Entrevistas
Mais próximos de HAL 9000:
caminhos e desafios da Inteligência Artificial
Jaime Simão Sichman
Obsolescência
do humano serve à economia e à tecnociência
Maria Paula Sibilia
Entrevistas
Anteriores
|
Obsolescência do humano serve
à economia e à tecnociência
Em entrevista à ComCiência,
a antropóloga argentina Maria Paula Sibilia contesta a
idéia de obsolescência do humano. Para ela essa é
uma nova verdade, construída a partir da racionalidade
econômica aliada à racionalidade tecnocientífica, e
que tem sido alardeada e cristalizada no senso-comum, sem a devida
crítica. Autora do livro O homem pós-orgânico:
corpo, subjetividade e tecnologias digitais, resultante das
reflexões que fez em seu mestrado na Universidade Federal
Fluminense (UFF), Sibilia compõe o grupo “Subjetividade e
história”, liderado por Jurandir Freire Costa, tendo como
linha de pesquisa o “Sujeito cerebral e o impacto das
neurociências”.
ComCiência
- Pode-se considerar a superação ou obsolescência
do humano como um produto da convergência entre a racionalidade
econômica, segundo a qual “não há
alternativa”, e a racionalidade tecnocientífica, segundo a
qual tudo é manipulável em termos de
informação?
Maria Paula Sibilia - Eu procurei analisar a
“obsolescência do humano” como uma série de
discursos, imagens e metáforas que nos últimos anos
vêm surgindo de diversos campos (artes, jornalismo, publicidade,
academia, tecnociência, entretenimento), que são
copiosamente divulgadas nas diversas mídias e estão se
cristalizando no senso-comum como uma série de verdades
cada vez mais naturalizadas. A intenção dessa minha
pesquisa consiste, precisamente, em desnaturalizar essas
novas verdades, assinalando as suas raízes históricas
— e portanto inventadas, alinhadas em um determinado projeto
sócio-político, econômico e cultural. Esse projeto
ou regime histórico hoje vigora em boa parte do nosso planeta
globalizado, e poderíamos dizer que nele convergem uma racionalidade
econômica que
desconhece qualquer alternativa possível, e uma racionalidade
tecnocientífica que tende a converter tudo em
informação, inclusive os seres humanos, a natureza e a
vida. De acordo com essa perspectiva, a carne que conforma os nossos
corpos vive sob a ameaça da condenação à
“obsolescência”, e é acusada de
“impura” por ser finita, perecível e demasiadamente
orgânica. É por causa disso que deve ser cuidadosamente
submetida ao imperativo do upgrade constante, da reciclagem e
da atualização permanentes.
ComCiência
- Pode-se dizer que o homem se tornou obsoleto? Que fatores e processos
contribuíram para essa obsolescência?
Sibilia - Podemos dizer que as atuais condições
sócio-políticas, econômicas e culturais têm
tornado “obsoleto” um certo tipo de homem, uma certa
definição do que é ser humano. Assim, neste novo
contexto, os tipos de corpos e subjetividades que serviam aos
interesses do capitalismo industrial do século XIX e da primeira
metade do século XX, por exemplo, hoje estariam se tornando
“obsoletos” porque não são mais
“úteis” aos interesses do capitalismo
contemporâneo. Se aquele regime histórico demandava
grandes contingentes de sujeitos “disciplinados”, corpos
“dóceis e úteis”, especialmente treinados
para saciar as engrenagens da sociedade industrial e subjetividades
compatíveis com toda aquela maquinaria — como bem mostrou
Michel Foucault em seus ensaios e como bem ilustrou o personagem de
Charles Chaplin no filme Tempos modernos — a nova
torção do capitalismo ancorado no consumo parece
solicitar outras subjetividades e outros tipos de corpos: sujeitos
ávidos, ansiosos, criativos, flexíveis. Entretanto, essas
novas configurações corporais seriam igualmente
“dóceis e úteis”, embora respondendo a outros
interesses históricos.
ComCiência
- Há algo de inevitável e irreversível na
superação do homem? Qual o efeito dela sobre a
subjetivação (formação dos sujeitos)
contemporânea? A saída para o mal-estar causado por essa
percepção pode ser buscada no velho humanismo –
devemos tentar salvar o que há de humano em nós?
Sibilia - Foucault costumava dizer que a verdade é
“uma espécie de erro” que tem a seu favor o fato de
não poder ser refutada “porque o longo cozimento da
história a tornou inalterável”. Por sua vez, Gilles
Deleuze dizia que cada época tem as verdades que merece, e que
cabe aos jovens a tarefa de descobrir “a que somos levados a
servir”. O pensamento desses autores continua vivo porque eles
incitam ao questionamento permanente e estimulam as belas artes da
suspeita: as verdades devem ser sempre desafiadas,
questionadas, recriadas e reinventadas. Essa obra incumbe tanto
à filosofia como às ciências e às artes.
Não há nada de “inevitável” e de
“irreversível”, portanto, cabe a nós a tarefa
criativa (e eminentemente política) de definir o que somos, o
que estamos nos tornando e o que gostaríamos de nos tornar.
ComCiência
– É possível afirmar que a tecnociência
não tem limites? Trata-se de Fausto derrotando Prometeu? Como e
por quê?
Sibilia - É possível enxergar uma
tendência a desafiar todos os limites nas pesquisas, projetos e
descobertas mais recentes da nossa tecnociência — sobretudo
em certas áreas especialmente privilegiadas, como a
teleinformática e as ciências da vida, por exemplo. A
ciência moderna tinha como emblema a figura do titã grego
Prometeu, que foi duramente punido pelos deuses por ter cometido uma
terrível ousadia: usurpar as prerrogativas divinas entregando o
segredo do fogo aos homens. Esse mito lembra algo fundamental:
há certas coisas que não podem (e não devem)
ser conhecidas. Assuntos tão graves como o segredo da vida e os
mistérios da evolução biológica, por
exemplo, excederiam a racionalidade tecnocientífica, demarcando
limites que exigiam um solene respeito, pois questões dessa
índole deviam ser deixadas em mãos de outros campos, como
as artes, a ética, a religião ou a política. Essa
vertente prometéica, porém, sempre esteve em
tensão com outro vetor que também constitui as bases
filosóficas do saber hegemônico ocidental: o impulso
fáustico, que tende a recorrer à técnica para
desafiar todo limite e ultrapassar as barreiras que constringem a
condição humana. Segundo as análises do
sociólogo e epistemólogo português Hermínio
Martins, a tecnociência contemporânea vivencia um
desbalançamento em seus fundamentos filosóficos, com os
notáveis avanços da vertente fáustica em campos
como as ciências da vida e a teleinformática. É
nesse sentido que o ambicioso Fausto estaria derrotando o castigado
Prometeu.
Comciência
- Um pouco de ficção científica: o futuro se
pareceria mais com o esboçado em Gattaca ou, por
exemplo, seria mais parecido com o de Blade Runner ou o de Matrix?
É possível ser otimista?
Sibilia - Eu acredito que cada um desses filmes teve a virtude
de mostrar certas tendências do nosso presente,
mais que do nosso futuro:
certos fascínios e certos temores que envolvem os poderes dos
nossos saberes. Assim como Gattaca questiona a
prepotência e a tolice de certo determinismo genético cada
vez mais onipresente, Matrix expõe as angústias
da “virtualização” e das tendências
desmaterializantes da cibercultura. Por sua vez, Blade Runner
discute o que é ser humano em um mundo no qual as antigas
distinções entre natureza e artifício são
cada vez menos nítidas, e as criações
“perfeitas” ou “monstruosas” da mais nova
tecnociência iludem com sua ambigüidade.
ComCiência
- Se o humano, por assim dizer, já era, o que dizer de seu
“duplo”, seu “outro”, a natureza? A natureza e
o humano podem ser reduzidos a códigos,
informações? Quais as implicações dessas
transformações do homem e da natureza para a
compreensão de fenômenos como vida, morte e
reprodução? Quais são suas
conseqüências para o exercício do poder ou do governo?
Sibilia - O que entendemos por
“natureza” é um conceito, e esse conjunto de
idéias e imagens costuma mudar ao sabor da história. Se
na Idade Média a natureza era encantada,
enigmática e misteriosa, pois correspondia a um universo
sacralizado e era compatível com um homem criado “à
imagem divina”, a partir do século XVII essa natureza
precisou ser reconfigurada. Respondendo aos novos ritmos e
exigências da era industrial, a natureza foi gradativamente
desencantada e mecanizada. Esse processo atingiu seu apogeu
com a teoria da evolução das espécies, enunciada
por Charles Darwin em meados do século XIX. Nas últimas
décadas, porém, sob a influência da biologia
molecular e de outras áreas especialmente candentes da mais nova
tecnociência, mais uma vez a natureza está sob a
pressão de uma nova reconfiguração
histórica. Com a teoria molecular do código
genético, a natureza se tornou programável, e
está ingressando — ela também — no processo
de digitalização universal que marca a nossa era. Um dos
grandes sonhos da nossa tecnociência é a promessa de que
os “engenheiros da vida” possam efetuar ajustes nos
códigos informáticos que animam os organismos vivos,
assim como os programadores de computador editam software. Todas essas
reconfigurações e redefinições da natureza,
da vida e do homem têm profundas implicações em
todos os âmbitos, e por isso é de extrema relevância
que não permaneçam impensadas.
|