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Ficção científica reflete relações de gênero na sociedade
Lucia de La Rocque

Obras de ficção revelam características de momento histórico
Izabel Andrade Marson

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Lucia de La Rocque

Ficção científica reflete relações de gênero na sociedade

Até os anos 60, livros e filmes de ficção científica trazem mulheres em papéis secundários e afastados da esfera do conhecimento. A pesquisadora Lucia de La Rocque, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), explica que, com o movimento feminista, o número de autoras de ficção científica cresce e a denúncia aos valores patriarcais se faz presente em obras que questionam o papel da mulher na sociedade. Rocque, que também é professora de literatura inglesa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), vê nesses trabalhos uma preocupação em mostrar como a ciência pode ser usada contra e a favor das mulheres e afirma que, ao contrário do que muita gente pensa, o público feminino se interessa sim por ficção científica.

ComCiência - Criadores ou criaturas, os personagens de livros e filmes de ficção científica são na grande maioria masculinos. Qual a razão disso?

Lucia de La Rocque - Os personagens são na maioria masculinos, mas até uma determinada época. A partir dos anos 60, você começa a ter uma participação maior de autoras mulheres na ficção científica, escrevendo sobre mulheres, com perspectivas feministas. Dos anos 70 para cá, tem muita ficção científica considerada feminista e, nessas obras, você vê muitos personagens, inclusive protagonistas, mulheres. Isso tem a ver com a situação do movimento feminista, quando as mulheres entram na força de trabalho. Os anos 60 e 70 têm todo um paradigma de libertação, de questionamento. Antes desse período, personagens femininos são poucos e ficam em segundo plano. São aqueles romances de ficção científica da primeira metade do século XX, onde as mulheres aparecem no máximo como ajudantes dos homens. Quando aparecem como cientistas ou tripulantes de alguma nave, elas estão sempre em segundo plano.

ComCiência - Como a ciência é vista nas obras realizadas por mulheres?

Rocque - Eu vejo definitivamente um olhar feminista, uma preocupação em mostrar como a ciência pode ser usada contra e a favor das mulheres, como arma do patriarcado ou para acabar com esse patriarcado.

ComCiência - Em relação aos autores, quem produz mais ficção científica: homens ou mulheres? Por quê?

Rocque - Nesse momento, está havendo bastante equilíbrio. Existem muitas autoras de ficção científica agora. Talvez ainda tenha mais homens porque algumas mulheres têm um certo preconceito de serem taxadas como autoras de ficção científica. Temos, por exemplo, a canadense Margaret Atwood, que é uma das autoras mais aclamadas da atualidade, que escreveu duas obras que eu considero de ficção científica: A história da aia e Oryx e Crake. A história da aia é uma ficção científica de cunho mais sociológico, que mostra uma alteração na sociedade. Existem diversos tipos de ficção científica, por exemplo, a sociológica e a hard, que trata das ciências biológicas, físicas e químicas. Oryx e Crake é uma ficção científica mais hard, que aborda a manipulação genética e a criação de um novo ser. Mas o máximo que Atwood admite é que se trata de uma ficção especulativa, porque existe o preconceito contra a ficção científica.

ComCiência - E quais os motivos desse preconceito?

Rocque - Grande parte da ficção científica pertence muito mais ao gênero chamado de Space Opera, que é bem pobre literariamente. Trata-se de um gênero em que se transporta uma história de caubóis para Marte, por exemplo, e diz que aquilo é ficção científica. Então, tem realmente uma parte da ficção científica que nem deveria ser chamada como tal, porque é sub-literatura mesmo, muito mal escrita, sem valor literário nem valor questionador. A boa literatura faz você querer sair da posição em que está para questionar o mundo. Acho que a ficção científica propriamente dita, que está encaixada na literatura de valor, faz isso de uma forma extraordinária, porque ela desloca o leitor para outro tempo e espaço e o faz questionar a realidade que ele está vivendo. A Space Opera não faz isso, ela conta uma história de aventuras em outro planeta e não tem valor nenhum. Muita gente acabou associando a ficção científica a esse tipo de lixo.

ComCiência - Pode-se dizer que a ficção científica é um gênero marginal na literatura?

Rocque - A ficção científica já foi considerada mais marginal. Como os críticos mais recentes começaram a separar o joio do trigo, existem estudos sérios e profundos nesse campo hoje. Ainda existem pessoas relutantes em admitir a ficção científica como gênero literário não-marginal, mas já há muitos movimentos no sentido de encarar a ficção como parte da literatura boa.

ComCiência - Como as mulheres são retratadas na ficção científica? Quais as diferenças em relação aos homens?

Rocque - Isso vai depender do autor. O escritor George Orwell, por exemplo, não tinha uma visão de gênero. Em 1984, as mulheres continuam desempenhando papéis secundários, elas são submissas, aceitando o papel imposto pela sociedade, são os homens que se revoltam. Mas, você tem também homens que retratam as mulheres de forma diferente, como companheiras. A mulher que aparece na ficção científica mais recente, principalmente na de autoria feminina, mas também na masculina, já é uma mulher que está em pé de igualdade com os homens, o que espelha uma tendência da sociedade.

No caso da ficção científica escrita por mulheres, dos anos 70 para cá, aparece muito a questão do biológico, do questionamento do papel da mulher como mãe. Isso eu não vejo tanto nas obras de autoria masculina. Mesmo os homens que vêem a mulher com um olhar mais igualitário não entram muito nessa questão da limitação e/ou superação da limitação do corpo.

ComCiência - Qual é o tipo de ficção preferido pelas autoras femininas?

Rocque - As mulheres entram muito na ficção científica sociológica, muito mais que os homens. As mulheres, principalmente nos anos 70 e 80, tinham esse questionamento do papel da mulher na sociedade. Como era uma conquista recente [a entrada da mulher no mercado de trabalho], o medo era de que isso ainda poderia ser tirado das mulheres. A ficção científica de autoria feminina dessa época traz a fragilidade da nova posição da mulher, como co-participante da sociedade.

É interessante porque aparecem os romances ditos flashers, caracterizados pela reversão dos papéis, que são os homens escrevendo sobre como seria o mundo se as mulheres dominassem. As obras flashers colocam os homens, portanto, como seres inferiores e explorados nas sociedades imaginárias nelas criadas. Temos exemplos dessa modalidade sendo elaborados desde as primeiras décadas do século XX, como o conto "The last man" de Wallace G. West, no livro When women rule, de 1929, mas os romances flashers mais conhecidos são da década de 70. São uma resposta às utopias feministas radicais e totalmente separatistas - excluíam o gênero masculino para que se concretizasse a possibilidade da utopia - da mesma época. Dentre esses últimos, destacam-se Regiment of women, de Thomas Berger, de 1973, e Gender genocide, de Edmund Cooper, de 1972. Os nomes são bem sugestivos...

Não é à toa que alguns homens começam a escrever esse tipo de ficção, porque é justamente o momento em que as mulheres começam a refletir a participação feminina na sociedade. Os homens têm medo dessa nova realidade e, nos romances flashers, as mulheres que dominam o mundo são horrorosas e masculinizadas. Mas isso é um veio bem pequeno da ficção científica. Foi um protesto que não deu muito certo.

Acho que a ficção científica feminista tem uma preocupação muito mais sociológica mesmo, do que com a ciência hard. E ela pode ser incluída como ficção científica a partir do momento que você considera a história e a sociologia como ciências. Nesse sentido, acho que a ficção científica feminista se ocupa mais dessas ciências, mas isso não quer dizer que ela não veja outras ciências, principalmente as biológicas. As autoras de ficção científica trabalham muito o papel da mulher como mãe, como isso pode aprisioná-la ou libertá-la. Então, você tem, por exemplo, a criação de mães-máquinas, que são máquinas que gerariam os novos seres sem passar pelo corpo da mulher.

ComCiência - Além de ser reflexo de uma situação socialmente determinada, a ficção científica é também determinante dessa realidade?

Rocque - Isso é muito questionável. Muita gente diria que não. Eu não acho que a ficção científica possa mudar a realidade, mas ela pode fazer pensar sobre aquela realidade e levar as pessoas a tomarem novos caminhos. Por exemplo, a escritora Marge Piercy, que imaginou a mãe-máquina no futuro utópico, que liberaria as mulheres e os homens poderiam ser estimulados para amamentar. Quer dizer, homens e mulheres participariam em igualdade da maternação das crianças. Esse livro, Woman on the edge of time, é de 1976. Em 1978, nasce o primeiro bebê de proveta. Lógico que, como não existe a mãe-máquina, o desenvolvimento do embrião se deu no corpo materno. Mas, de qualquer maneira, o fato do embrião ter sido "feito" numa proveta foi uma novidade enorme. A ficção científica já estava prevendo formas alternativas de reprodução. Acho que a ficção tem esse poder profético, porque ela não é feita em cima do nada.

ComCiência - O público feminino se interessa por ficção científica?

Rocque - Acredito poder afirmar que o público feminino se interessa sim por obras de ficção científica, principalmente por aquelas de cunho mais sociológico, que podem até conter elementos de ciência hard, mas que lidam principalmente com questões societárias concernentes à mulher, como divisão equânime - ou não - do trabalho extra e intradoméstico, quesitos relativos à maternidade e à maternação, sexualidade em geral etc.

ComCiência - E os homens, eles consomem obras de autoria feminina ou existe preconceito?

Rocque - É difícil generalizar, mas arriscaria dizer que os homens vêm se interessando progressivamente por essas obras escritas por mulheres, pelo menos no mundo acadêmico, embora ainda reste uma certa dose de preconceito, trazido à tona de forma bastante light e jocosa. Penso que a aceitação cada vez maior por parte dos alunos em se especializar em autoras feministas, não só no campo da ficção científica, mas de uma forma geral, espelharia uma tendência geral, que poderia se difundir mais ainda se mais homens tivessem real acesso a essas obras feministas em particular.

Atualizado em 10/10/2004

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