Resenhas Transportes no Brasil: a opção rodoviária |
Mad Maria Por Rodrigo Cunha
Após os conflitos entre brasileiros e bolivianos pela ocupação de uma região que corresponde ao atual estado do Acre, o governo brasileiro se comprometeu através do Tratado de Petrópolis, assinado por Brasil e Bolívia em 1903, a construir uma ferrovia desde o porto de Santo Antônio, no rio Madeira, em Mato Grosso, até Guajará-Mirim, no rio Mamoré, com um ramal que chegasse à Vila Bela, na Bolívia. O edital de concorrência pública para construção da ferrovia foi publicado em 1905 e vencido pelo engenheiro Joaquim Catrambi, mero testa-de-ferro do grupo norte-americano que se encarregou de construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré entre 1906 e 1912. Em Mad Maria, o romancista Márcio Souza - que também fez filmes e peças de teatro sobre a região amazônica - conta, em forma de ficção, as desventuras dos homens que trabalharam na etapa final da construção da ferrovia. O ponto de partida da narrativa é o verão de 1911, quando o jovem médico de origem irlandesa Richard Finnegan, começa a trabalhar na enfermaria do acampamento onde vivem os trabalhadores da Madeira-Mamoré Railway Company. O calor infernal e sua luta com os escorpiões que apareciam após as rápidas chuvas de verão eram apenas o prenúncio do que ele viveria a partir de então e o levaria, senão à loucura sintetizada na locomotiva que reina sobre os trilhos que ligam o nada a parte alguma - segundo o colérico engenheiro inglês Stephan Collier, que chefia as obras - à dureza de caráter, passando a encarar como rotina os óbitos de trabalhadores que ele atestava e registrava metodicamente em seus relatórios, e a lidar, ao final da narrativa, com os mesmos métodos de intimidação bélica que Collier adotava diante das insanas e freqüentes brigas entre os trabalhadores de diferentes nacionalidades.
Dentre os episódios que vão endurecendo o caráter do jovem Finnegan e que ilustram a crua violência que permeia grande parte da narrativa estão as mortes por malária de trabalhadores que vendiam a sua dose de medicamento preventivo para ganhar um pouco mais do que o salário miserável que recebiam da companhia, e o seqüestro do médico por trabalhadores alemães que, após uma tentativa de greve frustrada, resolvem fugir do acampamento e o levam como refém, amarrado dentro de um tonel de gordura carregado por uma mula. A violência aparece mais explicitamente em cenas fortes como a do negro de Barbados que decepa um alemão que o acusa de furto e tenta matá-lo, e a do índio que tem suas mãos amputadas após ser descoberto como o verdadeiro responsável pelo desaparecimento de objetos pessoais de irrisório valor material no acampamento, que provocava desavenças entre os trabalhadores. A vida desses estrangeiros recrutados para a construção da Madeira-Mamoré se tornou tão desvalorizada pelo baixo salário e pelas péssimas condições de trabalho e de acomodação que eles chegam facilmente à insanidade de - literalmente - perder a cabeça por causa de uma simples camisa ou de se arriscar a contrair malária, abrindo mão do medicamento diário em troca de algum dinheiro extra. Além do rastro de mortes deixado pela construção da ferrovia, há contrapontos na narrativa que atenuam o ambiente de insanidade infernal no acampamento. Até o sisudo engenheiro Collier, com seu ácido humor inglês, nos diálogos com o amigo Thomas, o maquinista norte-americano que trabalhou com ele em outras empreitadas, se torna uma pessoa amável. O contraponto mais nítido se personifica em Consuelo, a pianista boliviana que é levada ao acampamento após ser encontrada ferida e desacordada no meio da selva, e que uma vez alojada na enfermaria, mantém uma relação ambígua com o índio de mãos amputadas e com o jovem e metódico doutor Finnegan. A exemplo do que fizeram grandes nomes da literatura brasileira - como Antonio Callado, em Quarup, Rubem Fonseca, em Agosto, e Érico Veríssimo, em O Tempo e o Vento - o escritor amazonense Márcio Souza narra em Mad Maria um momento histórico do país, alternando a saga de personagens fictícios com a trama vivida por personagens reais, como o mega empresário norte-americano Percival Farqhuar, proprietário da Madeira-Mamoré Railway Company e de diversas concessões públicas no Brasil, entre portos, ferrovias e companhias elétricas. Essa trama envolve, além de Farqhuar, as altas esferas do poder público, incluindo o então ministro de Viações e Obras e futuro governador da Bahia, J. J. Seabra, com quem o empresário norte-americano "compartilha" uma amante. Esse, aliás, é um estereótipo usado por Souza para caracterizar as altas esferas do poder no universo do romance: nem mesmo o célebre jurista Ruy Barbosa, já septuagenário e em decadência política após perder a disputa da presidência para o Marechal Hermes da Fonseca, escapa de ter a sua amante.
Tirando alguns exageros, como a queda de árvores de cinco metros de raio (!) sobre os trilhos da ferrovia, e o hino norte-americano sendo tocado ao piano com os pés pelo índio de mãos amputadas, Mad Maria ainda assim é um bom romance que resgata esse trágico episódio envolvendo o capital estrangeiro tentando rasgar a selva com o progresso dos trilhos às custas de milhares de mortes. Entre os legados dessa empreitada norte-americana no Brasil está a cidade de Porto Velho, atual capital de Rondônia, erguida em 1907 durante a construção da Madeira-Mamoré e que substituiu a cidade de Santo Antônio como ponto inicial da ferrovia. Sucateada na década de 70, a estrada de ferro teve seus trechos iniciais recuperados para fins turísticos nos anos 80, mas hoje está totalmente desativada. A louca Maria, abandonada, há muito já não reina sobre os trilhos amazônicos e não joga sua fumaça pela selva desbravada. Outras obras sobre a ferrovia Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma expedição, de Neville Craig. São Paulo, ed. Nacional, 1947. Ferrovia do Diabo, de Manoel Rodrigues Ferreira. São Paulo, ed. Melhoramentos 1960. Trem fantasma: a modernidade na selva, de Francisco Foot Hardmann. São Paulo, ed. Companhia das Letras, 1988. Ferrovia Madeira-Mamoré: Trilhos e Sonhos - Fotografias, de Dana Merrill. São Paulo, Museu Paulista da USP, 1999. |
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Atualizado em 10/04/04 |
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