Carta
ao leitor Cartas anteriores: Ciência,
Tecnologia e Inovação: Português
e Esperanto-Inglês Biodiversidade:
a vida e seus semelhantes O
salto Cântico da Física Informação
e Simulacro Amazônia:
Diversidade e Conflito Com
Ciência na SBPC
|
Clones e Medos Crônicos Carlos Vogt
I O filme A.I. (Inteligência Artificial), de Steven Spielberg, exibido até há poucas semanas nas telas de nossos cinemas, é a história de um clone triste. A novela O Clone, de Glória Perez, com fantásticas imagens e cenários do diretor Jayme Monjardim, é a história alegre de um clone triste. O Fausto, de Goethe, publicado, originalmente, em dois volumes com um longo intervalo de tempo entre eles (1808, o primeiro e 1833, o segundo) é a história trágica de um clone cômico. O Frankenstein, ou O Prometeu Moderno, de Mary Shelley, que o publicou anonimamente, em 1818, quando tinha apenas 19 anos, é a história trágica de um clone trágico. De comum, em todas essas obras, de épocas tão diferentes, o mesmo mito do cientista que, descontente com as limitações de sua própria existência, busca superá-las com a criação de vidas sobre-humanas. Há outras histórias da mesma família como, por exemplo, aquela que se conta no romance O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, publicado em 1886, ou esta outra, de H.G. Wells, A Ilha do Dr. Moreau, de 1896, ou até mesmo aquela bem mais antiga narrada na Bíblia, no Velho Testamento, no livro de Jó, em que Deus permite ao Diabo a "clonagem" do Jó rico e feliz no Jó pobre e infeliz para a dura provação de sua crença e de sua devoção ao Senhor.
A transformação de um em outro e o retorno à identidade original, enriquecida pela viagem do estranhamento de si mesmo e da alteridade, é um tema recorrente nos mitos clássicos da antigüidade e mesmo nos mitos mais modernos do ciclo de novelas de cavalaria, na Idade Média, ou no do médico-cientista que vende a alma ao diabo, também na Idade Média e na Renascença e que, além da complexa beleza, da versão de Goethe, culmina, mais recentemente, no século XX, no vigoroso romance de Thomas Mann, Doutor Fausto. Por outro lado, a saga de gêmeos no imaginário da cultura, as mais diversas e antigas, acrescenta ao tema da duplicidade elementos que reforçam e aprofundam as indagações metafísicas do homem, através dos tempos, sobre a singularidade de seu destino comum. O tema do espelho, em particular do retrato que representa o mesmo, sendo, no entanto, o outro, e que tem no conto "O Espelho", de Machado de Assis um de seus momentos altos, propicia no romance de Oscar Wilde, O Retrato de Dorian Gray, de 1891, tanto a definitiva notoriedade do autor como a sua plena realização literária. Trata-se, como se sabe, de uma narrativa filosófica, cujo protagonista é jovem, belo, dedicado ao prazer e ao culto da beleza. Recebe de um amigo pintor o retrato que espelha, luminoso, tudo isso. Angustia-se com a idéia de que um dia perderá tudo e, por um pacto e um voto, consegue transferir para o quadro as marcas do tempo e do envelhecimento, mantendo-se em eterna e fresca juventude. Abandona a angelical Sibyl e acaba assassinando o amigo pintor que desaprova o seu comportamento e recusa a sua conduta. Atraído pela própria imagem no retrato, assiste, às vezes, à degradação de si próprio no outro, representado. Numa dessas vezes, contemplando o rosto degenerado de seus vícios, no retrato, dilacera-o com um punhal, tombando morto no instante mesmo em que sua imagem é destruída por ele próprio. Há semelhanças entre o livro de Oscar Wilde e o Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, publicado poucos anos antes, assim com as há também com outras obras românticas e pós-românticas como é o caso de La Nuit de Décembre (A Noite de Dezembro) de Alfred de Musset e, mais especialmente ainda, com La Peau de Chagrin (A Pele do Onagro), de Balzac, este último carregado ainda mais de simbologia dual, ou de dualidade simbólica, por ter sido o último livro lido por Freud antes de sua morte, em 23 de setembro de 1939, conforme nos relata Peter Gay em sua biografia famosa do fundador da Psicanálise.
A eterna busca do fogo sagrado da vida nos torna perseverantemente teimosos, do ponto de vista epistemológico, e teimosamente ridículos, do ponto de vista dos malogros a que nos condenam os mitos e as suas recriações literárias, em diferentes épocas. Nem por isso deixamos de continuar Prometeus e de transgredir os limites que a ética e as religiões estabelecem para cada época, como condição de harmonia social, de felicidade individual e de sábia ignorância. Assisti, há dias atrás, pela televisão, a propósito do anúncio dos cientistas da empresa Advanced Cell Technology (ACT) de que haviam clonado um embrião humano, ao rabino Sobel, de São Paulo, declarar não ser contra os avanços da ciência nesse campo. O problema, disse ele, é saber como, onde e quando parar. O rabino tem razão, mas, na verdade, o enigma da ciência só se completa quando a esfinge do conhecimento pergunta também: - Por que e para que parar? Com isso se fecha o círculo ético de nossas incertezas e dele ficamos prisioneiros, pois a capacidade social de resposta a essas perguntas é cada vez mais lenta diante da velocidade cultural com que a ciência e a tecnologia avançam em novas descobertas e em novas invenções. A vertigem desse ritmo não é, contudo, ditada apenas pelo potencial intrínseco do conhecimento científico ou do domínio tecnológico a que a humanidade chegou. É também pautada fortemente pelo apelo do mercado de capitais, ávido de notícias e de boatos, que possam mover as bolsas, e do dinheiro fazer dinheiro. O caso da Advanced Cell Technology é típico. O anúncio da clonagem de um embrião humano foi feito em revista não especializada, os cientistas do mundo todo contestaram a declaração e o veterinário Jose Cibelli, vice-presidente da empresa teve, ele próprio, de acomodar a estridência do anúncio às finalidades terapêuticas mais consentidas no estágio atual das leis e da admissão ética e religiosa das pesquisas genéticas nesse campo. O fato é que a ACT, anunciando ter feito muito mais do que fez, mexeu com o mercado e nele valorizou-se. E foi exatamente isso que atraiu a atenção do médico italiano Severino Antinori, paladino da reprodução humana clonada, que acusou os cientistas da empresa americana de roubarem sua idéia. Razões da ciência de marketing muito mais do que de marketing da ciência, como se vê. O papa João Paulo II condenou enfaticamente a clonagem de seres humanos e nem mesmo a atenuação das declarações da ACT, dizendo que suas experiências se destinam, não à clonagem, mas ao tratamento de doenças como o mal de Parkinson e a diabetes, abrandaram a posição de repúdio convicto e de condenação peremptória adotada pela Igreja Católica. Segundo a Pontifícia Comissão para a Vida, os embriões já são vidas humanas com os direitos próprios de todo ser humano e, clonados ou não, não podem ser sacrificados na busca das células-tronco. O presidente Fernando Henrique Cardoso fez saber, através do porta-voz que seu entendimento é o de que a ética impõe limites à pesquisa científica. E a ciência aceita esses limites? E o mercado compraz-se com as moratórias da ciência e da tecnologia? E o cientista submete sua vaidade secreta às razões da causa social da ciência e à humildade de seus próprios temores? E a megalomania dos ricos e poderosos aceita despir-se de seus projetos de eternidade? Quando alertados pelo fato de estarem competindo com Deus, ao manipularem a vida humana, muitos deles repetem, em clave de modesta humildade, não serem mais do que um mero instrumento da divindade. O que, convenhamos, já não seria pouco, admitindo-se a nossa falibilidade e a cômica humanidade de nossos desatinos. Jose Cibelli, sempre no esforço de atenuar as críticas às declarações da ACT, disse também que o objetivo da empresa é reverter o tempo e, desse modo, retardar o envelhecimento e alongar a vida. Reencontramos aqui o mito da longevidade e da eterna juventude que já havíamos reconhecido em O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde e que aparece também num folhetim gótico de Balzac - O Centenário -, ou ainda, mais recentemente no excelente O Perfume - História de um Homicida, do alemão Patrick Süskind, de enorme sucesso no mundo todo, desde que foi lançado, em 1985. Tanto em O Centenário, como em O Perfume, vida sobre-humana, ou a sobre-humanidade da essência da vida alimentam-se do vigor, da juventude e da beleza de outras vidas humanas, numa espécie de vampirismo sem caninos e sanguessugas . O principal investidor da ACT, o milionário Miller Quarles, propala aos quatro ventos que quer ser o primeiro ser humano a chegar aos 200 anos de idade. Como alimentar esse sonho?
Segundo o Velho Testamento, Jó, depois de voltar a ser rico, respeitado e feliz, por vontade de Deus, viveu ainda, 140 anos, morrendo muito velho, numa nova família de muitos descendentes. Será que a ciência dará ao nosso empresário da ACT a mesma compensação e o mesmo destino ditoso do penitente Jó? A crer no que oferece a seita Raëlita e a empresa Clonaid a ela ligada, através dos pronunciamentos do guru da primeira, Raël, um ex-piloto de automóveis francês, e da bioquímica da segunda, a também francesa Brigitte Boisselier, sim e para já. A página desse pessoal na Internet anuncia a realização dos sonhos míticos da humanidade, por preços que variam de 50 mil a 200 mil dólares, entre eles o da ressurreição de entes queridos desaparecidos, já que o próprio Jesus só ressurgiu dos mortos pela ação de alienígenas conhecedores, já naquela época, da biologia molecular e da tecnologia da clonagem. Leon Kass, bioeticista norte-americano com fortes ligações religiosas, considera que o medo que a sociedade tem em relação à clonagem de seres humanos é parte do que ele chama de "sabedoria da repugnância" (wisdom of repugnance), aqueles conhecimentos que possuímos, como seres humanos e para os quais não há nenhuma necessidade de argumentação lógica e de demonstração racional. Os raëlitas, se entregam ou se entregarão o que vendem, não sei, mas que reforçam e dão razão aos argumentos religiosos da ética de Kass, quanto a isso não há a menor dúvida. Num artigo interessante de 1998, P.D. Hopkins, analisa o comportamento da mídia americana relativamente ao anúncio da clonagem da ovelha Dolly e identifica constantes morais por ela veiculadas, classificando-as em três grandes grupos de medos e receios: o da perda da unicidade e da individualidade do ser humano, as motivações patológicas do desejo de clonar ou ver clonado um ser humano e, enfim, o medo da perda do controle da ciência sobre os objetos e os seres de sua criação. Vem-nos imediatamente à lembrança as ficções de 2001 - Uma Odisséia no Espaço, a narrativa de Arthur Clarke e o filme de Stanley Kubrick, Blade Runner, de Ridley Scott, do livro de Ira Levin Os Meninos do Brasil e a sua versão cinematográfica, além, é claro, do clássico romance de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo. Alguns autores distinguem uma ética da clonagem de uma ética na clonagem, argumentando que a maior parte das discussões éticas que cercam o tema até agora são externas a ele. Mas será a ciência capaz de representar-se a si mesma em fóruns distintos ao dela própria? Pode o conhecimento conhecer-se a si próprio, ou a mente representar-se a si mesma, ou a consciência ser consciência da própria consciência? Não há ciência sem simulação, tampouco conhecimento sem linguagem e representação. Os símbolos fazem a mediação do mundo e do conhecimento do mundo. A unidade e a unicidade do ser humano são o fundamento de sua humanidade, e a vida é sagrada porque morre e renasce em diferenças e dessemelhanças. O humanismo feroz e a humana ferocidade da literatura de Hemingway ressoam na epígrafe clássica de Por Quem os Sinos Dobram?: "Nenhum homem é uma ilha... Eles dobram por ti". A banalização do mistério da vida, posto em gôndolas eletrônicas da Internet, banaliza a morte, a violência, o crime e faz terra arrasada da singularidade da existência de cada ser humano em sua infinita provisoriedade. Dessacraliza a vida. Tudo o que o homem pode fazer ele fará, mesmo que a custo de muitas vidas e muito arrependimento tardio, como foi o caso para os autores da bomba atômica. Cedo ou tarde, o homem clonará o homem e com mais facilidade do que fez a bomba, porque os aparatos tecnológicos e os custos envolvidos são mais simples e instaláveis numa clínica particular. É um risco para o qual a sociedade não está ainda preparada a não ser pelo medo mítico das representações que conhecemos e quem sabe pela "sabedoria da repugnância" de que nos fala a bioética de Leon Kass. Será suficiente? Dizem os
deuses que não; seus instrumentos, que sim!
|
|
|
Atualizado em 04/12/2001 |
|||
http://www.comciencia.br |
Contador de acessos: