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Guilhermo Ruben e André de Mattos
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Ricardo Ungaretti
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Mal-du-siècle
Carlos Vogt
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Créditos
  Guerra e Ciência
Antropologia e política (uma primeira aproximação)

Guilhermo Ruben e André Borges de Mattos


Os "usos" do conhecimento antropológico têm sido objeto de debate entre os antropólogos desde o início do século XX até os dias atuais. É, portanto, um assunto merecedor de atentas reflexões na medida em que estamos longe de um consenso quanto ao tema. Não obstante, a história da antropologia tem fornecido elementos importantes para pensarmos os limites e possibilidades da aplicação do conhecimento antropológico.

De uma maneira geral, nas primeiras décadas do século XX, quando antropólogos, hoje tidos como pilares da disciplina, saíam para realizar seus trabalhos de campo, a antropologia esteve ligada aos interesses de Estado. Duas tradições são importantes nesses sentido: a antropologia inglesa e a antropologia norte-americana.

Em primeiro lugar, o caso da Inglaterra. Eminentes antropólogos ingleses, logo no início do século passado, tornaram-se fervorosos defensores do que poderíamos chamar de uma "antropologia aplicada". Adam Kuper, um importante antropólogo inglês, lembra, no entanto, que o objetivo desses cientistas era menos uma preocupação com a prática em si do que uma tentativa de tornar a antropologia - nesta época, ainda em fase de consolidação - uma ciência reconhecidamente útil aos olhos do governo inglês. Podemos destacar nomes importantes como pioneiros nesta área, tais como Audrey Richards, Isaac Shapera, Myers Fortes, Evans-pritchard e até mesmo Bronislaw Malinowski e Radcliffe-Brown, todos preocupados em contribuir para o reconhecimento da antropologia enquanto serviço público.

Por isso hoje se associa a antropologia ao projeto colonialista inglês. É verdade que esta relação existiu. Muitos antropólogos ingleses, por exemplo, ministravam cursos para administradores coloniais sob o argumento de que o conhecimento do povo nativo poderia facilitar sua administração. Radcliffe-Brown chegou a sugerir que a arte de governar, no futuro, deveria basear-se cada vez mais na antropologia aplicada. Da mesma maneira, temos uma clássica pesquisa junto aos Nuer, povo do Sudão Meridional, realizada pelo célebre antropólogo Inglês Evans-Pritchard, financiada pelo governo do Sudão anglo-egípcio. Outros exemplos poderiam ser mencionados.

Mas é preciso deixar claro que esta relação entre a antropologia britânica (o exemplo mais evidente tratado na literatura) e colonialismo é complexa e não tão direta como se imagina. Nesse sentido, um fato importante a ser lembrado é que muitos antropólogos, por terem a oportunidade não somente de estudar os grupos "colonizados" como de estar bem próximos a eles, eram os mais propensos a criticarem aspectos do colonialismo que pudessem prejudicar o bem estar destes povos. Malinowski foi um exemplo desta postura. Não são poucos os relatos irônicos de administradores coloniais sobre as dificuldades que muitos antropólogos impunham à administração colonial, na tentativa de defender os "seus nativos". Devemos enfatizar também que, apesar de lutar pelo reconhecimento da utilidade da antropologia para o governo, grande parte dos antropólogos sempre se mostrou contrária à definição de seu próprio papel como "agentes colonialistas". Gostavam de enfatizar que não competia ao antropólogo sugerir políticas a adotar, cabendo esta tarefa aos administradores. É importante enfatizar isso para percebermos as tensões e ambigüidades inerentes à relação antropologia-governo colonial.

Entretanto, apesar do interesse de muitos administradores coloniais pela antropologia como ciência capaz de colaborar para o conhecimento dos povos colonizados, é difícil fazer qualquer afirmação quanto à eficácia real da antropologia para o governo colonizador. Como os antropólogos se negavam a ser confundidos com os agentes coloniais, pouco se publicou acerca dos resultados práticos de seus estudos e pesquisas. Esta mesma carência de publicações científicas sobre a aplicabilidade do conhecimento antropológico é evidente até nos dias atuais, com exceção dos EUA onde o assunto é merecedor de uma maior atenção.

Obviamente, podemos inferir que o conhecimento crítico de qualquer situação é uma importante ferramenta para a intervenção. Tudo nos leva a crer, com efeito, que esse conhecimento pode ser usado tanto para a dominação quanto para a resistência à dominação. Mas até onde vai o papel do antropólogo neste processo é algo ainda a ser desvendado.

O caso da antropologia norte-americana é, sem dúvida, o mais rico exemplo de antropólogos comprometidos não somente com questões sociais como com interesses do governo em tempos de guerra.

No início do século XX, um dos nomes mais importantes da antropologia culturalista, Franz Boas, e muitos de seus discípulos, entre eles Ruth Benedict, dedicaram grande parte de suas reflexões e pesquisas para a resolução de problemas sociais, como o racismo, a suposta superioridade cultural de certos povos e os "perigos do xenofobismo" que podiam, no limite, levar povos a se odiarem reciprocamente.

No entanto, historicamente, a maior evidência da utilização da antropologia na América do Norte foi a participação em massa de antropólogos e antropólogas em agências do governo à época da segunda guerra mundial, atuando principalmente pelo Office of Strategic Services - OSS -, órgão predecessor da hoje mundialmente conhecida CIA, criado em 1942 pelo presidente Roosevelt. Entre os principais antropólogos que atuaram neste período podemos lembrar de Cora Dubois, Anne Fuller, Alexander Lesser, Alfred Metraux, George Murdock, Gregory Bateson, Ruth Benedict, só para ficarmos com alguns dos mais importantes.

Sem dúvida, um dos frutos mais significativos destes esforços foi o Crisântemo e a Espada de Ruth Benedict, um amplo estudo do maior inimigo dos EUA na época da Guerra realizado a pedido do governo dos Estados Unidos.

Existem pesquisas, como a do antropólogo norte-americano Richard Price, que estimam que metade de todos os antropólogos profissionais norte-americanos trabalhava "full-time" em algum órgão governamental relacionado à guerra, enquanto outros 25% dedicavam pelo menos parte de seu tempo para o mesmo fim.

Além dos casos já citados dos antropólogos ingleses que lutavam pelo lado "dominado", é recorrente na antropologia a afirmação de que os antropólogos, de uma maneira geral, sempre estiveram do "outro lado". Se pensarmos nos "objetos de estudos" da antropologia, veremos que são geralmente as minorias, os mais pobres, os marginalizados, etc. os grupos mais "legítimos" para serem estudados.

O Brasil é um caso típico de uma antropologia sempre engajada na defesa desses grupos. Uma das interpretações mais ricas deste traço da antropologia brasileira foi feita por Roberto Cardoso de Oliveira. Para ele, pode-se explicar essa "afeição" de nossa antropologia pelos dominados por meio do conceito de "colonialismo interno". Em outras palavras, temos um contexto social, cultural e econômico, no qual o antropólogo - o sujeito epistêmico - faz parte de uma sociedade colonizada em sua origem e que, ao mesmo tempo, reproduz internamente muitos dos elementos de dominação. Desta maneira, o antropólogo, por pertencer geralmente ao grupo dominante, é acometido por um tipo de "crise de consciência" que somente se desfaz quando ele passa a atuar em defesa dos grupos oprimidos no âmbito de seu próprio país.

Além disso, há, na história da antropologia brasileira, um projeto cívico de envolvimento com a construção da nação e, a partir daí, movimentos expressivos desta participação, como é o caso do "indigenismo".

Existe um grande numero de publicações sobre a história acadêmica e institucional da antropologia brasileira. Vale salientar, entre elas, os trabalhos de Mariza Corrêa, antropóloga da Unicamp e de Mariza Peirano, antropóloga da UnB.

Porém, como o leitor já deve ter percebido, este pequeno artigo enfoca principalmente as tradições disciplinares dos Estados Unidos e da Inglaterra. No entanto, a antropologia não se reduz apenas a esta duas tradições. Entre as "antropologias centrais", para parafrasear nosso grande antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, a matriz francesa é ainda um território a ser desvendado. Sabe-se que não apenas o estruturalismo é francês e que antropólogos "pré-acadêmicos" estiveram também envolvidos no processo de colonização, embora de maneira diferente do caso Inglês: os franceses eram simultaneamente missionários e antropólogos. Entretanto, esta é uma das dimensões a desvendar no âmbito da história da disciplina e que já começa a ser estudada tanto aqui como na França.

No nosso país, a antropologia francesa esteve muito ligada à Mision Francesa, que, por sua vez, muito contribuiu para a construção da USP. Não foi por acaso que Claude Lévi-Strauss, um dos principais professores que vieram ao Brasil para lecionar na Universidade de São Paulo, "descobre" sua teoria quando realizava suas expedições na floresta amazônica e no interior de Brasil... No fundo, até poderíamos dizer que o estruturalismo é brasileiro! Mas isto seria objeto de uma matéria em especial. Mesmo porque, os antropólogos franceses também marcaram forte presença na re-descoberta do marxismo, especialmente nas figuras de Claude Meillasoux e Maurice Godelier, que permitiram uma abordagem simultaneamente acadêmica e crítica do fazer antropológico. Neste caso, o desafio (estamos falando dos anos '60 e 70) foi tornar aplicável o materialismo histórico nas ditas sociedades primitivas, tidas como sociedades sem classes sociais. Um desafio, no entanto, até o momento não concluído, talvez pela falta de interesse do main strean de teoria antropológica.

Já para o caso da América Latina ou da América como um todo, é diferente. O norte do continente foi durante muito tempo (talvez hoje ainda seja) um grande financiador de antropólogos, tanto norte-americanos como nativos dos países ao sul da fronteira mexicana, para contribuir na construção da hegemonia norte-americana no sub-continente latino. Dois grandes projetos internacionais apenas, o "Projeto Camelot" e o projeto "Marginalidade" (que também dariam espaço para matérias isoladas), podem ser lembrados como exemplos expressivos desta tendência. Na linha antropológica comentada, aquela inaugurada por Ruth Benedict, "melhor conhecer o outro (o inimigo?) para dominá-lo", esses projetos foram muito polêmicos e envolveram grandes intelectuais latino-americanos que, finalmente, produzem sua famosa autocrítica no número 69/2 da Revista Latinoamericana de Ciências Sociais, publicada pelo tristemente fenecido Instituto Di Tella de Buenos Aires. O Ponto central de ambos os projetos eram pesquisas sobre as subjetividades das classes subalternas, cuja precariedade do salário e a instabilidade urbana tornavam-nos "marginais" e, portanto, potencialmente candidatos a serem recrutados pelos movimentos guevaristas daquela época. Para bem ou para mal, tanto os projetos acadêmicos como os projetos guevaristas, conheceram o fracasso e os últimos, lamentavelmente, a derrota militar e o assassinato do líder dissidente da Revolução Cubana. Outro caso interessante a pensar é o de Israel, onde em recente Tese de Doutoramento defendida na área de Etnografias do Saber do Doutorado em Ciências Sociais da Unicamp, a antropóloga Marta Toppel nos conta como os antropólogos israelenses deviam ingressar uma vez por ano nas tropas militares!!!

No que se refere aos nossos dias, torna-se difícil fazer comentários precisos. A poeira de toda essa história ainda está se assentando. Mas há uma clara divisão entre os antropólogos, não apenas teórico-metodológica, senão sobre a definição de uma agenda de problemas a serem desvendados como contribuição da antropologia para a construção de uma sociedade mais justa. Eles vão desde os assuntos ecológicos até o papel social das empresas. Alguns contam com o interesse e apoio de agências internacionais e nacionais. Outros, menos. Não é o caso de falar em dois lados. É simplesmente o indivíduo-cidadão antropólogo que escolhe, num leque de opções, o caminho de sua carreira profissional. É certo que a grande maioria desses antropólogos, para terminar em nosso meio, é composta por profissionais de excelente formação acadêmica (a antropologia brasileira é, talvez, entre as ditas periféricas, a mais rica e plural). Porém, indiscutivelmente, não há como separar o fazer antropológico da intencionalidade política.

Guilhermo Ruben é PhD em Antropologia atual Chefe do Departamento de Antropologia da Unicamp (gruben@uol.com.br). André Borges de Mattos é estudante do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Unicamp e focaliza em seus estudos a atuação dos antropólogos fora da academia. (aborges@unicamp.br)
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Atualizado em 10/06/2002
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