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Resenhas

Pré-História da Terra Brasilis
Organização de Maria Cristina Tenório

Sambaqui: a arqueologia do litoral brasileiro
Madu Gaspar

Outras resenhas


 

Pré-História da Terra Brasilis
Organização de Maria Cristina Tenório, Editora UFRJ, 2000

Por Patrícia Mariuzzo

Estamos tão habituados a pensar que o Brasil "começou" no ano de 1.500 com o descobrimento da Terra Brasilis por Pedro Álvares Cabral que corremos o risco de achar que pré-história e arqueologia são exclusividades do Velho Mundo. Pré-História da Terra Brasilis desfaz este engano e nos apresenta a "o homem das cavernas" brasileiro. A proposta de fazer uma viagem pelo tempo se concretiza num passeio por todos os cantos do Brasil tendo por guias um grupo de vinte arqueólogos que, através dos vestígios de grupos humanos que habitaram nosso país há pelo menos quinze mil anos, trazem à tona a arqueologia brasileira. Sendo o conhecimento da história fundamental para o fortalecimento da identidade de um povo, o livro proporciona uma chance única de tomar consciência de que, além de uma história, o Brasil tem também pré-história. Os sítios arqueológicos estejam eles nas cavernas do Piauí, a céu aberto em Minas Gerais e no Amazonas, nos sambaquis do litoral, nos alagados do Pantanal do Mato Grosso, são patrimônio cultural de um povo e um dos caminhos para o conhecimento do passado. Eles podem esclarecer que nossa história não começa com os portugueses, mas que a chegada deles, é apenas um marco nessa caminhada de muito mais do que apenas quinhentos anos.

O objetivo do livro é divulgar arqueologia tanto para o grande público, quanto para cientistas de áreas afins. Traz um belo projeto gráfico com várias ilustrações. Ancorado numa proposta didática, mas nem por isso desinteressante para os conhecedores do assunto, a viagem começa com a apresentação do piloto da máquina do tempo, a arqueologia, suas técnicas e seus métodos. Partindo do princípio de que o conhecimento da história é fundamental para o fortalecimento da identidade nacional, a segunda parte da obra se inicia levantando questões sobre as origens do homem americano e sobre o povoamento da América. A teoria mais aceita para explicar a entrada do homem na América, é a de que há cerca de doze mil anos, grupos humanos oriundos da Ásia passaram para o atual estado do Alasca (EUA) pelo estreito de Bering, em busca de caça de grande porte. A colonização completa até o extremo sul da América do Sul teria se dado há cerca de dez mil anos.

A terceira parte do livro que trata efetivamente da pré-história brasileira começa explicando quem eram esses caçadores antigos que adentraram o Alasca e mais tarde ocuparam toda a América. Estes primeiros habitantes são chamados de paleoíndios, eram caçadores especializados em animais de grande porte, também chamados de megafauna, altamente adaptados a ambientes terrestres abertos e de clima temperado. O conceito de paleoíndio no Brasil, entretanto, varia um pouco do descrito acima. A alimentação não se baseava na megafauna, mas na caça generalizada de animais pequenos, médios e grandes e no consumo de produtos vegetais. Ocorre que, houve uma adaptação arqueológica ao espaço tropical nos cerca de dois mil anos que separam a chegada do homem à América até a ocupação da América do Sul e das terras brasileiras. Tal fato deixa claro que a arqueologia brasileira é única tendo muitas vezes que se desfazer de periodizações e conceitos da arqueologia americana ou européia.

Em seguida, a primeira de muitas discussões importantes levantadas na viagem da máquina do tempo. A guia-arqueóloga Anne-Marie Pessis, da Fundação do Homem Americano nos leva para a Serra da Capivara, no Piauí. Hoje o clima da região é o semi-árido com uma estação de chuvas e uma estação seca. Mas, há cerca de doze mil anos não era assim. O clima era tropical úmido, permitindo a existência de abundante vegetação que, por sua vez, alimentava uma fauna essencialmente herbívora. A área foi habitada, durante milênios, por uma megafauna que coabitou com os grupos humanos. Preguiça gigante, tigre-de-dentes-de-sabre, mastodonte e o tatu gigante são exemplos desses animais. Junto com eles, também havia espécies de pequeno porte que serviam de alimento para as populações que habitavam a Serra da Capivara. Nesta região há registros da presença humana que remontam à cinqüenta mil anos. As pinturas rupestres que preenchem as paredes do Parque Nacional mostram representações de animais como caranguejos, jacarés e certas espécies de peixes que hoje não suportariam viver no clima semi-árido da região.

A arqueologia se preocupa primordialmente com os aspectos materiais da vida, com a dependência do homem em relação aos ritmos da natureza e com as questões geográficas (estações do ano, clima, disponibilidade de recursos). Isto porque é com estes aspectos materiais que o arqueólogo lida o tempo todo, com os utensílios, as ferramentas, os esqueletos dos mortos, o lixo, enfim, com vestígios de todo tipo para construir o quebra-cabeça e chegar perto de como era a vida dos grupos que habitaram o Brasil há dez mil, cinco mil anos etc. Pelos instrumentos é possível definir o estilo de vida dos grupos étnicos. No sul do Brasil temos exemplos de como a natureza definia os hábitos dos grupos: com dois tipos de paisagem, os campos abertos e as florestas (subtropical e atlântica), a região foi dominada por duas tradições. Enquanto a tradição Umbu compunha-se de caçadores do campo com instrumental próprio, lascas, lâminas de pedra, flechas, lanças e dardos; o grupo dos Humaitá era de caçadores da floresta, com implementos mais pesados como talhadores.

E a viagem continua. Adentramos o estado de Minas Gerais que tem também sua peculiaridade. Aqui os homens que habitaram o sítio de Lagoa Santa, perto de Belo Horizonte, se alimentavam mais de vegetais do que de caça e isso aumentou a freqüência de cárie naqueles indivíduos, fato raramente observado em populações de caçadores. No Lajedo Soledade, cidade de Apodi, Rio Grande do Norte, foram catalogadas até agora vinte e seis áreas de gravuras e trinta de pinturas que, ainda não se sabe ao certo como, estão num estado de conservação raramente encontrado. Os autores desse capítulo do livro se aventuram num exercício de interpretação sobre o significado das pinturas. Ao ultrapassar o limite da descrição, esses pesquisadores concluem que o Lajedo era um centro cerimonial de rituais propiciatórios de água. Considerando que a seca não é um fenômeno recente no Nordeste, eles acreditam que os grupos que viviam naquela região já tivessem a água como alvo de interesse e preocupação, sendo os desenhos formas de chamar ou agradecer pelas chuvas.

O livro dedica boa parte de seu conteúdo ao incrível fenômeno dos sambaquis. O grupo de homens pré-históricos chamados sambaquieiros ocupou grande parte do litoral entre seis e mil anos atrás. Eles se destacam por terem deixado a maior quantidade e diversidade de testemunhos sobre sua permanência no território brasileiro. O hábito de permanecer muito tempo no mesmo lugar e de acumular restos de alimentos é a característica que melhor diferencia esse grupo de tantos outros que habitaram o Brasil pré-histórico. O acúmulo de material tinha um objetivo específico: os restos alimentares eram material de construção. Com esse material eles construíam uma plataforma, que podia atingir vários metros de altura, onde estabeleciam moradia. Sua alimentação baseava-se na pesca e na coleta de moluscos mas, entre os restos de alimentos, também encontramos ossos de tubarão, baleia, golfinho, tartarugas, raias. Isso demonstra que os sambaquieiros deviam utilizar embarcações com certa habilidade tanto no mar como nos rios. Todos os rituais da vida desses homens eram realizados nos sambaquis, inclusive o sepultamento dos mortos.

Alguns arqueólogos se dedicam exclusivamente ao estudo das práticas funerárias pré-históricas. A forma como o corpo é depositado no solo, o local das sepulturas dentro do sítio, a idade dos mortos, seu sexo e o que acompanha o morto, tudo isso são indícios das formas de organização social daqueles homens. Nos sambaquis do litoral do estado de São Paulo, por exemplo, não há separação entre vivos e mortos, não existe um cemitério como conhecemos hoje, um lugar separado, um lugar a ser evitado. Parece que permanece um forte vínculo com os que já foram, o que define um padrão funerário único entre os sambaquieiros. Além disso, todos são enterrados da mesma maneira, não há distinção entre homens, mulheres ou crianças indicando status semelhante para todos dentro do grupo.

Ao falar dos primeiros horticultores do Brasil, as discussões do livro buscam entender porque alguns grupos optaram pela intensificação da prática agrícola em meio à prática de coleta e caça. Os indícios mais antigos da coleta e processamento de vegetais no Brasil foram encontrados em Goiás com antiguidade entre onze e nove mil anos. Foram encontrados coquinhos e caroços de frutos associados e instrumentos para quebrar e moer. Relacionar a presença de instrumentos, como o quebra-coquinhos, com restos de vegetais pode indicar que mesmo antes da intensificação do cultivo do milho e da mandioca, os homens pré-históricos brasileiros já conheciam técnicas elaboradas de coleta e processamento de vegetais e este conhecimento propiciou a domesticação desses vegetais, conforme a conveniência. A opção pela intensificação da atividade de cultivar, pode ser atribuída ao aumento da densidade demográfica, ao início de um processo de sedentarização, ao início da atividade de troca entre diferentes grupos ou, ainda, ao desenvolvimento de uma estratégia de defesa forçada pela chegada de outro grupo que limitava o território de coleta e, ao mesmo tempo, forçava a criação de reservas de alimentos. Relatos de cronistas do século XVI, contam que os índios conheciam técnicas de cultivo, mas que a coleta era ainda uma atividade muito importante nas aldeias. A chegada dos europeus realiza mudanças nos hábitos dos habitantes do Brasil. O cultivo da mandioca, por exemplo, foi incentivado por portugueses e espanhóis, tanto para abastecimento de seus navios como para fins comerciais. Os portugueses trocavam farinha de mandioca por facas e outros utensílios com os índios Tupinambás do Rio de Janeiro.

A recuperação da pré-história das tribos indígenas que os europeus encontraram no Brasil, é mais fácil porque é possível recompor sua história desde a chegada do conquistador europeu até seu confinamento nas reservas atuais. As aldeias que ficaram para trás, com seus artefatos, restos de alimentos, vestígios cerâmicos etc, são fonte de estudos para reconstituir os hábitos das gerações passadas. Na tribo dos Guaranis, por exemplo, os mortos eram colocados dobrados dentro de potes de cerâmica e enterrados acompanhados de alguns alimentos. Pela análise arqueológica, baseada principalmente na cerâmica, pode-se concluir que os Guaranis vieram da Amazônia devido, provavelmente, a pressões demográficas, por volta do ano 500 a.C., e se espalharam nas florestas das bacias dos rios Paraná, Paraguai, Uruguai e Jacuí e pelo litoral.

A palavra arqueologia está envolta numa aura de suspense e de aventura, exerce uma fascinação nos homens porque através de cacos de cerâmica, de restos de ossos e até do lixo faz emergir respostas sobre os tempos mais remotos da humanidade. Enquanto os historiadores dispõem de documentos escritos para realizar seu trabalho, os pré-historiadores lançam mão de todo tipo de vestígios ou marcas deixadas pelo homem na sua trajetória de vida pelo planeta. Localizar, analisar e interpretar tais vestígios é tarefa da arqueologia. A parte final do livro traz à tona a questão fundamental sobre a preservação dos sítios arqueológicos brasileiros. Poucos leitores não estarão convencidos da importância de preservar os sítios depois dessa rica viagem. A ciência arqueológica é cumulativa e depende primordialmente de dados recolhidos em campo, isto é, nos sítios arqueológicos. A memória do país está depositada nas cavernas, grutas, nas pedras, nos sambaquis e é necessário preservá-la para garantir ao arqueólogo a matéria prima do seu trabalho e para que possamos encontrar as chaves que ligam a máquina do tempo que nos leva de volta à pré-história.

Atualizado em 10/09/03

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2003
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Brasil