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O Alarde dos Transgênicos

Carlos Vogt

I

As décadas de 1970 e de 1980 marcaram as grandes transformações por que passaria a biologia com as descobertas da organização do funcionamento e da variação do material genético dos seres vivos.

Desse conhecimento decorreram tecnologias que permitiram, a partir de organismos diferentes, novas combinações, em laboratório, de material genético estabelecendo-se, assim, um princípio de intervenção humana capaz de, pela substituição das fronteiras naturais entre variedades de espécies e, potencialmente entre as próprias espécies, estabelecer fronteiras tecnológicas tendentes mais à uniformidade do que à biodiversidade característica do planeta.

As pesquisas em torno do DNA recombinante, além da revolução instaurada no universo dos estudos da vida, permitindo o surgimento de novas práticas científicas e tecnológicas que o novo campo híbrido entre ciência e tecnologia - a biotecnologia - viria depois consagrar, desencadearam também mudanças profundas no comportamento ético da sociedade civil diante das novas questões que a manipulação genética de seres vivos trazia para o homem, ator e autor inconteste do drama redivivo do eterno Prometeu.

O potencial do que, então, se descobria, foi tão importante que a própria comunidade de pesquisadores, que participaram dos experimentos fundadores, tomaram a decisão de declarar uma moratória científico-tecnológica e de promover a adesão a ela da comunidade internacional enquanto não se estabelecessem diretrizes e normas seguras para as pesquisas na área.

A famosa Conferência do Monte Asilomar, nos EUA, em 1975, formalizou essa decisão e promulgou a necessidade de se manterem sob rigorosas condições de proteção e de isolamento todos os experimentos de recombinação genética e os organismos deles resultantes pelo tempo necessário à produção de certezas de que não seriam nocivos à humanidade e ao meio ambiente.

Todos esses acontecimentos foram, curiosamente, muito bem cobertos pela Rolling Stones, publicação radical dos anos 60 e Michael Rogers, num artigo memorável, fez o mais amplo registro dessa reunião internacional proposta pelo bioquímico Paul Berg, da Universidade de Stanford, na qual se debateram à exaustão os riscos e as medidas de prevenção, entre outros, quanto à possibilidade de "criação de novos biótipos nunca antes vistos na natureza".

As fantasias correram soltas e como no imaginário psico-social o homem sempre se reencontra com seus mitos, logo Frankenstein, o médico e o monstro, passeava pelas alamedas receosas do conhecimento desencadeado e pelo receio da reação em cadeia das forças liberadas. Os próprios pais fundadores do novo conhecimento, Watson, entre eles, até pela terminologia dos primórdios, incitavam a imaginação: quimeras, ou plasmídeos quiméricos, eram assim chamados os novos seres produzidos pela engenharia genética.

Três anos depois, as coisas estavam mais calmas e os pavores, que levaram inclusive à rejeição, pela sociedade civil, de que laboratórios de manipulação genética fossem instalados em centros urbanos, foram sendo domesticados, até porque nenhum monstro, mitológico ou não, saiu desses laboratórios.

Nicholas Wade, biólogo e jornalista, autor do livro A experiência final: evolução feita pelo homem, de 1977, produziu ao longo de 20 anos, para a Science, artigos que são hoje indispensáveis para a compreensão de todo o processo de descobertas iniciado nos anos 1970 e que viria, em 1985, com o grupo organizado em Santa Cruz pelo biólogo molecular Robert Sinsheimer, do Instituto de Tecnologia da California, culminar no lançamento das bases do que mais tarde viria a ser conhecido como Projeto Genoma e da própria área de conhecimento, daí derivada, a Genômica.

II

Mas como os mitos falam os homens, eles estão por aí, antigos, modernos, contemporâneos, entre eles o da depuração e purificação raciais da idiotice branca da eugenia.

Há outros, alguns deles positivos, ligados ao ciclo cultural da longevidade, da eterna juventude, da vida eterna, da ressurreição da carne.

Há também muitos medos reais e muita atenção da mídia e da imprensa para com os riscos para a saúde das populações e para o equilíbrio sustentável do meio ambiente.

É que a biotecnologia possibilitou também alterações importantes no paradigma econômico da agricultura mundial levando inclusive empresas transnacionais do porte da Monsanto a mudarem o foco de seus negócios e passarem de produtores de agrotóxicos a produtores de insumos biotecnológicos.

Em relação à Monsanto, que em 1997 anunciou estar deixando os agrotóxicos, a situação mais famosa, mais emblemática e mais polêmica é a das variedades transgênicas da soja, chamadas Round up Ready, desenvolvidas para serem resistentes ao herbicida Round up, também produzido pela Monsanto.

O Brasil, além de ser um dos maiores mercados de insumos, é um grande produtor de grãos para o mercado mundial, desempenhando, nesse cenário, um importante papel na produção de proteínas e óleos vegetais.

Diferentemente dos E.U.A., os mercados europeus e outros que são grandes importadores da produção brasileira, o Japão, entre eles, têm severas restrições à transgênese de produtos destinados à indústria alimentícia, chamando-os inclusive, pejorativamente, de Frankenfoods.

Desse modo, aos riscos para a saúde do consumidor e para o meio ambiente, acrescentam-se os riscos econômicos que, por normas técnicas dos países importadores, podem desequilibrar totalmente a balança comercial do Brasil.

A questão dos riscos envolvidos e acarretados pelos alimentos geneticamente modificados (AGM) ou pelas intervenções transgênicas em espécies vivas naturais tem sido o ponto principal de atenção da militância civil de organizações não governamentais (ONGs) e do esforço de informação e esclarecimento da mídia e da imprensa, de um lado, e de discussão e avaliações críticas das publicações de jornalismo e de divulgação científica.

III

Muito pouco se pode, contudo, fazer ainda nesse domínio. Os transgênicos são uma realidade muito recente, não havendo ainda literatura estatística ainda consolidada sobre seu uso.

O que se faz é adotar protocolos de precaução, rotulagem de produtos com advertência de possíveis riscos, militância institucional e, às vezes, radical contra certos ou todos os usos de transgênicos, além de dispositivos e medidas que visam ao estabelecimento de alguma legislação, à criação de normas técnicas e de procedimentos de avaliação de conformidade, com o objetivo de regular e regulamentar, o quanto possível, o recurso aos transgênicos na sociedade.

O Brasil tem uma legislação incipiente sobre o assunto sendo a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNbio), ligada ao Ministério de Ciência e Tecnologia e criada em 1995, o principal organismo governamental a ocupar-se da questão.

Entre as atribuições previstas para a CTNbio está a de "propor o Código de Ética das Manipulações Genéticas". Parece que isso não foi ainda feito, mas, segundo informações obtidas junto à Comissão, está no prelo um número da revista Parcerias Estratégicas, do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), através do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), contendo diretrizes para a realização dessa importante e imprescindível tarefa.

Também no âmbito do Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), foi criado um grupo de Trabalho para a elaboração de um documento técnico sobre a situação do país no que concerne às atividades de metrologia, normalização, regulamentação técnica e avaliação de conformidade aplicáveis a microrganismos.

O encontro, entre muitos outros no Brasil, Plantas transgênicas: ciência e comunicação, ocorrido em Curitiba, no Paraná, no ano passado, e promovido pelo Conselho Britânico com as secretarias estaduais da Agricultura e do Abastecimento e da Ciência e Tecnologia, é um bom exemplo das preocupações científicas, tecnológicas, éticas e sociais que cercam o tema.

O Paraná, como aliás o Rio Grande do Sul, tem vivido, ultimamente, situações de grande tensão envolvendo agricultores, cultivares, políticos e instituições governamentais em virtude das questões de fronteiras geográficas com outros países do mercosul, por causa da mobilidade e dos redesenhos que as fronteiras tecnológicas imprimem a essas divisões político-administrativas, como decorrência da própria dinâmica da expansão dos interesses do capitalismo financeiro internacional e das reações de resistência por ela provocadas, como as que caracterizam, por exemplo, o Fórum Mundial Social, de Porto Alegre, já em sua segunda edição.


IV

Ninguém acredita, ou pelo menos deveria acreditar, que os alimentos que, antes da descoberta da transgênese, comíamos eram todos encontrados em estado de graça natural. Batata, milho, feijão e outros cereais foram sofrendo processos de melhoramento ou aperfeiçoamento genético que permitiram torná-los não só mais agradáveis ao paladar, como também mais nutritivos e, em alguns casos, transformá-los de venenosos e nocivos à saúde em alimentos ricos e saudáveis, como é o caso da batata e do próprio feijão.

Mas com os transgênicos a coisa é um pouco mais complicada porque, além dos saltos biotecnológicos de qualidade, para o bem ou para o mal, a tendência, como dissemos, é para uma uniformização das variedades e, dentro dela, em alguns casos, do controle do próprio princípio de fertilidade das sementes, uniformizando, pelo monopólio da tecnologia, o controle econômico das lavouras, dos cultivares e da produção agrícola onde quer que ela se dê. A operação transgênica conhecida como Terminator esteriliza as sementes impedindo que se produzam, para um segundo plantio, novas sementes a partir das que são compradas para a primeira lavoura.

Os argumentos de que a fome cresce no mundo e de que a produção tradicional de alimentos não é capaz de atender as necessidades das populações crescentes dos diferentes países do globo são freqüentemente usados pelos defensores das modificações transgênicas. Argumentos comuns são também os que apontam para a eficácia de tecnologias, por exemplo, através de modificações genéticas do milho, que dariam também ao alimento propriedades anticoncepcionais que muito contribuiriam, a baixo custo, para o controle da natalidade em países pobres, em desenvolvimento ou emergentes, como quer a cartilha e o vocabulário dos agentes e instituições financeiras da nova ordem econômica global.

O fato é que, mesmo havendo riscos, cuja extensão e qualidade são ainda difíceis de serem medidas, se o país não se prepara adequadamente para o domínio da biotecnologia, mesmo quando sua economia, como é o caso do Brasil, depende muito de sua produção agrícola convencional e, às vezes, também de sua produção orgânica, mesmo nesse caso em que é sempre preciso atestar a não contaminação por transgênese dos produtos exportados, é imprescindível, não fosse apenas essa razão negativa, que, como em todo processo de desenvolvimento tecnológico e de inovação, o país saiba dizer "não" pelo pleno conhecimento da melhor entre as alternativas postas, e ponha alternativas novas e positivas ao que lhe é apresentado como impositivo, porque único.

A biotecnologia no Brasil tem um cenário de sucesso amparado pela rica biodiversidade que nos é própria e quase sem similar no mundo. A transgênese é um capítulo importante da biotecnologia. Conhecê-la e dominá-la é fundamental. Mas o livro é maior e certamente mais cheio de outras boas surpresas além das que se encontram concentradas em estado de alarde nos textos merecidamente ruidosos dos transgênicos.

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Atualizado em 10/02/2002

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