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Amazônia: Diversidade e Conflito

Inferno Verde, Pulmão do Mundo, Hiléia, Paraíso Verde, Eldorado, são algumas designações e metáforas, entre tantas, com que a Amazônia é referida ao longo dos tempos, de acordo com as variações do humor ideológico de plantão.

Como escreve Samuel Benchimol no seu clássico Amazônia - Formação Social e Cultural, "depois da Guezerá (sentença maldita) da Ibéria, do Guehinan (inferno) de Marrocos, a Amazônia, por volta de 1810, quando se iniciou a emigração dos judeus para o Grão-Pará e Amazonas, surgiu como o Gran-Eden, o jardim do Paraíso, a Terra da Promissão." Ao que consta, a presença judaica na Amazônia era já tão grande que uma das alternativas que se discutiam para a localização do Estado de Israel, criado, enfim, em 1948, era a Amazônia, o que teria contribuído para o Brasil, através de seu chanceler na ONU, Oswaldo Aranha, apoiar e liderar a votação pelo reconhecimento do novo país em terras da, até então, Palestina de dominação inglesa.

Uma experiência antípoda com a Amazônia, do ponto de vista das suas representações, é a que se lê no romance A Selva (1930), do escritor português Ferreira de Castro que, órfão de pai, vem com doze anos para Belém, em 1914, embrenhando-se, mais tarde, na floresta para trabalhar como seringueiro. Essa é a matéria prima do romance que conta a história de um jovem estudante de direito que, aos 26 anos emigra, por razões políticas, para Belém, vai trabalhar no seringal "Paraíso" às margens do rio Madeira e vive o inferno dos desejos de juventude e as aventuras inusitadas com que a floresta o enfrenta.

Mais ou menos na mesma época, instala-se em Manaus o fotógrafo e cineasta Silvino Santos, também português, cuja atividade nos deixou um legado de imagens preciosas da região e de sua gente e que, em parte, podem ser vistas hoje no filme O Cineasta da Selva (1997), de Aurélio Míchiles, que tão bem soube aproveitá-las.

A Cólera dos Deuses, do cineasta alemão Wladimir Herzog, famoso nos anos 70 e 80 e fascinado pelos Andes e pela Amazônia, passeia a loucura dos colonizadores pelas planícies de água e verde do mito encantado e trágico da conquista. Em outra época, Fitzcarraldo navega, insano, por terra firme, num navio fantasma com que pretende chegar a Manaus para assistir a um espetáculo de ópera no fabuloso teatro plantado às margens do Rio Negro, em 1896, pelo luxo da riqueza transitória da explosão da borracha nos mercados internacionais.

A Fordlândia foi abandonada, Carajás não avançou, Ewil Ludwig - o mesmo do Instituto que em parceria com a FAPESP, desenvolve o projeto Genoma do Câncer no Brasil - desilude-se de seu sonho empresarial amazônico, a Transamazônica é uma ferida linear na selva, que sangra o desvario megalomaníaco dos governos militares, o projeto Sivam, contraditório na percepção que até agora permitiu de si para a sociedade, instala-se e consolida-se, a zona franca continua por lá, com vida legal projetada até 2013, mas com atividade comercial no varejo de Manaus reduzida a quase zero.

Em 1799, o filósofo e naturalista alemão Alexander Von Humboldt, chega, no dia 16 de julho, a bordo do navio "Pizarro", à Venezuela. Em fevereiro do ano seguinte, realiza uma longa excursão pelo rio Orenoco e outros rios da Amazônia, chegando até o rio Negro, na fronteira com o Brasil, onde foi barrado pelas autoridades portuguesas.

Em 1948, a Presidência da República dos, então, Estados Unidos do Brasil submete ao Congresso Nacional, para aprovação parlamentar, o texto da Convenção Constitutiva do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica e o Protocolo Financeiro, firmado pelo Brasil em Iquitos, Peru, no mesmo ano.

Em 1952, alguns intelectuais, entre eles Paulo Duarte, Osório Borba, Marques Rebelo e Sérgio Buarque de Holanda, tentam fazer aprovar, no III Congresso Paulista de Escritores, uma moção de apoio ao projeto da fundação Hiléia Amazônica, "instituída pelas nações com soberania na região amazônica e destinada exclusivamente a pesquisas científicas naquela região". Os nacionalismos de plantão não permitiram jamais que o projeto se concretizasse, embora, mais tarde, importantes instituições de pesquisa da Amazônia, como o INPA, em Manaus, e o Museu Goeldi, em Belém, ali se instalassem, cumprindo um papel fundamental para o conhecimento cultural e científico da região.

Em 1998, os mesmos nacionalismos, com roupas da moda, retardaram o quanto puderam a ajuda internacional para combater o fogo que destruía as matas de Roraima, a ponto do assunto ser matéria do editorial do Jornal do Comércio de Recife, de 08 de abril daquele ano, com o sugestivo título Hiléia Amazônica de novo.

Recentemente, o convênio, entre a empresa para-estatal Bio-Amazônia e a transnacional Novartis, de medicamentos, para a exploração da rica biodiversidade da floresta tropical foi, no ponto de ser assinado, suspenso no último minuto, provavelmente por razões, alegadas, muito parecidas às que envolveram, meio século antes, os impedimentos daquele outro programa de internacionalização de suas riquezas naturais, para fins científicos, tecnológicos ou, mesmo subjacentes, econômicos.

A Amazônia, tal como a bio e a socio-diversidade que lhe são constitutivas e, talvez, por isso mesmo, está enredada numa teia de dramas, conflitos, controvérsias que se multiplicam numa escala proporcional às pequenas e grandes ambições de que ela sempre foi alvo, desde sua conquista e posse, no decorrer dos séculos VVII e XVIII, pelos europeus.

Quase metade do território brasileiro é coberto pela floresta tropical da bacia amazônica em contraste com os apenas 10% de toda população nacional distribuída por sua imensidão.

Quando chegaram os invasores europeus, a população indígena no Brasil estimada em 5 milhões, tinha metade deles espalhados pela Amazônia, "cujos rios colossais", como escreve Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro, "abrigavam concentrações indígenas que pasmaram os primeiros navegantes".

O extermínio dessas populações de línguas, culturas e etnias diversificadas foi tão violento que delas restou até há poucos anos atrás não mais do que 150 mil, com perdas culturais e lingüísticas para sempre irrecuperáveis.

Contudo, esse processo sistemático e cruel de perda pelo contato com a civilização, que parecia irreversível à maioria dos estudiosos e dos que se dedicavam às questões indígenas, tem, desde algum tempo, sofrido uma reversão que se mostra nos sucessivos censos realizados e que apontam, hoje, para um número superior a 300 mil, dos quais mais de 170 mil em território amazônico.

Apesar da grande atenção nacional e internacional para as questões indígenas, consubstanciada, muitas vezes, em políticas públicas consistentes, elaboradas e desenvolvidas por instituições civis e governamentais e pela ação abnegada de homens como Rondon e os irmãos Vilas-Boas, isso não significa que o processo de permanência, de preservação da própria identidade e de interação com a sociedade, como um todo, tenha perdido os seus predicados históricos de crueldade, prepotência e debochado oportunismo.

Veja-se, a esse propósito, o artigo com o título-paródia The Fierce Antropologist (O Antropólogo Feroz) de Patrick Tierney na The New Yorker (9 de outubro de 2000) no qual comenta, contrapõe e critica a ação predatória e devastadora de um dos mais famosos estudiosos desse grupo indígena, cujo livro Yanomamö: The Fierce People (Yanomami: O Povo Feroz), de 1968, tornou-se um clássico e, através de múltiplas edições, bateu a casa de mais de um milhão de exemplares publicados.

Assim, também os cientistas têm sua contribuição a dar nesse processo de devastação socio-ambiental da Amazônia e, a considerar como procedentes as denúncias contidas no artigo de Patrick Tierney, muito mais virá no seu livro anunciado para novembro, cujo título - Darkness in El Dorado: How Scientist and Journalists Devasted the Amazon (Escuridão em Eldorado: Como Cientistas e Jornalistas Devastaram a Amazônia) - não só sugere lembranças do Coração das Trevas, de Joseph Conrad, como promete revelações terríveis sobre a pretensa imparcialidade isenta de nossos colegas em seus sagrados rituais de pesquisa e de informação.

Os Yanomami que, segundo Darcy Ribeiro, "constituem hoje o maior povo prístino da face da terra, começam a extinguir-se, vitimados pelas doenças levadas pelos brancos, sob os olhos pasmados da opinião pública mundial. São 16 mil no Brasil e na Venezuela. Falam quatro variantes de uma língua própria, sem qualquer parentesco com outras línguas, vivendo dispersos em centenas de aldeias na mata, ameaçados por garimpeiros que, tendo descoberto ouro e outros metais em suas terras, reclamam dos governos dos dois países o direito de continuarem minerando através de processos primitivos, baseados no mercúrio, que polui as terras e envenena as águas dos Yanomami."

Se a Amazônia não se internacionaliza formalmente, internacionalizam-se, contudo os seus conflitos nos diferentes níveis, esferas e escalas socio-políticas.

O assassínio de Chico Mendes transformou sua morte em emblema das duras lutas da vasta população cabocla da Amazônia pela dignidade de vida, ligada indissoluvelmente ao respeito pelos direitos sociais mas também à preservação do equilíbrio ambiental. Criam-se, assim, cada vez mais, as condições para desenvolvimento de uma consciência cidadã não como privilégio das populações urbanas da costa, do sul e do sudeste, mas como elemento crítico do conhecimento dos direitos e obrigações comuns a todos e do auto-reconhecimento das diferenças na integração.

Há dias, reuniram-se em Manaus ministros da defesa de 28 países para discutirem, entre outros assuntos atinentes ao tema, o plano Colômbia, amparado pelos E.U.A., de combate ao narcotráfico. Além das longas reuniões, da histórica prepotência da política americana, cujo sub-secretário de defesa declarou que, com ou sem apoio de outros países, eles levariam o projeto adiante, além das fotos-álbum-para arquivo e da pirotecnia dos exercícios simulados de combate na selva, o fato é que o ritual de internacionalização estava lá e não em outro lugar, plantado bem ali às margens do rio Negro que nasce do Orinoco, que desce dos Andes, que depois de Manaus se encontra com o Solimões que é, então, o Amazonas, que corre para o mar e nele deságua no delta de Marajó, depois de rolar suas águas por mais de 5 mil quilômetros em território brasileiro.

Um estudo desenvolvido pelo IPEA, cujo anúncio se fez recentemente pela mídia, estimou em cerca de 4 trilhões de dólares a riqueza potencial da diversidade biológica e mineral contida em nossas matas. A floresta amazônica, se a estimativa estiver correta, é, sem dúvida, responsável por grande parte desse valor e é por isso que a região concentra tantos conflitos quantas são as soluções que para eles se propõem e tantas vezes se adiam.

Inadiável, é claro, é a lembrança permanente de que ali se desenrola uma luta constante, às vezes anônima, outras notória e espetacular entre homens e a natureza, entre a natureza e as formas sociais de seu uso e apropriação, entre a sua apropriação e a consciência, cada vez mais dramática, de que é preciso aceitar-lhe, na sua diversidade social e biológica, a estranheza, renunciando, assim, ao projeto insano de sua total domesticação.

Apesar da cobiça e da ambição do conhecimento, transformado em valor econômico pelo domínio das tecnologias, é preciso conviver sinceramente com nossa humanidade, falível, portanto, nas suas ilusões de onipotência, mesmo sob os humildes disfarces do reconhecimento de nossos limites e limitações.

Carlos Vogt

 

 

 

 

Atualizado em 10/04/2001

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