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Teoria Gaia oscila entre ciência, mito e metáfora

"O acaso quis um dia que eu visse uma imagem da Terra vista do espaço" - escreve o inglês James Lovelock , 91, em sua autobiografia (Homenagem a Gaia). "Eu a vi como uma maravilhosa anomalia do Sistema Solar, uma anomalia de tirar o fôlego: um planeta radicalmente diferente de seus irmãos, Marte e Vênus, desertos e sem vida. Eu vi na Terra muito mais que uma simples esfera de rocha lambida por oceanos, muito mais que uma nave espacial botada lá por um Deus benevolente para que a humanidade fizesse dela um uso exclusivo". Lovelock, químico, médico e inventor, é uma figura bizarra e carismática. Adorado por muitos ambientalistas, é também um defensor tenaz do uso da energia nuclear, que considera "verde". Tomado como exemplo por muitos grupos New Age, sempre teve uma postura marcadamente materialista. Ele se define um "cientista independente". Trabalhou décadas em sua mansão-laboratório, na Inglaterra, como uma espécie de pesquisador free-lancer, prestando consultorias para institutos de pesquisa científico-tecnológica de diversos países. Mais de trinta anos atrás, integrando uma equipe da Nasa que projetava detetores para a busca de vida extra-terrestre, formulou a idéia que iria transformá-lo em um dos mais contestados e famosos cientistas de sua geração. E que iria também transformar o imaginário de muitas pessoas do nosso planeta. "Eu vi", continua Lovelock, "um planeta que, desde os tempos de suas origens, se manteve apto para hospedar a vida. E achei que a Terra faz tudo isso por meio da homeostase, a sabedoria do corpo, exatamente como eu e vocês mantemos constante a temperatura e a química de nosso organismo. A vida não se limita a adaptar-se à Terra. Ela a modifica. A evolução é um baile de dois bem coordenado, no qual os parceiros são a vida e o ambiente físico e, desta dança, emerge a entidade que chamamos de Gaia".

"Mãe Terra" e filha de Lovelock, Gaia (que foi assim batizada graças a uma sugestão do escritor William Golding), é a teoria, amada por alguns e criticada por muitos, de que a vida não surgiu na Terra devido às condições climáticas favoráveis e à composição atmosférica diferente da de outros planetas. Pelo contrário, as condições geo-bio-químicas de nosso planeta seriam devidas, pelo menos em parte, ao fato de que a própria vida é capaz de criar as condições necessárias para se manter.

Desenvolvida ao longo da década de 1960 por Lovelock e pela bióloga Lynn Margulis, Gaia deriva seu nome do grego Gaea, divindade grega que representava a Terra e prefixo que também dá o nome à disciplina da geologia, por exemplo. A hipótese afirma que os seres vivos, além de se adaptarem ao meio ambiente (graças às mutações e à seleção darwiniana), também podem modificar alguns aspectos do mundo não vivo, como temperatura, composição química da atmosfera, estrutura dos solos. Nesta formulação cautelosa, a teoria é hoje aceita pela maioria dos cientistas. Mas Gaia afirma também que a biosfera (o conjunto dos ecossistemas) e a geosfera (solos, atmosfera, oceanos etc) são interligados e evoluem de forma conjunta, por meio de complexos sistemas de retroalimentação. O conjunto da geo-biosfera agiria como um sistema capaz de se auto-organizar de maneira de manter as condições melhores para existência da vida. "Como se a Terra", diz Lovelock, "fosse um único, grande organismo vivo". A afirmação causou assombro e polêmica.

"A linguagem dos primeiros trabalhos nos quais Lovelock apresentava a hipótese era poética, romântica, mas pouco rigorosa", comenta Marina de Lima Tavares, doutoranda em educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Essas descrições da Terra como sendo 'viva', como um organismo, foram mal explicadas e causaram mal entendidos na comunidade científica". Tavares, que trabalha sobre a hipótese há vários anos e integra um grupo de pesquisa da Universidade Federal da Bahia (UFBA) sobre história, filosofia e ensino das ciência biológicas, afirma que o próprio Lovelock admitiu os defeitos em suas formulações iniciais e, nos anos seguintes, refinou e reformulou sua teoria, com a ajuda de Margulis. "A biosfera não foi mais descrita como responsável, sozinha, por manter ativamente a homeostase do planeta, mas como interagindo com fatores geológicos e geoquímicos. Isso trouxe maior credibilidade à idéia".

Para exemplificar e testar sua hipótese, Lovelock e seus colaboradores desenvolveram um modelo matemático que mostrava como podem funcionar tais mecanismos de retroalimentação. Criaram um mundo virtual, muito simplificado, que chamaram de Daisyworld, 'mundo das margaridas'. Era um planeta habitado por duas espécies de flores, uma branca e uma escura. A simulação de Daisyworld no computador mostrou que esse ecossistema simples podia funcionar como um termostato, mantendo a temperatura do planeta dentro de limites aceitáveis para a vida. Quando o Sol emite pouco calor, a seleção natural favorece as margaridas escuras, que absorvem melhor a radiação e ficam mais quentes. Mas quando o Sol emite mais energia, as margaridas brancas são favorecidas. A competição entre as duas espécies ajuda o planeta a se manter em equilíbrio (homeostase): quando a temperatura aumenta, o grande número de margaridas brancas reflete a luz do sol e contribui para resfriar o planeta, enquanto quando a temperatura desce demais as margaridas escuras predominam e, absorvendo mais luz, contribuem para o aquecimento do planeta.

Obviamente, na Terra os mecanismos de retroalimentação são muito mais complexos, mas funcionam de maneira parecida. Por exemplo, quando o nível de dióxido de carbono aumenta na atmosfera, as plantas tendem a crescer mais, absorvendo em seu corpo o carbono em excesso e contribuindo em manter o clima e a composição da atmosfera em certos limites estáveis. A Terra, em certa medida, pode reagir às mudanças se auto-regulando. "O modelo das margaridas", comenta Tavares, "mostrou quanto a biosfera pode ser importante na dinâmica global de um planeta. Isso é muito mais importante de que afirmar que 'a Terra é viva'. Lovelock não foi o primeiro em formular essa idéia, mas enfatizou a importância de ver como os seres vivos não somente se adaptam mas também modificam as condições do planeta. O ponto de força de Gaia é justamente apontar para esta interação, pouco analisada, entre os solos, os oceanos e a biosfera por meio de sistemas cibernéticos de retroalimentação. Muito mais importante do que definir a Terra como 'viva' ou não viva é tentar analisar os mecanismos que contribuem em auto-regular a composição química da atmosfera e o clima do planeta".

Para Carlos José Esteves Gondim, professor da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e presidente do Grupo de Ação Ecológica Novos Curupiras, não é à toa que tais idéias foram desenvolvidas no início da década de 1970, quando a reflexão sobre equilíbrio ambiental estava se tornando mais e mais importante. "É bom lembrar", comenta o pesquisador e ambientalista, "que foi em 1972 a primeira Conferência Mundial de Meio Ambiente, em Estocolmo: certamente uma das primeiras visões do ambiente global. Um pouco antes, foi lançado o famoso livro Limites do Crescimento, por cientistas Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), sinalizando também que os recursos naturais são limitados".

No trabalho de geólogos e climatologistas, Lovelock buscou indícios de provas empíricas para sua hipótese. Algumas algas oceânicas que compõem o fitoplâncton, por exemplo, produzem substâncias gasosas (como o sulfeto de dimetila, ou DMS) que podem interferir na formação das nuvens. As algas têm uma dinâmica parecida com as margaridas imaginadas no Daisyworld. De acordo com Lovelock, quando há poucas algas no oceano, pouco DMS é emitido na atmosfera e a formação de nuvens é menor. Isso provoca uma elevada irradiação do Sol na superfície do mar, o que causa aquecimento e também favorece o crescimento das algas. Mas quando as algas aumentam, também aumenta a emissão do DMS e aumenta a cobertura de nuvens que refletem a luz solar, causando uma diminuição da temperatura. Chegando menos irradiação na superfície do oceano, também as algas diminuem, criando assim um sistema de auto-regulação que talvez possa contribuir para estabilizar ao mesmo tempo o clima e a quantidade de algas.

Esses indícios, porém, não convenceram todos os cientistas a considerar Gaia mais do que uma metáfora bizarra. Para muitos biólogos, não há dúvida de que os seres vivos, além de se adaptar ao meio ambiente a seu redor, podem modificá-lo. Mas isso não significa que a Terra evolua como um todo ou que possa ter mecanismos de auto-regulação efetivos. A crítica não foi direcionada somente à metáfora poética de uma Terra vista como hiper-organismo, mas também ao conteúdo específico da hipótese Gaia. Particularmente, a idéia de que a vida buscaria condições adequadas por seu próprio desenvolvimento foi considerada fascinante mas pouco baseada em fatos e nos dados empíricos. Richard Dawkins, por exemplo, célebre pelos uso que fez em seus livros da metáfora dos genes "egoístas", odiou a metáfora do colega free-lancer. Como é possível, perguntou, que um sistema complexo, feito de milhões de espécies diferentes, busque construir e manter condições "adequadas" para a vida? Existem tais condições, sendo que cada organismo luta sozinho para sua adaptação e precisa de clima e recursos diferentes? Pode existir altruísmo na evolução darwiniana? "Os opositores de Gaia acham que não existe algo como um 'bem comum' na natureza", explica Tavares, "e que então é muito difícil imaginar a existência de sistemas de auto-regulação do clima ou da composição química de partes da geosfera. Não existiriam, de acordo com eles, condições comuns favoráveis à vida como um todo", comenta Tavares.

No entretanto, se a hipótese Gaia encontrou grandes dificuldades para se tornar uma teoria científica, seu poder como metáfora inspiradora ou como símbolo de uma visão orgânica e não reducionista de nosso planeta foi, sem dúvida, extraordinário. A idéia de que a Terra pode buscar seus próprios equilíbrios, mas que também pode adoecer, foi aproveitada por muitos ambientalistas para advogar políticas sérias de desenvolvimento sustentável. E, de acordo com alguns, na didática da ciência e na educação ambiental Gaia pode ser um instrumento útil para imaginar as relações complexas que ligam seres vivos e sistemas não vivos em nosso planeta.

Para Gondim, Gaia, nesse sentido, não pode ser considerada uma moda passageira. Muito pelo contrário, essa visão orgânica da Terra está sendo incorporada à teoria ecológica por muitos pesquisadores, pode ajudar em explicar fenômenos anormais como secas em latitudes úmidas ou tempestades de gelo nas estações de verão europeu e também é de auxílio para quem como ele, trabalha com pesquisa-ação na área ambiental. "É um conceito de interferência no ambiente em que a geração de conhecimento segue junto com a sua imediata aplicação", comenta. "Assim, minhas idéias estão embasadas num olhar acurado e permanente do ambiente ao redor, perto ou longe. A grande força de Gaia está no retorno do pensar inteiro, na fuga deliberada da especialização, da compartimentalização do universo". Além disso, continua o ambientalista, a idéia da Terra como um ser vivo "provoca nas pessoas a consciência sobre o ambiente. Quando eu digo para os meus alunos que as águas dos rios e igarapés está para a Natureza tal qual o sangue está para o ser humano, ou quando digo que as minhocas fazem parte do intestino de Gaia, essas comparações fortalecem a visão de organismo e que este organismo é capaz de adoecer. Tem uma frase ambientalista, cunhada tempos atrás, que diz 'Pensar globalmente, agir localmente'. Esse pensar inteiro, global, remete para o organismo vivo Gaia. E isso é sensibilização ambiental, é educação ambiental, ou, melhor educação sócio-ambiental".

Para Tavares, pode ser prematuro afirmar cientificamente que "a Terra é viva", mas ao mesmo tempo, algumas metáforas de Lovelock podem ser úteis na didática. "A fala do Lovelock é muito poética, o que facilitou a popularização de sua teoria mas, ao mesmo tempo, dificultou sua análise séria por parte da comunidade científica. No entretanto, com relação ao ensino da biologia", conclui a pesquisadora, "Gaia tem muito a contribuir. Por exemplo, para explicar os ciclos bio-geo-químicos. Lovelock trabalha contra a fragmentação disciplinar. Na sala de aula, sua hipótese pode ajudar em mostrar a importância de uma visão mais geral e de uma abordagem interdisciplinar no estudo do planeta".

(YC)

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Atualizado em 10/11/2005

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