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Ficção científica reflete relações de gênero na sociedade
Lucia de La Rocque

Obras de ficção revelam características de momento histórico
Izabel Andrade Marson

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Izabel Andrade Marson

Obras de ficção revelam características de momento histórico

A narrativa ficcional pode auxiliar a interpretação histórica, revelando traços comportamentais, sociais, políticos e culturais de uma comunidade, em um determinado momento histórico. A afirmação é da historiadora Izabel Andrade Marson, pesquisadora do Departamento de História da Unicamp. Para ela, a liberdade do autor de ficção torna a obra mais sensível às aparências, aos lugares comuns, aos valores sociais, o que faz da ficção uma fonte rica para o historiador. Marson falou sobre a ficção como documento histórico em entrevista à ComCiência.

ComCiência - Como a obra ficcional se distingue das demais fontes com as quais o historiador trabalha? A ficção é auxiliar ou prioritária para a interpretação histórica?

Izabel Andrade Marson - As fontes documentais são freqüentemente fragmentárias. Ao "imitar a vida" a obra ficcional proporciona um relato que articula, de várias maneiras, vestígios comportamentais, sociais, políticos e culturais de uma temporalidade. Além de formas de expressão e argumentação, perspectivas do autor e do público, formas de relacionamento entre autor, público e obra e de confecção e reprodução da obra de arte.

Por outro lado, ao projetar performances de "como o real poderia ter sido", a obra ficcional auxilia no procedimento de conferir inteligibilidade à trama dos eventos, idéias e episódios. Ela instiga o historiador a refletir sobre as potencialidades inscritas no passado que não se efetivaram; a atentar para as possibilidades perdidas, esclarecendo sobremaneira a complexidade das circunstâncias e percebendo o quanto o movimento da história se efetiva enquanto confronto de projetos, possibilidades e indeterminação.

Para algumas temáticas, como a história da leitura, a ficção é referência essencial, quando não o próprio objeto. Para outras, equipara-se a outras fontes (o estudo da sociedade espanhola do século XVI e XVII, por exemplo). Num terceiro caso, pode ser importante auxiliar, como no estudo das revoluções brasileiras do século XIX.

ComCiência - Como a interpretação histórica utiliza as obras ficcionais?

Marson - Partindo-se do pressuposto de que toda narrativa cristaliza traços da temporalidade que a engendrou, ao configurar uma "imitação da vida" e ao delinear perfis do que "o real poderia ter sido", considero que as obras ficcionais revelam vestígios muitos significativos para a pesquisa histórica. Dessa forma, a narrativa ficcional pode sinalizar para o historiador traços comportamentais, sociais, políticos e culturais de uma dada historicidade. Pode ainda registrar concepções políticas e filosóficas. Ainda são importante objeto para uma história do imaginário e da leitura. E quando apropriada e significada num outro momento diverso daquele que lhe deu origem, a narrativa ficcional pode nos remeter, dentre outras questões, ao diálogo possível entre duas temporalidades distintas. Em resumo, a narrativa ficcional é, também, um registro muito expressivo das temporalidades.

ComCiência - Até que ponto outras áreas do conhecimento também utilizam a ficção como documento?

Marson - No campo das ciências humanas, lembramos da antropologia, da sociologia e da educação. Nas ciências tecnológicas a ficção geralmente idealiza projetos e realizações que acabam, pelo menos em parte, se concretizando. A história das invenções sinaliza que elas principiam, invariavelmente, como imaginação e ficção.

ComCiência - Como trabalhar com obras como Dom Quixote, que não é um livro realista, mas pode ser usado para entender a mentalidade da época?

Marson - O Quixote é um texto particularmente instigante para o historiador ou professor de história, pois sinaliza, de forma muito criativa (através de alegorias) e dialética conceitos, polêmicas, eventos, instituições, práticas sociais, políticas e culturais. Além disso, o conjunto das personagens reunidas no texto e seu desempenho denotam a complexidade da sociedade espanhola dos séculos XVI e XVII. Mais ainda, possibilita uma problematização de leituras consagradas de matiz liberal sobre essa sociedade.

Como exemplo, gostaria de lembrar 3 questões que revelam a temporalidade do texto e da sociedade que o engendrou: a negação entre realidade e imaginação focalizada a partir da intervenção das imagens e enredos veiculados pelos livros, no comportamento dos leitores, circunstância possível a partir da invenção da imprensa; a percepção dos partilhamentos, disputa e debate pela primazia sobre a verdade existente entre história e ficção e entre historiadores e literatos já nos séculos XVI-XVII. Há também a percepção do desencantamento do mundo promovido pelo desenvolvimento de instrumentos que dariam ao homem uma espécie de domínio sobre a natureza, dentre eles o moinho de vento, as armas de fogo, e os instrumentos náuticos.

ComCiência - De que maneira a ficção pode colaborar para a manutenção da memória de uma comunidade ou de um fato histórico?

Marson - A ficção é um recurso privilegiado para a (re)produção da memória de uma comunidade, particularmente quando aborda episódios e figuras históricas importantes para a construção da trajetória dessa comunidade. Este privilegiamento pode ser reconhecido nas várias modalidades de liberdade que a obra de ficção pode desfrutar. A primeira delas é a liberdade de criação que o autor de ficção tem como traço essencial de seu trabalho. A segunda, um desdobramento desta primeira, é a liberdade que o ficcionista dispõe para utilizar qualquer informação que achar pertinente para compor essa memória, condição sine qua non para o extravasamento de sua criatividade. A terceira, ainda decorrente das duas outras, nos remete à liberdade do autor em recorrer a diferentes formas de expressão para materializar o enredo ficcional veiculador dessa memória: texto, poema, canto, imagens, liberdade, que lhe permite atingir um público muito mais amplo do que outras narrativas. A quarta é a liberdade que o público consumidor dessa narrativa também desfruta na decodificação e incorporação do enredo ficcional.

Pode-se, considerar que, tendo a possibilidade de ser, ao mesmo tempo, entretenimento, alimento para o imaginário e veículo de aprendizagem, a ficção é recurso que, num mesmo ato, preserva e transfigura a memória das comunidades, registrando o percurso de suas temporalidades.

ComCiência - Como a ficção contribui para a construção de mitos numa determinada sociedade?

Marson - O acesso a todas essas mencionadas liberdades também possibilita um maior diálogo com os mitos, formas de desvendamento do mundo essencialmente necessárias aos homens e às sociedades. Assim, a falta de compromisso com o rigor na verificação das fontes, na recomposição das temporalidades ou eventos relativos à memória, e mesmo com o pensamento crítico, e a maior abertura em relação ao público consumidor e ao mercado, tornam a obra de ficção mais sensível às aparências, aos lugares comuns, aos valores sociais tornando-a um discurso muitas vezes reiterativo de princípios, assertivas pré-existentes ou em constituição. Esta proximidade é, inclusive, um dos atributos que tornam a narrativa ficcional uma fonte muito rica para o historiador.

Esta proposição, no entanto, não exime outros discursos, dentre eles as interpretações históricas desse partilhamento com as mitologias que singularizam as historicidades. Apesar do recurso às metodologias e da intenção de objetividade (especialmente as restrições colocadas à imaginação e ao uso das informações, além da exigência de comprovação) que se impõem ao texto historiográfico, há um compromisso das leituras históricas com as ideologias, as conjunturas políticas e premissas do historiador. Conforme já disse Lucien Febvre nos anos 30, e outros autores têm reiterado, também a história é filha de seu tempo.

ComCiência - Alguns filmes que retratam fatos históricos têm sido muito criticados por historiadores que afirmam que existe uma distorção da realidade. É o caso do nacional Olga e de A queda, filme alemão que retrata a vida pessoal de Hitler. Na sua opinião, obras cinematográficas podem ser consideradas interpretações históricas ou apenas um documento histórico?

Marson - A realização de um filme que aborda temáticas histórico-políticas é uma empresa espinhosa. Por um lado, porque personagens e circunstâncias histórico-políticas são multifacetadas e, portanto, dotadas de uma complexidade difícil de ser apreendida mesmo pela pesquisa histórica. Por outro, porque o filme se define numa encruzilhada de injunções. A primeira delas nos remete à liberdade de criação do diretor e do roteirista, injunção que os leva geralmente a privilegiar uma faceta das personagens e das ocorrências, aquela que mais os impressiona e que deve veicular a sua mensagem. A segunda injunção diz respeito ao fato do filme ser uma mercadoria de custo elevado sujeita às imposições de todo empreendimento que deve dar lucro, ou seja, deve agradar um grande público para ser um sucesso de bilheteria e garantir pelo menos o retorno do capital investido. O sucesso de público atende tanto ao desejo de projeção do autor quanto às cobranças do mercado. Terceiro, em virtude dessas contingências, o autor também se vê restringido pelo desejo do público, que, muitas vezes, valoriza abordagens que projetam apenas dramas humanos enfocados a partir das relações afetivas.

Disso tudo resulta o que se chama mais comumente de "distorção". A "distorção" é, parece-me, justamente a perda da complexidade dos protagonistas e das situações, fato que ocorre, por exemplo, com a personagem de Prestes e com o desempenho do Partido Comunista no filme Olga. Esta perda não inviabiliza que tais filmes de cunho histórico-político preservem, geralmente, os dois atributos mencionados na pergunta: constituem, ao mesmo tempo, uma interpretação histórica dentre outras (no caso de Olga fundada no livro de Fernando Morais que recorreu a muitas fontes, sobretudo cartas) e o caráter de documento - registro das preocupações essenciais de uma dada historicidade - no caso desse filme destaca-se, dentre outras idéias, o empenho do diretor em projetar a importância das mulheres como protagonistas da história política do Brasil e da Europa.

Entretanto, há exceções, como filmes que apreendem esta complexidade das circunstâncias e eventos com rara sensibilidade e acuidade. Lembro de La nuit de Varennes, de Ettore Scola, abordando um determinado momento da Revolução Francesa. Há também outros que fazem da temática histórica e personagens históricos apenas caricatura, o que me parece muito problemático.

ComCiência - Apesar das críticas, a senhora considera importante a existência de filmes como Olga para divulgar uma personalidade histórica ou um momento histórico importante, por meio da ficção?

Marson - Do ponto de vista do trabalho na sala de aula, os filmes com temática histórica constituem, no geral, uma experiência válida, porque sempre podem ser uma referência pedagógica importante para fundamentar a discussão. As imagens são um recurso didático expressivo para complementar e ilustrar conteúdos, ou ainda, no caso das interpretações muito problemáticas, para dar base a discussões vigorosas e problematizações, na medida em que podem ser contrapostos a informações obtidas em outras fontes.

Já do ponto de vista do grande público, parecem-me uma faca de dois gumes. Se por um lado, podem divulgar de maneira bastante razoável personagens e eventos (caso do filme Olga) por outro, sedimentam, às vezes, interpretações muito equivocadas. Cito um exemplo extremo, o filme Carlota Joaquina, princesa do Brasil. Nem sempre, ou na maioria das vezes, o público tem possibilidade de enfrentar mensagens, nesse caso sim, absolutamente deformadoras de personagens e eventos. Imagino que, quando o cineasta quer ter a liberdade absoluta de criação, particularmente na construção de caricaturas muito simplificadoras, deveria também atribuir nomes fictícios aos personagens.

ComCiência - Nesse sentido, um documentário pode ser considerado um documento histórico "melhor" do que um filme?

Marson - Não necessariamente. Há filmes e documentários de boa e de má qualidade, ou seja, mais ou menos lacunares. Documentários e filmes de boa qualidade, que sejam capazes de surpreender a complexidade e contradições das situações retratadas, têm a vantagem de projetar com maior clareza duas temporalidades: o momento focalizado no enredo e o da confecção da obra.

Ao historiador ou professor interessam todas as informações possíveis sobre o tema que está abordando, sobre a memória deste tema e sobre o período de estudo. Diante das duas modalidades de documentos, o ideal é que possamos associar filmes e documentários, de preferência, de boa qualidade.

Atualizado em 10/10/2004

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