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Crime
e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924).
Boris Fausto. Edusp, 2001. 2a edição por Rafael Evangelista
A visão que o senso comum tem do passado, em geral, afirma a tranquilidade dos tempos antigos, quando se podia andar na rua tranquilamente e as famílias mantinham suas casas destrancadas. Essa visão idílica da criminalidade de um tempo passado, que cada nova geração afirma ser o do a seus avós, pode ser vislumbrada - para ser questionada ou confirmada - no livro do historiador Bóris Fausto, Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). O livro fala de um tempo em que os "vilões" não são os traficantes de drogas ou os sequestradores, mas caftens, gatunos, anarquistas e imigrantes. O período analisado, de 1880 e 1924, é de intenso crescimento populacional da cidade de São Paulo. De pequeno núcleo urbano em 1880, com 35 mil habitantes, a cidade vivencia uma grande expansão no final do período, com 600 mil habitantes. Nela, juntam-se à aristocracia cafeeira e aos escravos, libertos em 1888, uma grande massa de imigrantes estrangeiros , todos habitando uma cidade cada vez mais industrializada. Imigrantes e libertos vão formar a maior parte do contingente pobre da cidade, vivendo nas vilas operárias e nos cortiços. Essa é uma das virtudes do livro de Fausto, não ater-se aos casos famosos e folclóricos como o crime da mala, mas debruçar-se sobre a vida cotidiana e a grande massa de processos judiciais. Cruzando dados estatísticos com os relatos dos processos e notícias de jornais da época, Fausto constrói um rico quadro, em que transpiram as vidas atravessadas pelas engrenagens do sistema penal. Historiador experiente, Fausto mantém uma constante atitude de dúvida com relação aos fatos apresentados pelas estatísticas, pois sabe da relatividade da realidade expressada por elas, consciente de que muitos crimes não são informados, que os critérios de classificação policial mudam com o tempo e que atividades mais repressivas podem significar aumento nos índices. São as análises em profundidade, em que os diferentes relatos sobre os crimes são analisados, que nos fazem perceber como o sistema policial e judicial aglutina os mais variados níveis da vida social. As classes econômicas, os grupos étnicos, a moral e a conduta, os conflitos de uma maneira geral passam muitas vezes pelas mãos da polícia e dos juízes. E é na resolução desses conflitos que ficam patentes as classificações que a sociedade realiza sobre as pessoas e os comportamentos. O papel, a conduta esperada de um pai, do homem, da mulher, da filha, do trabalhador, do imigrante, do negro estão em negociação e exposição no julgamento de um processo-crime. Mais do que revelador do perfil da criminalidade do final do século XIX e início do século XX, o livro de Fausto é uma visão sobre as relações sociais que são constituídas naquela que viria a se tornar a maior cidade brasileira. Viver de acordo com determinados papéis esperados pela sociedade - ou ser caracterizado por eles- como ser o pai provedor, a virgem moça, o trabalhador assíduo, o comerciante que paga em dia, pode significar a absolvição. O contrário, como ser anarquista, bêbado, não ser casado no papel, adúltero, estar envolvido sexualmente com negros, pode significar a condenação. Uma carta assinada por alguém de vulto, atestando a boa índole ou a boa moral do réu ou do acusador, ganha relevancia no julgamento, revelando assim, as raízes históricas da importancia das "relações" para a sociedade brasileira. O autor nos mostra ainda, a influência da frenologia - estudo que associava características físicas dos sujeitos à sua "natureza criminosa" - entre médicos, delegados e peritos, bem de acordo com a tradição positivista brasileira. Todos esses fatores, entretanto, não resultam em determinações automáticas para o julgamento, mas combinam-se em um jogo múltiplo. Fausto nos lembra também, em Crime e Cotidiano, sobre o papel dramático que os julgamentos representavam nesse período. Presentes no tribunal ou através dos jornais, a população acompanhava os julgamentos com emoção e formava a platéia desse espetáculo que acabava concorrendo com o circo. A importância
do trabalho do renomado historiador que é Fausto, editado
pela primeira vez em 1984, está principalmente no quadro
complexo que ele é capaz de construir. A perspectiva histórica
nos permite relativizar e redimensionar a questão da criminalidade,
de maneira que possamos escapar às respostas simplistas e
deslocadas da história e do contexto social e refazer o quadro
ameno e pacífico que construimos acerca do passado.
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