Há
mais de cinco décadas, Alan Turing - genial matemático
inglês, pioneiro da ciência da computação
e medalha de herói de guerra (por sua contribuição
crucial na violação dos códigos Enigma,
utilizados pelo exército nazista) - fez uma profecia.
Em até cinqüenta anos, escreveu, os computadores
serão dotados de memória e potência
de cálculo tão elevadas e de software tão
complexos que, em uma conversa em chat com um “Alberto”
e uma “Lúcia”, poderemos não
conseguir reconhecer qual deles é um ser humano
e qual é uma máquina. Quando isso acontecer,
disse o cientista, não tendo como distinguir, pelo
comportamento, computadores de seres pensantes biológicos,
teremos que admitir que os primeiros também são
seres inteligentes.
Cinqüenta anos se passaram,
mas a profecia de Turing não se tornou realidade.
Também não foram cumpridas muitas das promessas
iniciais, eufóricas, dos integrantes da nova disciplina,
que depois da morte de Turing passou a ser chamada de
Inteligência Artificial (IA). Alguns filósofos
argumentaram que a missão era impossível:
jamais um computador ou um robô poderão ser
conscientes, saber que existem. Entretanto, a disciplina
evolui e trouxe resultados que desmentiram a maioria das
previsões de seus adversários. Se hoje não
existem máquinas conscientes, ou capazes de sentir
emoção, há porém máquinas
efetuando tarefas que, desde Aristóteles e Descartes,
eram consideradas exclusivas de mentes inteligentes e
conscientes. Hoje, os computadores podem aprender. São
capazes de jogar xadrez tão bem quanto um campeão,
de demostrar teoremas matemáticos e até
descobrir novos teoremas. Há máquinas que
reconhecem rostos e vozes, que começam a entender
a linguagem humana, que negociam, planejam, mudam seu
comportamento em função do ambiente externo.
Existem robôs e agentes software capazes de simular
emoção e outros que até começam,
em parte, a perceber e reagir às nossas emoções.
O que é, então, a Inteligência Artificial
hoje? De acordo com Jaime Simão Sichman, professor
do Departamento de Engenharia da Computação
e Sistemas Digitais da Escola Politécnica da USP,
a IA é uma disciplina que ainda tem muitos desafios
a enfrentar, mas que já produziu aplicações
concretas e visíveis na sociedade. Sichman, que
é um dos coordenadores do Laboratório de
Técnicas Inteligentes (LTI), onde se desenvolvem
pesquisas em sistemas multiagentes, robótica móvel
e aprendizado de máquina, falou com a ComCiência
sobre o estado da arte da disciplina, que é articulada
em diferentes abordagens e vertentes.
ComCiência
– Alguns dizem que o desafio de construir máquinas
que tenham algum grau de inteligência ou consciência
é impossível de ser alcançado. Outros
afirmam que, num futuro próximo, teremos não
somente máquinas capazes de pensar mas até
“autômatos emocionais”. Qual é
a sua opinião?
Jaime Simão Sichman – Não
sei se teremos máquinas capazes de pensar, até
porque no meu conhecimento estamos ainda longe de entender
realmente como se passa o raciocínio humano. Por
outro lado, acredito que sejamos capazes de produzir máquinas
que exibam um comportamento similar ao das pessoas em
algumas tarefas que necessitem de algum processamento
cognitivo, por exemplo, reconhecimento de padrões,
planejamento, navegação autônoma etc.
Já existem algumas pesquisas avançadas em
fazer com que um agente exiba um comportamento emocional,
por exemplo, fazendo um personagem numa tela fugir (simulando
medo) caso um usuário faça uma careta. Mas
afirmar que o agente está realmente sentindo alguma
emoção é um passo grande a ser dado.
ComCiência –
Muitos pesquisadores afirmam que, na prática, a
IA já está presente na vida cotidiana. O
senhor acha que a IA já está tendo um impacto
na tecnologia ou na sociedade?
Sichman – Certamente. Alguns produtos da
chamada “linha branca” (como as máquinas
de lavar) têm componentes de controle baseados em
lógica nebulosa (fuzzy logic), principalmente no
Japão. Os robôs Aibo que, também no
Japão, são muito populares, têm componentes
arquiteturais derivados da Inteligência Artificial.
As técnicas chamadas de mineração
de dados (data mining), utilizadas por alguns sistemas
de busca da internet, também constituem um dos
ramos estudados na IA.
ComCiência
– Além de variadas aplicações,
a IA tem diferentes vertentes. No início, muitos
achavam que uma máquina pensante iria ser feita
de um grande computador com gigantescos algoritmos (como
o HAL 9000 em 2001, Odisséia no Espaço).
Mas também existe uma abordagem na qual comportamentos
inteligentes emergem a partir de sistemas feitos de redes
de agentes…
Sichman – Basicamente, sempre existiram
duas escolas na IA, que defendiam respectivamente a necessidade
ou a ausência de necessidade da representação
e manipulação de símbolos. A primeira
é chamada de escola simbólica, a segunda
é conhecida como escola conexionista. Exemplos
da primeira abordagem são as chamadas descrições
em lógica. A secunda escola produziu, por exemplo,
os sistemas baseados em redes neurais. A partir dos anos
1980, os sistemas computacionais mudaram: os mainframes,
isolados e cujo acesso era limitado a alguns poucos usuários,
foram substituídos gradativamente por plataformas
descentralizadas, onde coexistem milhões de computadores
pessoais, que passaram a ser interligados entre si na
década de 1990 através da internet. Essa
mudança de paradigma também se refletiu
na IA, passando-se a considerar que comportamentos inteligentes
podem surgir através da interação
de elementos, denominados agentes, que buscam atingir
um objetivo comum.
ComCiência –
E os agentes são inteligentes?
Sichman – A questão central é
justamente se os elementos de um tal sistema devem ser
mais ou menos inteligentes, no nível micro, para
que se possa observar um comportamento dito inteligente
no nível macro. Em outras palavras, podemos associar
um comportamento inteligente a um time de futebol e a
um formigueiro, mas individualmente nós certamente
não atribuiríamos a propriedade de inteligência
a uma formiga isoladamente.
ComCiência –
É essa não necessidade de grandes computadores
dotados de capacidade de manipulação simbólica
abstrata que o pesquisador norte-americano Rodney Brooks
queria defender quando escreveu que “os elefantes
não jogam xadrez”?
Sichman – Brooks, famoso pesquisador do
MIT, mostrou na década de 1980, no ramo da robótica,
que um robô “inteligente” não
necessitaria ter um modelo de mundo interno muito elaborado,
mas que poderia exibir um comportamento inteligente através
de diversos comportamentos simples pré-programados
como, por exemplo, evitar obstáculos e seguir linhas.
Essa idéia foi desenvolvida posteriormente para
comunidades de agentes, gerando o que se chama hoje de
inteligência de enxame (swarm intelligence).
ComCiência –
Existe pesquisa de ponta em IA no Brasil? Em quais áreas?
Sichman – Temos departamentos de pesquisa
muito bons hoje no Brasil, por exemplo na USP, na Unicamp,
na UFRGS, na UFPE, na UFSC, entre outras instituições
que poderiam também ser citadas. Temos pesquisadores
atuantes em sistemas multiagentes, robótica móvel,
processamento de linguagem natural, aprendizagem de máquina,
lógica, diagnóstico e outras áreas.
ComCiência –
A IA põe alguns interrogativos filosóficos,
e vários de caráter político. Por
exemplo, a elevada automação, impulsionada
pela necessidade de uma produtividade eternamente crescente,
pode agravar o drama da falta de empregos…
Sichman – Eu não acredito que a
IA tenha um grande impacto adicional na automação,
por exemplo em relação ao nível de
emprego. Se analisarmos a automação bancária,
que tecnologicamente pode-se dizer que tenha sido bem
sucedida, vemos que ela utiliza pouquíssimas técnicas
de IA.
ComCiência
– Outro problema, caro à indústria
cinematográfica em Hollywood mas que também
está se tornando uma preocupação
concreta dos governos de todos os países, é
o do controle social que as tecnologias inteligentes permitem.
O senhor acha que a IA pode se tornar instrumento de controle
para regimes autoritários, ou que ameace a privacidade
do cidadão?
Sichman – O grande problema de qualquer
área científica é o possível
uso inadequado de seus resultados. A bomba atômica
é um exemplo clássico. O controle social,
a meu ver, é mais ligado à questão
da conectividade universal propiciada pela internet. Cada
vez que um usuário é capaz de receber dados
automaticamente de um servidor externo (por exemplo atualizando
o sistema operacional Windows ou um outro programa
qualquer), ele também pode estar enviando dados
pelo mesmo caminho. Nesse sentido, o uso ou não
de técnicas inteligentes não teria impacto
na coleta de tais informações, que pode
já estar ocorrendo nos dias de hoje. A monitoração
do conteúdo de correio eletrônico, justificada
pela guerra ao terror, é um exemplo disso. É
verdade que, eventualmente, as técnicas de IA podem
facilitar o tratamento dessa imensa massa de dados. A
legislação sobre privacidade é ainda
incipiente em quase todos os países. Creio que
um debate mais profundo sobre o tema deva ser uma das
preocupações das entidades sociais nas próximas
décadas.