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Catástrofes naturais e as percepções sobre seus riscos e perigos
Eduardo Marandola Jr.

Influência dos fenômenos naturais no planejamento
Aziz Nacib Áb'Saber

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Catástrofes naturais e as percepções sobre seus riscos e perigos

Furacões, terremotos, secas, erupções vulcânicas, enchentes e deslizamentos de terra. Estaríamos, cada vez mais, vivendo em perigo por conta desses fenômenos? Em entrevista à ComCiência, o geógrafo Eduardo Marandola Jr. analisa as percepções construídas em torno dos chamados hazards (perigos) e da complexa interação entre o homem e a natureza envolvida nos danos causados por esses eventos. Ao discutir as noções de risco e perigo, Marandola Jr. defende a necessidade de se respeitar as especificidades culturais das populações em situação de vulnerabilidade, e considerar suas diferentes percepções sobre o perigo na formulação de políticas públicas. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa Percepção e Cognição Ambientais, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Eduardo Marandola Jr. também participa do projeto "Dinâmica intra-metropolitana e vulnerabilidade socio-demográfica das metrópoles do interior paulista: Campinas e Santos", do Núcleo de Estudos de População da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Marandola Jr. atualmente faz doutorado no programa de pós-graduação em geografia, do Instituto de Geociências da Unicamp, desenvolvendo pesquisa sobre riscos e vulnerabilidades na Região Metropolitana de Campinas.

ComCiência - Como o senhor classifica os fenômenos mais recentes e as grandes catástrofes a que temos assistido, como tsunamis na Ásia, furacões no Caribe, terremotos no Paquistão e no Irã? Todos eles podem ser englobados pela categoria hazard? Por quê?

Eduardo Marandola Jr. - Sem dúvida, a idéia de hazard se aplica a todos esses fenômenos. Eles são eventos extremos que causam dano ao homem. A grande diferença entre um evento extremo biofísico e um hazard é o componente do dano. É por isso que um terremoto no meio do oceano Atlântico ou uma nevasca na Antártida dificilmente seriam hazards, pois estes ocorrem exatamente na relação sociedade-natureza. Onde não há homem, não há hazard. Nesses casos, o que temos são momentos de corte-ruptura na trajetória da interação entre os elementos daquele sistema físico. Todos estes eventos possuem natureza cíclica ascendente. Seqüências históricas permitem estabelecer alguns marcos de picos que se repetem com certa regularidade a cada intervalo de tempo. No entanto, a idéia de hazard não está circunscrita a esses eventos da natureza. O que o caracteriza é a relação desse efeito com determinada forma de ocupação e apropriação da natureza. Para exemplificar, poderíamos pensar em um terremoto que atingisse hipoteticamente a Amazônia e outro que atingisse a faixa litorânea brasileira. Provavelmente, o primeiro teria pouca repercussão, pois a densidade e a forma da ocupação humana ali é bastante rarefeita, ainda. Por outro lado, o segundo certamente teria dimensões catastróficas, devido à densidade e à forma de ocupação humana dessa área. Mesmo que o terremoto do litoral fosse mais fraco (em termos de intensidade) do que aquele da Amazônia, certamente ele seria muito mais devastador. É nesse sentido que o hazard, enquanto fenômeno, refere-se a uma relação específica entre sociedade e natureza, pois a sua densidade, natureza e conseqüências não está no evento físico, mas abarca um fenômeno mais amplo. Em português, preferimos usar a palavra perigo (e não risco, acidente, ameaça ou azar, como ocorre alternadamente na literatura especializada), por ela exprimir de forma mais clara esse componente danoso, que se refere à sociedade envolvida. O risco, em geral, é a probabilidade de ocorrer um perigo, o qual é o evento em si, que produz dano. O risco de ocorrer um tsunami na Ásia ou um furacão no Caribe não apenas está calculado como também os cientistas acompanharam a formação, evolução e trajetória de ambos os fenômenos. Com um tempo razoável de antecedência, já se esperava a ocorrência desses fenômenos. Até mesmo as erupções vulcânicas, na maioria das vezes, fornecem elementos para identificar uma possível atividade iminente. Desses, talvez o terremoto seja o que ainda temos mais dificuldades de rastrear indícios de uma possível atividade. No entanto, mesmo neste caso, já conhecemos os locais onde o perigo é potencial (ou seja, onde há risco de ocorrer um terremoto), através do conhecimento da dinâmica das placas tectônicas que estão abaixo de nossos pés. Embora não possamos dizer quando, ao menos sabemos onde e com que freqüência esses terremotos ocorrem.

ComCiência - Quando ocorre algum terremoto, enchente ou furacão, gerando mortes, perdas e colocando populações em risco, a cobertura da imprensa - e a opinião pública de um modo geral - parece dar um peso maior ao fenômeno físico em si, atribuindo suas causas apenas à natureza. Qual a sua opinião sobre esse tipo de explicação quando acontece algum "desastre natural"?

Marandola Jr. - Se o risco é a probabilidade de ocorrência de um evento danoso (que, diga-se de passagem, não precisa ter origem natural para ser classificado como hazard), este perigo, dependendo de suas conseqüências e danos, pode gerar um desastre natural. A idéia de desastre (ou catástrofe) está associada exatamente aos danos humanos de maneira ampla; desde as perdas econômicas e humanas a curto prazo, até as conseqüências a médio e a longo prazo. A dimensão do Katrina, por exemplo, não pode ser associada apenas à sua força enquanto furacão. A natureza do desastre é uma combinação das características do evento físico com a capacidade de resposta da sociedade afetada. Esta capacidade de resposta pode ser entendida em termos de sua vulnerabilidade e resiliência. Quanto à primeira, tem-se tornado cada vez mais importante nos estudos acadêmicos e nas políticas de gestão e prevenção de desastres, pois refere-se a uma gama de fatores e características que o lugar possui para enfrentar os perigos. Quando pensamos em lugar, estamos nos referindo tanto aos elementos ambientais propriamente ditos (características de clima, geomorfologia, topografia, correntes marítimas, deslocamento de massas de ar, vegetação, solo, etc.) quanto àqueles mais diretamente relacionados à forma de ocupação humana (densidade urbana, uso do solo, manejo de recursos naturais, preservação da fauna e da flora, etc.). Além destes, para pensar no que poderíamos chamar de vulnerabilidade do lugar, temos que incluir os fatores culturais, políticos e econômicos que incluem desde a preparação técnica para as emergências (defesa civil, corpo de bombeiros, secretarias e departamentos do executivo), passando pela capacidade de movimentar recursos financeiros e humanos para socorrer vítimas, até os aspectos culturais que são muito importantes para que, no momento da ocorrência do perigo, as pessoas saibam o que fazer e como agir para se proteger e para receber e dar ajuda. A vulnerabilidade é fundamental por incorporar a resposta ao perigo como fundamental para o resultado final deste. A resiliência é uma idéia complementar, vinda originalmente da biologia, é entendida como a capacidade de recuperar-se de impactos ou danos. Neste caso, a resiliência do ambiente físico (alguns ecossistemas são mais frágeis do que outros), além da capacidade de resposta daquela sociedade, são fundamentais para caracterizar a intensidade do dano que aquele lugar irá sofrer. Neste caso, lugares com maior capacidade de resiliência e com recursos para dar resposta ao perigo terão menor vulnerabilidade diante dele, o que contribuirá para a diminuição de danos e, em alguns casos, até mesmo a diminuição da ocorrência de desastres. Evidentemente, estar preparado não pode incluir apenas medidas paliativas e de emergência. É necessário compreender a dinâmica dos eventos naturais e suas manifestações em diferentes contextos socioespaciais para que se possa melhor conciliar a forma de ocupação humana à ocorrência de tais eventos que, como já disse, são cíclicos e sempre voltarão a ocorrer. Por isso, é tão importante olhá-los enquanto relação sociedade-natureza e não como um "azar" oriundo da "mãe-natureza". O decênio de 1990 foi declarado a "Década para diminuição de desastres" pela ONU. A intenção era promover estudos e ações que visassem preparar as populações e as entidades responsáveis para enfrentar tais eventos. No entanto, já estamos em meados da primeira década do século XXI e a maior potência econômica mundial, um dos países que tem maior tradição em lidar com quase todos os tipos de perigos naturais, passou um verdadeiro "papelão" diante do total despreparo, falta de agilidade e habilidade em lidar com o furacão Katrina. Importante dizer que não houve falha no conhecimento científico. Os meteorologistas americanos monitoraram com extrema exatidão toda a progressão do furacão e, com tempo suficiente, alertaram as autoridades para a necessidade de precauções. No entanto, a lentidão e o total despreparo antes e depois do desastre deixaram todos boquiabertos, principalmente a população que ficou em New Orleans e sofreu todas as conseqüências de forma direta. A falta de tecnologia para monitorar tsunamis na Ásia foi menos surpreendente do que a amplitude que o Katrina tomou, pois no primeiro caso, o maior motivo da amplitude do desastre foi uma deficiência tecnológica e econômica para desenvolver ou adquirir sistemas de detecção e alerta (aqui vemos bem o papel da vulnerabilidade); enquanto no segundo caso, a maior parte do impacto esteve associada à falta de capacidade de movimentar estruturas e recursos que estavam disponíveis. Este exemplo também nos mostra que a vulnerabilidade possui várias facetas, pois mesmo com todo o conhecimento da trajetória e características do evento-furacão, mesmo com capacidade econômica e informação, não se pôde minimizar os danos do desastre. A capacidade de resposta mostrou-se baixíssima. Creio que é necessário ampliar a compreensão do fenômeno, procurando entendê-lo de forma multidimensional (em seus aspectos físicos, econômicos, culturais, políticos, históricos e geográficos) e na interação específica entre o evento, o lugar e o momento. Cada evento, mesmo que seja um fenômeno freqüente e conhecido (como um furacão) possui suas próprias especificidades, assim como cada lugar terá condições específicas para enfrentar o perigo (aqui é o principal ponto onde entra a multidimensão). No entanto, o momento, entendido como a situação na esteira do tempo em que aquela sociedade se encontra quando da ocorrência do evento, também deve ser levada em conta. O que talvez ajude a explicar um pouco o Katrina, que pegou um lugar (New Orleans, Estados Unidos) em meio a uma situação de crise que pode ter influído diretamente na forma como foi dada a resposta ao desastre.

ComCiência - Alguns fenômenos naturais como os ciclones em Santa Catarina e a seca na Amazônia parecem colocar em cheque a idéia de que o Brasil estaria livre de "desastres naturais". Isso seria mais um sinal da gravidade da situação do planeta, que estaria se esgotando e reagindo às agressões das intervenções humanas?

Marandola Jr. - As chamadas mudanças ambientais globais têm movimentado considerável esforço na comunidade internacional, que tem somado as contribuições oriundas de diferentes áreas disciplinares para compor um quadro mais amplo dos indícios dessas alterações. As transformações nos sistemas ambientais têm modificado os ritmos e as configurações de ecossistemas. Não sei se estamos presenciando as conseqüências da Hipótese Gaia, mas que o planeta está passando por alterações, isto parece incontestável. Há poucos anos isso ainda era discutível. Hoje, parece não haver mais dúvidas. Até os cientistas sociais entraram no debate, procurando dar conta das dimensões humanas das mudanças ambientais globais. Em vista disso, não é de admirar que áreas onde nunca houve inundações, onde nunca nevou, onde nunca ocorreram furacões passem a presenciar tais eventos. Aqui perto de nós, em Indaiatuba, há poucos meses houve um tornado, assim como acontece no meio oeste dos Estados Unidos. O Catarina, que assustou todo o Brasil no ano passado, foi classificado como furacão, fenômeno apenas existente no hemisfério norte, devido à temperatura da água do oceano. As conseqüências do El Niño vêm sendo estudadas e apontadas já há alguns anos. O número e a intensidade desta temporada de furacões nos Estados Unidos está acima de qualquer outra, assim como algumas regiões têm sido atingidas pela primeira vez. É difícil dizer que o Brasil começará a sofrer deste ou daquele perigo, mas a intensidade das secas que temos enfrentado (como no Rio Grande do Sul e na Amazônia) e das inundações (como no Sudeste e no Nordeste), têm dado indícios de intensificação desses eventos também em nosso país.

ComCiência - A vulnerabilidade das pessoas que vivem em áreas consideradas de risco envolve o problema da prevenção. Os formuladores de políticas públicas deveriam levar em conta a percepção do perigo pelas próprias pessoas afetadas? Quais as conseqüências disso para a remoção de populações em áreas de risco que sofrem com enchentes e deslizamentos, fenômenos comuns no Brasil?

Marandola Jr. - Esta é uma questão bastante importante que tem passado ao largo da maior parte das discussões políticas ou acadêmicas. É verdade que volta e meia alguém se lembra: "veja, há pessoas envolvidas no processo", mas o que acontece, no máximo, é uma mera consulta, sempre na perspectiva de que temos de conhecer o que as pessoas pensam para poder lidar com elas, mais na direção de "conscientização" (uma péssima palavra) ou de convencimento. Não há, na prática, abertura institucional ou política para uma autêntica participação. Conselhos e práticas "participativas" não colocam os atores sentados numa mesa em igualdade de condições. Há sempre pelo menos quatro representações: o tomador de decisão, o representante (de comunidades, de segmentos da sociedade civil), a academia e, às vezes, o povo. Será que alguém seriamente acha que há respeito mútuo pelo ponto de vista do outro? O que quero dizer é que as pessoas que experienciam em seu cotidiano o risco de um perigo e, no momento do desastre, enfrentam todas as dificuldades e conseqüências do evento, possuem uma perspectiva do fenômeno singular e fundamental. Não se trata de contrapor pontos de vista; trata-se, isto sim, de estabelecer as bases para um diálogo entre os saberes, que implica o respeito e a consideração mútua entre os segmentos. Se temos de entender o desastre para além do componente físico, precisamos lembrar que há um conhecimento do fenômeno de um ângulo que nenhum de nós, cientistas ou políticos, teremos. É o conhecimento do homem do campo, por exemplo, que acompanha, por gerações, as dinâmicas climáticas e que sabe reconhecer na direção do vento ou na altura das nuvens os eventos que estão para acontecer. É o conhecimento adquirido diariamente, que não pode ser simplesmente descartado com a desculpa de que não possui referências técnicas, dados ou condições de avaliar as condições políticas. Há necessidade urgente de instaurar uma cultura participativa, pautada no respeito. No entanto, considerar a percepção do perigo vai muito mais longe. Envolve também o respeito pelas especificidades culturais e individuais que as pessoas desenvolvem, ao longo de sua vida, na sua relação com o lugar. Isto significa que nem todos os riscos são percebidos, de um lado, e nem tudo o que é percebido como risco o é por todos. Se um leve tremor entortasse os quadros de minha parede, certamente você me veria correr para debaixo da mesa ou algo parecido. No Japão, isto não abalaria as pessoas, pois pequenos tremores são sentidos diariamente por todos. Culturalmente, o risco do terremoto já foi aceito, e as pessoas o enfrentam da forma como podem. Você sugeriria para todos os japoneses e os habitantes da costa oeste dos Estados Unidos a simplesmente deixarem suas casas e suas vidas porque ali há o risco constante de terremotos? Somente porque não há implicações tão grandes para a macro-estrutura, nos achamos no direito de propor o mesmo para pessoas que vivem em áreas que enfrentam enchentes anualmente, ou então secas regulares, pois achamos que temos alguma autoridade? É evidente que esta é uma discussão diferente no caso de um modelo de urbanização perverso, onde não se fornece condições de acesso à moradia com um mínimo de segurança e as pessoas, sem opção, acabam ocupando áreas de risco. Neste caso, é o próprio macro-processo que gerou o risco para tais pessoas e, por isso, é dele também a responsabilidade de resolvê-lo. No entanto, novamente este raciocínio não se aplica com a mesma força em casos maiores. A própria New Orleans está abaixo do nível do mar, com um risco iminente de inundações, assim como boa parte do território holandês, que através dos séculos "secou" enormes áreas do oceano para ganhar território. Em ambos os casos, grandes enchentes, em vários momentos da história, produziram grandes desastres, mas isto não alterou a forma de uso e ocupação do espaço. Solidificaram-se, isto sim, as formas de responder ao perigo, aumentando a capacidade de resposta e diminuindo a vulnerabilidade, mas as pessoas, cidades e indústrias continuam em seus mesmos lugares. Revela-se aqui, na minha opinião, a relação perversa que existe na discussão sobre populações em situação de risco. As pessoas menos favorecidas são vistas em geral como desinformadas, expropriando uma área que não é delas, precisando ser conscientizadas de que será melhor para elas aceitar irem para outro lugar. Mas por que elas não têm direito de escolher correr o risco? Ou quem sabe se os riscos que elas correm frente às enchentes ou aos deslizamentos não são menores do que os que elas poderão correr no novo loteamento que se preparou para elas, a quilômetros da cidade, do mercado de trabalho e dos serviços urbanos? Ou será que não há uma opção sem riscos? A questão não é discutir se há ou não há perigo nas situações, pois tecnicamente é possível inferir o risco. Contudo, nossa sociedade contemporânea, que alguns autores chamam de Sociedade de Risco, produz os mais diferentes riscos em quase todas as situações da vida cotidiana. Dizer que nós temos mais elementos para julgar qual risco será melhor correr é uma forma de prepotência que nossa ciência moderna cultivou ao longo de séculos, e tem resistido muito em deixar. A ciência e a administração pública têm de aprender a lidar com essas situações em condição de igualdade de conhecimento com as pessoas, dando maior importância ao conhecimento e ao saber que elas produzem em sua vivência ambiental.

ComCiência - Como os chamados natural hazards vêm sendo tratados, historicamente, pela geografia? É importante que haja um diálogo entre essa e outras disciplinas, como a demografia e a sociologia ambiental, para tratar dessa questão?

Marandola Jr. - A geografia é uma disciplina que tradicionalmente aborda sociedade e natureza de forma simultânea. Em vista disso, quando se iniciam os estudos sobre os perigos naturais, nas primeiras décadas do século XX, esta perspectiva já estava presente. No entanto, é evidente que naquela época havia uma preocupação pragmática, de um lado, e um viés teórico-metodológico positivista ainda presente, de outro, que direcionava o olhar dos pesquisadores. A dimensão biofísica do fenômeno sempre teve papel central nesses estudos, embora com um senso fortemente orientado ao planejamento e à gestão dos perigos. De outro lado, os eventos sempre eram analisados em seus contextos espaciais muito circunscritos, sem qualquer vinculação com as dinâmicas macro-sociais. Consoante ao próprio evoluir da ciência em geral, os estudos sobre perigos naturais ganham gradativamente novas dimensões, num primeiro momento sendo ampliandos para ambientais, incorporando a seguir os perigos sociais (fome, pobreza, exclusão) e tecnológicos (contaminação, explosões, radiação). É evidente que estes não tinham a mesma importância quando os geógrafos começaram seus estudos, o que indica que essa abertura corresponde tanto ao desenvolvimento da ciência quanto da própria sociedade. Os fenômenos se tornam mais complexos, as interações entre as dimensões da realidade e as escalas também se tornam mais imbricadas, conduzindo os estudos a aprofundar o relacionamento interdisciplinar. Muitos dos perigos contemporâneos não são apenas naturais, ou sociais ou tecnológicos: há muitos que possuem dimensões diferentes envolvidas, apontando para a necessidade desses diálogos entre especialistas. A sociologia possui uma linha de investigação sobre os desastres naturais, que se concentrou por muito tempo nas implicações sociais e econômicas dos eventos. Mas é na teoria da Sociedade de Risco que haverá um salto nessa abordagem. Esses teóricos deslocam o risco de um espaço circunscrito para o próprio mecanismo da reprodução social. Como conseqüência, os componentes sociais e tecnológicos de um perigo não poderiam ser compreendidos apenas na escala local. Com ela, podemos identificar vínculos globais em riscos que manifestam-se em várias partes do mundo. A demografia também possui um papel importante, por abrir um campo onde as duas influências, dos geógrafos e dos sociólogos, têm podido dialogar com mais intensidade. Preocupados com as populações em situações de risco, num primeiro momento os demógrafos são inspirados pelas mesmas questões e problemáticas dos geógrafos, procurando aliar suas próprias técnicas de pesquisa à perspectiva espacial geográfica e à contextualização macro-social da sociologia ambiental. A perspectiva mais promissora, portanto, é poder incorporar o interesse das três disciplinas, produzindo uma leitura multidimensional dos perigos, tendo as noções de risco e vulnerabilidade como componentes primários para a compreensão dos desastres. A geografia tem um papel fundamental, por ter uma longa tradição de congregar perspectivas sociais e ambientais arraigadas na dimensão espacial dos fenômenos. Ela poderia ser uma espécie de "pivô" de ligação entre as perspectivas macro-sociais e as preocupações populacionais, focando lugares e espaços específicos, mas sem perder de vista os mecanismos de produção social e as diferentes vulnerabilidades das populações. É, sem dúvida, uma pretensão ambiciosa, que implica o trabalho interdisciplinar e a abertura da visão de mundo dos cientistas, que se acostumou a "descobrir a verdade"; mas em nosso mundo repleto de incertezas e insegurança, não é mais cabível crer que a ciência é a deusa da razão. Neste sentido, talvez o maior desafio seja conseguir trazer a percepção e a experiência do risco para o bojo das discussões sem que os considere conhecimentos de "segunda linha", menos importantes ou ideologicamente alienados. Porém, eu não tenho tanta dúvida de que isso logo será mais amplamente consensual. Difícil mesmo será convencer as classes políticas, os tomadores de decisão, que nem sempre o tecnicamente correto é o melhor a ser feito, e que quando estamos tratando de riscos e perigos, as conseqüências não estão ligadas apenas a eventos extremos, mas que o risco hoje tornou-se parte da forma de reprodução da sociedade, e que se não enfrentarmos todas as facetas do problema, por todos os ângulos possíveis, suas conseqüências irão acumular-se em tal ordem que não haverá mais capacidade de resposta possível frente à enxurrada de perigos que teremos de enfrentar.

Atualizado em 10/11/2005

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