Nesta
entrevista, o geógrafo Aziz Nacib Áb'Saber, professor
emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP e professor honorário do Instituto de Estudos
Avançados também da USP, fala dos fatores
extrógenos - anormalidades no cotidiano de uma região, em
geral processos naturais (terremotos, maremotos, secas,
dilúvios), que podem ser intensificados por uma
ação do homem - que "sacodem" o planeta e geram abalos na
estrutura econômica, política ecológica e social de
uma cidade, de um estado ou até mesmo de um país. A seca
que atingiu alguns rios da Amazônia e os furacões Wilma e Katrina que atingiram
países da América Central e da América do Norte
recentemente são alguns exemplos de fenômenos naturais
anormais destacados por Áb'Saber.
ComCiência
- Grandes problemas envolvendo o planeta Terra, frutos de um modelo de
desenvolvimento econômico que acelera o efeito estufa e
intensifica o aquecimento global; a poluição e morte de
alguns rios; e um forte desmatamento de florestas, acontecem porque os
planejadores ainda atuam com uma visão dicotômica, que
separa o homem da natureza? Há uma racionalidade econômica
predominante, em detrimento de uma preocupação com o
homem?
Aziz Nacib
Áb'Saber: Em termos do sistema capitalista, todos esses
processos derivam de um mesmo processo, mas cada qual tem a sua
própria originalidade, seus próprios problemas. A
previsão de impactos de projetos ditos desenvolvimentistas
é uma coisa que precisa ser mais aperfeiçoada porque, em
geral, o estudo de impacto ambiental é uma exigência sob
um ponto de vista de estudos básicos para prever impactos, o que
significa prever a cadeia de conseqüências que um projeto
possa ter a diferentes níveis de tempo. Temos que lembrar que um
projeto se modifica em função de muitas variáveis
e, pensando na mutação dessas variáveis e no
conceito de previsão de impactos, comecei a me preocupar com os
processos e o desenvolvimento dos fatores endógenos,
exógenos e extrógenos. Os fatores endógenos
são internos, ligados à realidade local, regional ou
nacional, mas dentro de uma realidade interna. Enquanto que os fatores
exógenos são dependentes do exterior, como
competição nas relações de
exportação-importação, os momentos de maior
necessidade do mercado lá fora, e os momentos de maior
produção aqui e menos mercado lá fora. Mas
há ainda os fatores extrógenos que seriam fatores
impensados. O furacão Wilma [que atingiu o México com
ventos superiores a 230 km/h] e o furacão Katrina [que atingiu o
estado de Nova Orleans, nos Estados Unidos], são fenômenos
não previstos, são completamente imprevistos, mas
têm uma forte influência na continuidade dos projetos.
Assim como os Tsunamis, que são fatores extrógenos
característicos, e são um problema de geologia da base do
fundo do mar. Esses três fatores [endógenos,
exógenos e extrógenos] são essenciais para o
planejamento e a previsão de impactos.
ComCiência:
A seca recente de alguns rios na floresta equatorial úmida pode
ser influência de fatores extrógenos?
Áb'Saber:
Nós, geógrafos, temos que ter uma certa
consciência dos fatores espasmódicos, que são os
fatores extrógenos a nível geral de acontecimentos na
face do planeta, tanto na terra, como no mar, no fundo do mar, e que
envolvem condições climáticas. Existem alguns
eventos que são locais mas extremamente diferentes da
média. Esses são os fatores espasmódicos. Essa
seca dos rios da fronteira do estado do Pará é um fator
espasmódico, pois nunca aconteceu nesse nível. Os fatos
físicos, ecológicos, antrópicos [que envolvem a
ação do homem], econômicos e sociais têm uma
certa continuidade com pequenas variações. Mas de
repente, tem qualquer coisa extremamente perturbante nesses casos.
Você já imaginou a perturbação para as
comunidades locais? Enquanto toda a Amazônia permanece
relativamente bem, em alguns rios e igarapés, a
situação tornou-se calamitosa. Agora, essa seca que
atingiu uma área especial da Amazônia, na fronteira com o
Pará, interferiu demais na continuidade de alguns riozinhos e
igarapés. É claro que o rio Negro - e eu já sabia
disso, mesmo que os jornais não tenham contado - não
secou; ele apenas exauriu-se, ou seja, perdeu volume e área de
água. Existe um costume no Brasil, o qual eu sempre delato e
contesto, que é o de ver coisas pontuais ou lineares e atribuir
seus resultados para toda a região. Então eles dizem
"lá na Amazônia é assim", sem saber qual é o
lugar em que aconteceu isso. Esses processos espasmódicos
verdadeiros podem ter acontecido no passado, há 500 anos ou em
épocas pré-históricas que nem nós podemos
avaliar. São processos espasmódicos que acontecem em
centenas de anos e certamente daqui a dois anos as coisas
voltarão ao normal.
ComCiência:
Os processos espasmódicos são processos naturais que
não envolvem a ação do homem? Uma enchente em
São Paulo, por exemplo, pode ser considerada um processo
espasmódico?
Áb'Saber:
Uma grande enchente em São Paulo, se for fora
do normal, é sim um processo espasmódico; mas nessas
épocas em que começa o verão e os índices
de precipitação aumentam, a enchente não pode ser
chamada de espasmódica, pois há previsão desses
eventos. Inicialmente, ela pode ser provocada pelo homem, assim como
uma grande queimada em Roraima provocada pelo homem, mas também
proporcionada pela falta de chuvas que atingiu Roraima. Agora, a secura
que está ocorrendo na Amazônia, evidentemente, é
natural. Mas é pontual, não é em toda a
Amazônia. Todos os jornais falam: "lá na Amazônia os
rios estão secando". Não tem um jornal que localize as
faixas da Amazônia onde os processos estão ocorrendo. Na
Amazônia, de Roraima até as proximidades do Araguaia, tem
uma faixa diagonal de menores precipitações [de chuva].
Por outro lado, tem precipitações muito fortes em
Marajó e Belém. São precipitações de
3.200 a 3.500 mm/ano. São Paulo tem entre 1.100 e 1.300 mm/ano.
Então, a secura que começa em Roraima e essa diagonal de
menor precipitação é justamente aquela que foi
atingida pela seca agora. E a esse ponto, ninguém chama a
atenção. Vem de Roraima para a região de Manaus e
desce depois para os afluentes da parte leste do rio Madeira. Esses
rios não secaram, mais diminuíram bastante de volume.
ComCiência:
Como um planejador lida com esses processos espasmódicos?
Áb'Saber:
Essa é a parte mais difícil da
questão. No momento em que se anuncia o processo
espasmódico, o problema é fazer um planejamento para
evitar as conseqüências dramáticas desse processo. Um
outro tipo de planejamento é o planejamento prévio, como
se fosse uma gestão com imaginação do que poderia
acontecer a partir de um certo momento. Isso é o que não
se faz. Os Estados Unidos deixaram acontecer tudo [o que se viu]
lá em Nova Orleans porque não souberam prever os
processos espasmódicos. O sudeste da Ásia, a mesma coisa.
Quanto aos terremotos, é impossível prever, porque
são fatos internos relacionados com o choque entre as placas
tectônicas. O terremoto acontece da seguinte forma: se você
jogar uma porção de caixas de madeira na carroceria de um
caminhão grande e puser um plástico em cima, e em seguida
der uma chacoalhada para acomodar esses caixotes, poderá
observar que as caixas, ao se movimentarem, criaram um movimento na
superfície do plástico, através de ondas de
energia que, numa escala menor, são movimentos
terremóticos.
Leia
também:
Questão hídrica: necessidade de estudos
e soluções mais eficazes Entrevista com Áb'Saber
publicada em setembro de 2000