Biotecnologia: prioridades de pesquisa esbarram em limites legais
Células-tronco, transgênicos e acesso ao patrimônio biológico nacional estão entre os temas científicos mais recorrentes na pauta do dia. Acostumados a serem avaliados por seus pares, os cientistas agora vêem suas pesquisas e conseqüências questionadas por não especialistas, o que traz para a cena uma multiplicidade de conceitos e verdades. “Os cientistas da área biológica, por serem responsáveis, sempre buscaram avançar com segurança, tanto que foram eles os proponentes das regras de controle, pelos pares, de seus experimentos no uso da técnica do DNA recombinante e agora discutem como controlar os experimentos de obtenção de células-tronco embrionárias”, diz Glaci Zancan, ex-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e professora titular do Departamento de Bioquímica e Biologia Molecular da UFPR. A biotecnologia e biodiversidade incitam interesses que ultrapassam os acadêmicos e atendê-los significa, não raras vezes, um longa e demorada discussão até a regulamentação da prática científica. Os cientistas, por um lado, não querem perder o passo do desenvolvimento científico e de outro, há a preocupação em se barrar possíveis abusos éticos e econômicos.
Uma das formas de continuar pesquisas sem esbarrar na ilegalidade é procurando brechas nas lei existentes. Foi assim com a equipe de Lygia da Veiga Pereira, bióloga da USP que importou, em junho desde ano, quatro linhagens de células tronco embrionárias humanas da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, material cujo uso era até então vetado pela Lei de Biossegurança aprovada em fevereiro na Câmara dos Deputados. A pesquisadora explica que a Lei não mencionava a possibilidade das células serem importadas de outro país, dando margem para que ela e seus colegas obtivessem meios para avançar nos estudos, ainda incipientes no Brasil. “A ciência tem que seguir em frente, não podemos ficar parados”, afirmou na ocasião.
Com o material em mãos, a equipe da USP pretende comparar o desenvolvimento de células embrionárias de camundongos com as humanas, que têm sido consideradas uma das grandes alternativas ao tratamento de paralisias motoras, doenças cardíacas e mal de Alzheimer, entre outras.
Em outubro passado, a Lei de Biossegurança foi modificada pelo Senado e passou a permitir o uso de células-tronco de embriões humanos em pesquisas, o que já foi considerado pela comunidade acadêmica como uma importante conquista. No entanto, a clonagem terapêutica, que permitiria a multiplicação desses embriões, continua proibida e a pesquisa só será permitida com a condição do material estar congelado por um período igual ou superior a três anos, da data de publicação da lei, e ter autorização dos pais.
“Vivemos em uma democracia e as leis refletem a cultura do povo, que às vezes não fazem parte das prioridades dos cientistas”, acredita Pereira. A bióloga da USP enfatiza que uma das questões centrais é saber se as decisões tomadas na Câmara e no Senado estão realmente refletindo a opinião da população, que precisa ser melhor informada sobre as questões em pauta para não correr o risco de ser manipulada. Apesar disso, ela concorda que se abriu um enorme diálogo entre especialistas e parlamentares, que procuraram conhecer melhor o tema, antes da redação final do projeto de lei, que ainda não está finalizado. Por ter sofrido modificações, a lei retornará à Câmara. Enquanto isso, as células importadas estão congeladas à espera da aprovação de seu uso pelo Comitê de Ética da USP, que aguarda a requisição do pedido.
Essa mesma lei também regulamentará um dos pontos mais polêmicos da biotecnologia: os organismos geneticamente modificados. A cada ano, novas medidas provisórias substituem a lei definitiva de forma a atender os interesses de plantadores de soja do Sul e Centro-Oeste do país, como também ocorreu no ano passado. Após alterações, ficou definido que a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) terá autonomia para decidir sobre pesquisa, plantio, comercialização e transporte de transgênicos, além de definir quando será necessário emitir estudos de impacto ambiental à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Ibama. O excesso de poder, como é considerado pelo Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e pela organização Greenpeace, deixou ofuscado, principalmente, o princípio da precaução com o meio ambiente em favor da prioridade econômica.
Os estudos com organismos transgênicos não inibiram a atividade dentro dos laboratórios, mesmo porque ela não é proibida, embora para chegar ao campo (última fase de testes) precise de permissão da CNTBio. Assim, hoje, o maior corpo técnico dedicado a estudar OGMs no país é da Embrapa, órgão do governo federal, que há 23 anos iniciou a inserção de genes de fungos, bactérias, vírus e outros no genoma de alface, feijão, batata, mamão, banana, algodão, tomate e soja. A empresa quer, com isso, deixar as culturas mais resistentes a suas principais pragas e doenças, melhorar sua composição nutricional, baratear o acesso a medicamentos – como o hormônio de crescimento que seria produzido pela soja – e torná-las aptas a crescerem em solos pobres e secos, entre outros.
Até agora, no entanto, a Embrapa só conseguiu levar para o campo o mamão transgênico, enquanto a batata e outros aguardam a definição da Justiça.
O acesso e trânsito de material biológico, que dentro do território nacional era basicamente livre, passou a exigir regras para evitar, especialmente, o comércio ilegal e a remessa ao exterior do que ficou definido como Patrimônio Genético do Brasil, ou seja, toda e qualquer amostra de plantas, animais, fungos, microrganismos e outros, vivos ou mortos. Embora a Lei de Incentivo a Pesquisa e ao Uso Sustentável do Patrimônio Genético do País já tenha sido amplamente discutida entre membros do Planalto e da academia, ela ainda está para ser aprovada, depois de ter passado pela Câmara e Senado. Nesse vai e vem, o governo federal assegurou um diálogo intenso com os diretamente atingidos e interessados. Foram mais de dez reuniões em Brasília, de fevereiro a setembro de 2004, com os convidados permanentes do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), empresários, representantes de povos indígenas, ONGs, Ministério Público, entre outros – além de membros do ministério e instituições públicas de pesquisa federais.
O diálogo foi conquistado depois de uma mobilização da academia, desde 2001, quando a Medida Provisória no. 2.186-16 criou entraves que prejudicaram a liberdade de toda pesquisa que fizesse uso da biodiversidade nacional. Isso ocorreu, principalmente, porque não havia uma distinção clara entre o uso com finalidade acadêmica e comercial, o que praticamente acabou considerando a atividade do pesquisador como a de um biopirata. Assim, ao mesmo tempo em que o excesso de burocracia atrasou o andamento das pesquisas, não impediu abusos da comercialização de recursos biológicos. “O resultado desta MP foi desastroso para a pesquisa científica e, conseqüentemente, para o país”, lamentou Carlos Joly, ex-coordenador do programa Biota da Fapesp, que enviou, junto com outros participantes do programa, uma moção para o governo Lula pedindo alterações no texto.
No final de outubro, no entanto, o Ministério do Meio Ambiente se comprometeu a discutir com os convidados uma última versão do projeto de lei, que já foi modificado pela Casa Civil, antes de ser encaminhado ao Congresso Nacional. “Já é um avanço, pois teremos condições de analisar e apresentar sugestões ao texto”, afirma Joly, que também participa da discussão do projeto de lei.
A preocupação com o controle de acesso aos recursos biológicos não é recente. No final do século XVIII já havia uma intenção de Portugal em resguardar a colônia de expedições estrangeiras. Mas, apenas em 1933 seria regulamentada a retirada de material biológico do país. Com o passar dos anos, no entanto, ao invés de aumentar o rigor, a lei ficou mais permissiva. Esta é uma das conclusões de William Gama, que defendeu a tese de doutorado “O papel do Estado na regulação do acesso de pesquisadores estrangeiros na Amazônia brasileira na década de 1990: o caso do Inpa”, em agosto deste ano, no Instituto de Geociências da Unicamp. Para o pesquisador, a lei que vigorou desde 1933 foi modificada pelo Decreto no. 98.830/90, resultando em “um dos fatores, se não o mais importante, para alterar profundamente os mecanismos de controle governamental sobre a entrada de pesquisadores estrangeiros no Brasil e na Amazônia brasileira em particular”.
Em sua pesquisa, Gama analisou convênios firmados entre instituições de pesquisa do exterior e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e constatou que, de forma geral, “a parte estrangeira adquiriu completa autonomia, estabelecendo mecanismos unilaterais de projetos informais de pouquíssimo interesse para o Brasil”. Verificou-se uma enorme assimetria entre a participação de brasileiros e estrangeiros nas expedições feitas na Amazônia, por meio desses convênios, com uma proporção que variou de um para oito até um para nove, tornando apenas os recursos vindos do exterior atraentes para as instituições nacionais.
“Há certamente um engessamento na capacidade de o Brasil ter suas próprias políticas públicas para a Amazônia, sem terceirização, como tem sido até agora quando se vê que uma conjunção de ONGs, Banco Mundial, PPG-7, estabelecem suas próprias políticas para a Amazônia sem levar em conta os interesses nacionais, que são definidos por eles mesmos, lá fora”, lamenta o autor da tese. A ex-presidente da SBPC, Glaci Zancan, enfatiza que a biodiversidade é uma vantagem competitiva para o Brasil que não pode ser desprezada. “Só o conhecimento permitirá o uso sustentável dos recursos genéticos que estão disponíveis nos mais diversos ecossistemas do país”, diz.
Participação
O próprio processo de financiamento de pesquisas permite que haja um filtro sobre a liberdade de escolha de projetos. “É bom que o cientista não tenha toda a autonomia de decidir, pois o conselho [formado por especialistas], que julga os projetos de pesquisa [nas agências de fomento], pode apontar furos ou pontos fracos, enquanto o cientista pode refutar o parecer recebido; há um diálogo”, afirma Lygia Pereira, especialista em células-tronco da USP. Mas quando a liberdade e os rumos da ciência correm o risco de serem cerceados pela legislação é consenso entre os cientistas que sua opinião seja levada em conta. “Hoje não há como o governo ou o legislativo deixarem de apelar para a competência da comunidade científica na formulação de lei, já que a ciência e tecnologia permeiam todas as atividades humanas”, afirma Glaci Zancan, que acompanha há 15 anos as discussões em torno da Lei de Biossegurança. E Lygia Pereira concorda, dizendo que os parlamentares não têm a obrigação se saberem tudo, mas sim de se informarem antes da redação de um projeto de lei.
(GB)
|