatit - A música popular moderna está muito
presente no nosso trabalho. Acredito que nós fazemos
música popular brasileira voltada para crianças, uma
espécie de “MPB infantil”. Existe um trabalho de
pesquisa informal que consiste em ouvir e estudar a música dos
nossos ídolos e do repertório mais atual da MPB. Um outro
tipo de pesquisa que nós fazemos é o de mergulhar nas
raízes rítmicas brasileiras, sem cair no folclore. Isso
é muito estimulante, aprender um ponto de capoeira, um ponto de
candomblé. Eu aprendo com os percussionistas que trabalham
conosco, que conhecem esses ritmos porque já pesquisaram sobre
eles. Quando se está lidando com crianças é quase
natural o desejo de transmitir elementos que façam parte da
cultura do Brasil. Eu não tenho essa mesma vontade em
relação à música folclórica que
é comumente usada como uma espécie de subsídio
escolar. Contas de subtração e adição,
conjugação de verbos regulares e irregulares – tudo
isso faz parte da formação básica de uma
criança. Muitos educadores trabalham com música
folclórica como se ela fosse básica para a
formação da criança nesse mesmo sentido.
Nós já trabalhamos com música folclórica no
nosso disco Cantigas de roda.
Mas prefiro nossas músicas mais urbanas. Elas falam mais para as
crianças, percebemos isso nos shows.
ComCiência - O Palavra
Cantada já trabalhou com a escritora Ruth Rocha
num disco com narração de histórias.
Como foi esse trabalho?
Tatit - Nós nos identificamos muito com a Ruth Rocha, com o que
ela pensa sobre a criança, a infância. Ela
tem uma visão da infância muito transparente
assim como nós que vemos a criança como
um ser humano, com suas capacidades e limitações.
Assim como ela faz na sua literatura, nós procuramos
fazer nossa música sem enfeites, sem firulas, cantar
com uma voz delicada, por exemplo, só porque se
trata de música para crianças. A maioria
dos adultos tende a associar a infância aos bebês
e à delicadeza que eles exigem. Nós queremos
romper com esses estereótipos. Para mim, é
preciso pensar, também, na criança com nove,
dez anos, que está crescendo, cheia de energia.
Nos nossos últimos discos – no “Canções
curiosas” e no “Pé com pé”,
por exemplo – nós fomos muito mais nessa
direção da energia. Eu vejo muito nos trabalhos
para criança uma visão nostálgica
da infância como se ela fosse um período
delicado e onírico. Para mim, a infância
é muito concreta. As crianças pedem isso
porque elas são muito objetivas. O tema é
para a criança, mas o tratamento musical é
MPB. Por isso, o resultado é verdadeiro. Nós
vamos para o palco e fazemos um show musical, sem “bonequinhos”
ou palhaços gritando “vamos lá criançada!”.
Nós só queremos compartilhar, com a criança,
uma experiência musical através dos nossos
instrumentos e da nossa voz.
Crédito
foto: Divulgação/Palavra Cantada