Brasil é alvo de críticas internacionais por proteger tecnologia nuclear nacional
A área nuclear é atualmente uma das áreas que provoca mais discussões e reações da opinião pública quando são iniciadas pesquisas ou desenvolvidas novas tecnologias. Isso coloca as pesquisas atômicas ou nucleares entre as áreas sensíveis que recebem um forte monitoramento e pressões internacionais. A postura combativa “anti-terror” do presidente reeleito dos Estados Unidos, George. W. Bush tornou o desenvolvimento de tecnologias nucleares por países fora do eixo de poder Europa-América do Norte ainda mais difícil. O ressurgimento do “fantasma da bomba”, que paira sobre a cabeça da humanidade desde a Guerra Fria, após os atentados de 11 de setembro, acabou justificando muitas atitudes arbitrárias como já ficou demonstrado no caso da invasão ao Iraque.
A esse contexto, somam-se ainda questões econômicas e de importância estratégica para o desenvolvimento das nações, como é o caso do desenvolvimento de novas fontes de energia e o comércio internacional de urânio enriquecido que movimenta cerca de US$ 18 bilhões. Assim, não fica difícil entender o porquê da polêmica envolvendo a vinda de técnicos da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) para o Brasil, em outubro desse ano, para fiscalizar as instalações nucleares de Resende no Rio de Janeiro onde as Indústrias Nucleares Brasileiras (INB) pretendem começar a enriquecer urânio em escala industrial.
Tratados de não proliferação e inspeções
A preocupação com a questão nuclear já motivou a criação de diversos tratados internacionais de não proliferação de armas nucleares, sendo o mais importante o TNP criado em 1968. Também levou à criação da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), em 1957, hoje a responsável pela inspeção de instalações nucleares.
O governo federal considera que o Brasil tem motivos históricos para ser considerado “um bom cidadão nuclear”. A própria Constituição brasileira, de 1988, proibiu a utilização da energia nuclear para fins que não sejam exclusivamente pacíficos. Além disso, desde 1991, o Brasil possui um acordo bilateral com a Argentina e criou a Agência Brasil-Argentina de Controle de Materiais Nucleares (ABACC), com o objetivo de controlar o material nuclear desses países e também a abertura para inspeções mútuas. Para dar mais credibilidade a esse entendimento foi assinado posteriormente, em 1994, um acordo entre ABACC e AIEA para aplicação de salvaguardas nucleares. Em 1994, o Brasil também assinou o tratado entre os países da América Latina e Caribe, criando uma zona livre de armas nucleares. Finalmente, em 1998, foi criado o tratado para proibição completa de testes nucleares, do qual o Brasil foi um dos primeiros signatários. Todos esses acordos internacionais fazem com que o Brasil autorize inspeções coordenadas pela AIEA em suas instalações nucleares, como a que aconteceu em outubro na instalação de Resende.
Polêmica?
“Nossas instalações recebem anualmente um grupo de inspetores da AIEA e algumas são monitoradas continuamente por câmeras cujas fitas podem ser retiradas pelos inspetores da AIEA que também podem fazer visitas às instalações sem agendamento”, esclareceu o diretor da Associação Brasileira de Energia Nuclear (ABEN), Edson Kuramoto.
A cada nova instalação construída, são negociados novos procedimentos e normas para as inspeções antes que entre em operação. “É isso que está sendo negociado atualmente entre o Brasil e a AIEA”, afirmou Kuramoto. Segundo o diretor, essas negociações estariam ocorrendo dentro da normalidade. O Brasil estaria apenas definindo com a Agência os parâmetros da inspeção, com o intuito de chegar a uma decisão onde o segredo sobre a tecnologia nacional de ultracentrifugação seja preservado e as necessidades de informações dos inspetores da AIEA sejam atendidas.
“É importante deixar isso bem claro, porque da forma que está sendo divulgado acaba dando a impressão que o governo está negando a inspeção e batendo de frente com a AIEA. Mas, na verdade, quando o Brasil discute as normas para inspeção está justamente reafirmando suas intenções pacíficas, caso contrário não permitiria a priori essas inspeções. Todos nossos procedimentos de negociação estão obedecendo rigorosamente os acordos assinados”, garantiu Kuramoto.
Ainda na opinião do presidente da ABEN, o que tem sido exaustivamente divulgado na mídia são opiniões de agentes independentes, que possuem interesses diversos e acabam atrapalhando as negociações com a AIEA. “Em termos de pressões específicas de países ou da AIEA, elas de fato não existiram”.
O presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), Odair Dias Gonçalves reitera essa posição afirmando “o que está acontecendo é um processo de negociação perfeitamente normal”. Segundo ele, foram impostas pelo Brasil algumas restrições apenas no sentido de resguardar a nova tecnologia usada na ultracentrifugadora. “No final, achamos que foi possível satisfazer o interesse de ambas as partes sem grandes atritos. Os técnicos enviaram seu parecer para outras esferas da AIEA que dirão se acham suficientes as informações coletadas ou não. Estamos aguardando essa resposta de forma bastante otimista”, afirmou Gonçalves. Segundo ambos, não haveria pressões de países ou instituições oficiais como a AIEA ou ONU para que o país interrompa ou restrinja seu projeto nuclear, incluindo a nova instalação para enriquecimento de urânio.
Em entrevista concedida à revista Veja, em outubro, o secretário de Estado norte-americano Collin Powell confirma que não haveria intenção de interferir no Programa Nuclear Brasileiro, já que o governo norte-americano não vê o Brasil como uma ameaça nuclear. “Não existe nenhuma sugestão em Washington de que talvez o Brasil esteja fazendo isso para desenvolver armas. Isso é um absurdo. Ninguém de nós acredita nisso. Não podemos comparar uma democracia como o Brasil com um regime totalitário como a Coréia do Norte ou o Irã”.
Para Gonçalves, não há sentido em se discutir a proibição do Brasil em enriquecer urânio porque não existe nenhum acordo ou tratado internacional aprovado que determine restrições para produção de urânio enriquecido. “O Brasil chegou, inclusive, a ser apontado pela AIEA como um dos possíveis pertencentes ao pool de países que já possuem a tecnologia de enriquecimento de urânio e deve se tornar um dos fornecedores desse produto”.
Enriquecimento de urânio e questões econômico-estratégicas
Hoje, apenas quatro empresas concorrem no atraente mercado do urânio enriquecido. São elas: a Usec (Estados Unidos), a Eurodif/Cogema (França), a Urenco (consórcio formado por Alemanha, Inglaterra e Holanda) e a Tenex (Rússia). O Brasil, que possui a sexta reserva de urânio do mundo com potencial para chegar a terceira, além de não competir nesse mercado, gasta anualmente cerca de R$ 36 milhões com a importação de urânio beneficiado para alimentar suas usinas nucleares. As centrífigas de Resende serviriam para fazer com que o Brasil entre nesse mercado.
Estima-se que, nos próximos 20 anos, 25% da energia gerada no mundo será de fonte nuclear. A própria ONU calcula que, em 50 anos, o mundo vai produzir quatro vezes mais energia nuclear do que agora. Isso deve acontecer porque fontes de energia, como o petróleo, são finitas e logo serão uma opção economicamente inviável. No caso brasileiro, as reservas de petróleo podem não durar mais que 2 décadas e, a longo prazo, a capacidade de construção de novas hidrelétricas estaria esgotada. O hidrogênio, que pode ser produzido a partir de reatores nucleares, tem sido apontado como uma alternativa viável para o futuro para a alimentação de células produtoras de energia elétrica.
“Em termos comerciais, é lógico que existem interesses envolvidos. Há a crise do petróleo, as oscilações no preço do barril, junto com a percepção de que as reservas mundiais são finitas e que a utilização de petróleo deve se tornar inviável. Assim, uma nova fonte de energia terá que surgir. Esse ponto é fundamental para o futuro, mais do que uma questão comercial é uma questão estratégica”, salientou Kuramoto.
O urânio, quando sai de uma mina custa US$ 15 o quilo, no mercado internacional. Já o combustível pronto é vendido por cerca de US$ 1,5 mil o quilo. Apesar de já dominar as tecnologias do ciclo de produção de energia nuclear, o Brasil precisaria investir, segundo Kuramoto, cerca de US$ 2,5 bilhões para retomar seu programa nuclear.
“Há 50 anos se duvidava dos benéficos de criação da Petrobras, mas a empresa foi criada através do investimento de bilhões de dólares e nos tornou, hoje, praticamente auto-suficientes em petróleo. Essa lição nós temos que transportar para a área nuclear e também para as outras áreas de pesquisa em tecnologia de ponta, porque apenas através do desenvolvimento de pesquisas de ponta o Brasil poderá sair da situação atual de país emergente”, lembrou Kuramoto.
O processo de enriquecimento de urânio e ultracentrifugação
O domínio do ciclo do combustível nuclear com tecnologia nacional nasceu dos projetos da marinha a partir das pesquisas de desenvolvimento de reatores nucleares voltados para submarinos. Os trabalhos para dominar essa tecnologia se intensificaram a partir de 1979, um ano depois que os EUA suspenderam o fornecimento de combustível nuclear para a usina de Angra I e para os reatores brasileiros voltados à pesquisa. Em 1982, a marinha brasileira obteve sucesso com a primeira experiência realizada no país de enriquecimento isotópico de urânio, utilizando um protótipo de ultracentrífuga projetado e construído por pesquisadores e engenheiros brasileiros. As ultracentrifugadoras que serão usadas na instalação de Resende para enriquecer urânio derivam desse projeto.
O processo de enriquecimento de urânio consiste em adicionar ao urânio-238, comum na natureza, o urânio-235. Isso acontece porque o urânio-235 é menos instável, ou seja, mais fácil de ser quebrado para gerar energia. A proporção da mistura depende da aplicação para qual o urânio será utilizado. Usinas nucleares usam uma proporção de 3% de U-235 e 97% de U-238. Reatores nucleares para pesquisa, como os do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), usam cerca de 20% de U-235. Já as bombas atômicas usam 90% de U-235. O urânio natural possui somente 0,7% de U-235.
No Brasil, as principais ocorrências de urânio estão concentradas nos estados da Bahia, Ceará, Paraná e Minas Gerais. O país possui ainda urânio associado a outros minerais, no Amazonas e em Carajás (Pará). O urânio brasileiro retirado dessas reservas é transformado em yellow cake, um tipo de pó concentrado e mandado para o exterior para ser transformado em gás. Nesse processo, são usadas as centrífugas. Rodando a uma velocidade supersônica elas fazem com que o urânio 235 que é mais leve, fique no meio e seja sugado indo para outra centrífuga. Isso é repetido dezenas de milhares de vezes até que o gás seja enriquecido na proporção desejada. Quanto às ultracentrifugadoras desenvolvidas pelo Brasil, elas trariam a vantagem de não utilizar apoio mecânico, mas um campo eletromagnético, o que as torna mais eficientes e econômicas.
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(MT)
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