Manifesto para ciborgues: ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX
Donna Haraway
Por Carolina Cantarino
O ciborgue, um personagem recorrente na ficção científica contemporânea, é utilizado como metáfora para a crítica da identidade em favor das diferenças e para reivindicar as possibilidades de uma apropriação politicamente responsável da ciência e da tecnologia. Essa seria, em linhas gerais, a proposta política da bióloga e feminista Donna Haraway no seu Manifesto para Ciborgues: Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista no Final do Século XX.
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Leia o texto (em inglês) aqui.
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Publicado pela primeira vez em 1985, o manifesto de Haraway utiliza o ciborgue como uma imagem condensada das transformações sociais e políticas do Ocidente na virada do século. Essas transformações dizem respeito, principalmente, aos desafios trazidos pelo binômio ciência & tecnologia, tanto no que diz respeito à nossa percepção do mundo e de nós mesmos, quanto para as nossas relações sociais. Com as novas tecnologias, as fronteiras entre os animais e os seres humanos, entre o orgânico e o inorgânico, entre cultura e natureza entram em colapso. A microeletrônica resulta numa desmaterialização numérica do mundo, numa indiferenciação cada vez maior entre o visível e o não-visível, entre o físico e o não-físico. A biotecnologia sugere um novo entendimento sobre o que seria a vida, focalizando a sua dimensão molecular.
Híbrido de máquina e organismo, o ciborgue simboliza a ruptura e a confusão dessas fronteiras e pode ser apropriado criticamente para se fundar uma nova política. Neste sentido é que Donna Haraway propõe um rompimento com o marxismo, o feminismo radical e outros movimentos sociais que fracassaram ao operar com categorias como classe, raça e gênero. Em relação ao movimento feminista, a crítica de Haraway diz respeito ao modo como ele vem operando com a categoria "mulher" de uma forma naturalizada. Segundo Haraway "não existe nada no fato de ser mulher que una de maneira natural as mulheres". Sendo assim, seria necessário romper com essa política da identidade e substituí-la pelas diferenças e por uma coalizão política baseada na afinidade e não numa identificação concebida como "natural". O ciborgue seria, assim, o modelo, o mito fundante dessa nova política de identificação construída a partir da afinidade, longe da lógica da apropriação de uma única identidade.
Além do dualismo homem/mulher característico do discurso de gênero, Haraway propõe deslocar outras dicotomias que operam no Ocidente (a separação entre mente e corpo, realidade e aparência, totalidade e parcialidade). Mais do que deslocar, para Haraway seria necessário romper com essa lógica dualista em favor da fragmentação, da parcialidade ou mesmo da contradição, tentando-se escapar desse "labirinto de dualismos" inclusive no que diz respeito à ciência e à tecnologia: concebê-las enquanto os meios possíveis para a satisfação humana ou simplesmente como a matriz de complexas dominações seria um grave erro.
Para Hawaray, é necessário complexificar a reflexão sobre as nossas relações sociais cada vez mais mediadas pela ciência e a tecnologia, rechaçando tanto uma "metafísica anticientífica"(característica do discurso criacionista) quanto uma "demonologia da tecnologia". Por isso é que Haraway faz uso do ciborgue e de uma vasta literatura de ficção científica neste trabalho. Da imaginação da ficção científica podem emergir uma nova maneira de se relacionar criticamente com a ciência e a tecnologia e, assim, possibilidades políticas interessantes para o século XXI.
Donna Haraway é professora de História da Consciência na Universidade da Califórnia, em Santa Cruz. Seus trabalhos influenciaram os chamados Estudos Culturais e Estudos de Mulheres, assim como a Primatologia, Teoria Literária e Filosofia. O "Manifesto para Ciborgues" foi originalmente publicado na Socialist Review, em 1985, constituindo, mais tarde, um dos capítulos do livro Simians, Cyborgs and Women - The Reivention of Nature (1991).
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